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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

15 março, 2008



Uma amêndoa, só uma…

Na velha cozinha de cheiros mornos e adocicados, o velho tacho de cobre resplende sobre o lume espevitado. Nuvens doces de odores evolam-se pela chaminé. Dentro crepita o castanho pastoso e liquefeito de açúcar. Uma volta e mais outra. A colher de pau, de cabo longo, gira no seu voltear lento como se fora velha a dança, mais a dançadeira. Preparam-se as amêndoas para o dia da Ressurreição. Nascem no tacho as bolhas quentes e vidradas do açúcar. O ponto está feito. Em breve o miolo das amêndoas, aquelas pevides meio gorditas revestidas de capa castanha acre ,que quando puxada deixa ver duas metades brancas quase marmóreas ,e cujo sabor é quase néctar de deuses, vai engrossar o castanho. Depois mais volta, e meia volta, até o líquido se evolar. Rapidamente moldadas e depois esfriadas, as amêndoas castanhas, rudes e apetitosas estarão prontas a serem chupadas ou trincadas conforme o estado de espírito.

Neste vai e vem de cozinha, tacho, colher e faces afogueadas Miquinhas de bochechas ofegantes e sorriso largo cantarola as modinhas, emprestando à velha cozinha um ar primaveril. Perpassa, numa onda corrida, o cheiro do rosmaninho. Será da cantiga, será do monte em frente? Quem sabe!

Risonha, afogueada e rechonchuda a Miquinhas chama pelos meninos da casa, sejam eles graúdos ou pequenitos. O tropel enche a cozinha plasmando-se sobre o velho e arquejante tacho de cobre. Espetam-se os dedos, queimam-se as pontas e os mais gulosos conseguem chupar as amêndoas. Os risos, o cheiro, a frescura em frente trazem alma ao momento.

-Estão divinais. Ouve-se.

-Um espanto. Diz-se

-Ó Miquinhas, tu tens cá umas mãos!

-Ai, quem me dera saber fazer disto!

Devagar, devagarinho vão deixando a cozinha. Os lábios vão lambuzados de açúcar, os olhares adoçados de luz doce e a alegria também rejuvenesce o corpo. Sozinha Miquinhas, moçoila quarentinha, suspira e senta-se no escano polido de tantas gerações de servidores. Estica a perna anafada e olha-a como se a sua vida lhe subisse dos pés para a cabeça. As meias de elásticos lassos caem-lhe nos tornozelos inchados, a saia de algodão já debotada de tão lavada, mas ainda de réstia florida espalha-se nas ancas soberbas que se percebem no rodado espalhado. O avental meio sujo e melado enrola-se assimétrico sob umas mãos vermelhas, de dedos fortes e unhas curtas mas que destilam assim mesmo ternura. O tronco é forte e espesso tal como os seios que se erguem pesados sob a camisolita de lã meia amarelada e arregaçada. O pescoço une-se a um rosto de olhos imensos e aguados e sombreados de pestanas. A tez é alva como o resto da pele. Quase leitosa. O nariz aquilino revela um carácter firme que se amacia logo a seguir no olhar terno, ferido de recordações. Pesponta-lhe um sorriso nos lábios cheios e vermelhos. Na cabeça negra riscam-se já de alguns fiozitos de cinza incipiente. O quadro está quase completo. A paleta misturou os tons. Faltam as cores da vida. E a vida de Miquinhas tem tanta cor e odor.

Nascera filha de criada e de jornaleiro. Criara-se por entre espaços de tempo e de sobrevivência. Fizera-se menina de tranças negras, e depois moçoila de formas redondas, plasmadas na dureza das carnes jovens. Apetecia na ligeireza do passo, no sorriso copioso ou ainda no gorjear de bando. Sempre fora a alegria do rancho, a Miquinhas das eiras mais das feiras. Bons verões dançados e pulados e namoriscados. Faceira e mimosa, a Miquinhas trazia os moços pelo beiço. Não lhes ligava. Não se prendia. Era como se fora o catrapiscar do volteio em breve toque matreiro. Assim chegara aos dezoito anos. Fresca, apetecida e atrevida.

Fora numa Páscoa. Quando as flores de pessegueiro, mais da pereira dançavam na brisa do tempo. O ar era fresco e limpo, o céu azul. Os lírios pespontavam nas bermas por entre o verde dos campos. Fumegavam as chaminés na cozedura do pão doce e mais do folar. O ar sentia-se doce, no cheiro das amêndoas. E ouviam-se os sinos. Parecia que o tempo sorria. Ela sorria também. Filha da terra, na terra bebia a sua força e encanto. Fora nesse dia que o vira. Era jovem, risonho, moreno e dançarino. Naquela noite dançara e rodara, rodara até mais não. Acabara na palha numa roda sem fim. Rira, suspirara, abraçara e bebera-o a ele, e ele ,a ela. Um líquido precioso de gosto mélico. Fora uma sofreguidão de horas. Depois ainda meio zonza, erguera-se, cobrira-se e olhara-o bem dentro dos olhos. Soubera logo que era de partida. Não pedira. Sorrira. Estranhamente.

No adeus de braço estendido, ele pegara-lhe no saquito bordado, que tinha à cintura e onde meia dúzia de amêndoas já coladas pelo calor do entrechocar dos corpos, mais da labareda anterior, pingavam meladas, ele, disse-lhe assim… uma amêndoa, só mais uma… e num harpejo de graça puxou-a a ele, e trincou-lhe os lábios túrgidos de desejo de fêmea ainda fremente.

Tremeram-lhe as entranhas,mas docemente, estendeu-lhe a amêndoa do seu ser…

Foram as suas amêndoas mais doces!


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29 fevereiro, 2008




A Chuva na Cidade.

A Chuva cai gorda e fria. O asfalto vibra em espelho deslavado. O céu vestiu um casaco roto de cinzento opaco. Na rua perpassa vento que abana as gotas redondas de água. O dia magoa-se soprado de água, e solidão. As ruas estão corridas de água em poças escuras ou de correntes esparsas de amarelo barrento. É a cidade lavada, que liberta o pó dos seus sonhos perdidos.

Um homem, um só, retalha a água por entre os passos de uma rua. Dança no calcorreio. Os pés, gelados dentro de uns sapatos cansados onde as estrias engraxadas se enrugam de água, enfrentam o dia. A gola erguida de um casaco que já teve melhores dias, a par de umas calças coçadas, revelam o homem jovem de face rude. Os ombros carregam o peso do dia mais do sentir. São largos mas abaulados como se o correr do tempo os saturassem de desconsolos.

Tem o nome de Albano. Albano Vieira como usa apresentar-se naquele rumorejar cavo. Atravessa a rua húmida de chuvada e entra no café. Olha em redor. Quase cheio. Toma o lugar junto á janela, na mesa que espreita a rua. Sente-se aquecido pelo bafo quente que lhe chega ao rosto.

Pede um galão. O dinheiro não dá para mais. Enganar as horas do tempo e do corpo. Uma arte que domina. Está desempregado. Está só.

Um dia, já quase difuso tivera família. Companheira, filho e emprego. Hoje tem uma mão cheia de vida vazia mais um coração esvaído de luta. São os alcatruzes da nora no seu perpétuo rodar. Lenta e inexoravelmente. Ora em cima, ora descendo, até ao fim.

Suspira, abana a cabeça espargindo gotículas em redor. Leva os dedos longos ao cabelo que percorre como se fora um arado cortando a terra. Cruza a perna esquerda, endireita o tronco e olha em redor. Velhos. Enrugados e pregueados sentam-se em grupos. Falam dos grandes nadas do seu dia. Discutem em voz entaramelada a politiquice nacional. A coisa pública em pires de bicas, cimbalinos ou outros regionalismos, entornada, aguada ou puramente manchada. O tempo sentado na flacidez da vida enquanto o espírito ainda brinca nos canteiros do pensamento.

As vozes tremulam por vezes, enrolam-se na falta dos dentes esganiçam-se na ausência do ouvido ou tornam-se sussurradas quando brotam mais sibilinas. Calendário vivo de uma outra era já em remanso.

Fecha os ouvidos aos sons, afila o olhar em frente. Vê em forma difusa, do outro lado, uma montra. Pingos desfeitos embaciam-na. Silhuetas de modelos parados vestem a roupagem da fantasia de uma estação. E as pessoas continuam a passar. Nos passos esgrimidos sob os fios líquidos, há pressa num vai e vem cadenciado de rumo.

Os candeeiros pestanejaram de amarelo para o céu. O nevoeiro adensou-se. A noite começa a descer à cidade molhada. A solidão esconde-se nas esquinas.

Albano levanta-se, levanta a gola, lança uma moeda sobre a mesa e sai para a rua. O estrebuchar do dia acolhe-o. Mergulha na rua de asfalto luzídio e brilhos manchados. O deslizar dos pneus, o chiar dos travões, o buzinar estridente são ecos perdidos de movimento.

Ouve mesmo por cima da sua cabeça o correr das persianas. Mais pálpebras que escondem o calor de gente. Mais um muro em volta daquela ilha. A cidade prepara-se para descansar sob o xaile azul da noite.

Continua o seu deambular. Chega ao velho prédio. Empurra a porta, galga a velha escada que range sob os seus pés. Qual ladrão abre devagar, devagarinho, a porta. Olha, espreita. Não vê ninguém, em quase duas passadas cruza o corredor, entra no seu pequeno quarto, despido de quase tudo senão de uma cama e uma cadeira. Num vão de parede pendura o que tem. O espaço sobra para o que falta. Atira-se para cima da cama. Dá um quase pontapé e um sapato solta-se, depois o outro. Rebola. Agarra na almofada tapando meio rosto e soluça. Não. Arqueja, repuxa o cabelo, arfa de raiva e de dor. Sente-se violado. O desatino do não ter, a amargura do caos solitário.

Tem trinta e cinco anos. Um prefácio de luta e um contar presente de angústias. O seu epílogo? Tê-lo-á? Talvez as páginas ainda estejam vazias, talvez a estória deva ser reescrita, talvez o amanhã seja o enredo buscado da sua vida. Talvez, pensa.

Relembra outros dias. O passado vibra glorioso e mordido no seu espírito. Quando tinha gente a seu lado. Carne da sua carne e espírito comungado. Dias de antanho, nebulosos, mas agora achados gloriosos. Sabe -se o travo da coisa quando a boca está faminta. O seu filho, o seu menino. Já vai para cinco anos. Raramente o vê. Prefere esconder-se, prefere ignorar a sua miséria. Procura quebrá-la, mas os alcatruzes não sobem. Um dia pensa, um dia, conseguirá.

A companheira, não a falta. É apenas um tempo que passou. Deixou-o assim de só. Mas o seu menino… sente-o ainda tenro nos seus braços, no gorjeio de um sorriso.

Ana, a mãe, sua companheira de um breve hiato, advogada, avilta-o na sua ascensão célere. Ele, para quem as bolsas já terminaram depois de mestrado, doutoramento e pós-doutoramento, ele cujo saber académico obsta a um simples trabalho, vagueia na obscuridade da tarefa fortuita de dias. É a nova ordem de um país de malha rota. É o gozo sentado das estatísticas manipuladas. É também o futuro hipotecado de uma geração. A sua!

Levanta-se. A janela retalha o azul de um céu, que embora molhado, beija a lua timidamente. Os vidros lavados de noite chamam-no. Abre-os e respira, inspirando aquele cheiro de molhado misturado com o tossido dos carros, e o pó da vida. Odor único de mundo apressado, de corpos suados, de almas estioladas, de vontades desfeitas e sonhos abortados. É a cidade vibrátil, de tons quentes e respirares entrecortados. É o mundo sussurrante, lascivo, envolvente que o chama sempre que lhe fixa a âncora pese a corrente o afundar.

Veste o casaco. Desce a escadas. A chuva enxuga por ora as suas lágrimas. A humidade envolve-o, um passo, outro, mais outro. Simplesmente mergulha na cidade.

Lá em cima, na sua janela, o luar da noite veio sentar-se no parapeito.



26 fevereiro, 2008




...sabes, as aves

sabes, as aves aquáticas já não pernoitam junto ao mar nem por entre os nossos dedos de areia
sobem-nos vozes calcárias à garganta, estrangulo-me neste humilde canto, fico atento ao eterno silêncio do teu castelo

às vezes escuto o teu cantar, raramente, é certo...mas quando cantas saem-te nomes puros da boca e sorrisos diáfanos de cristais
os lábios incendeiam-se com vinho, teu corpo adquire o sabor misterioso das algas
no crepúsculo expande-se o perfume a moreia frita, teu olhar é o mosto dos nossos desejos

dançamos à roda dum mastro, saia em papel de seda bordada com búzios...uma quadra flutua pela noite de nossos cabelos
rodopias, e os teus amores são relembrados pela noite adiante
espalham-se estrelas cadentes, papoulas breves, junco molhado e o mar enche-se novamente de pássaros, embarcações semelhantes a beijos que nos percorrem de alegria.
AL BERTO
Livro Quarto





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25 fevereiro, 2008

Fui contemplada pelo Pela Gi de " Pequenos Nadas" http://velharias-traquitanas2.blogspot.com
e CValente
http://cvalente.blogspot.com

1) Este prémio deverá ser atribuído ao blogs que considera bons e aqueles que acostuma visitar regularmente e deixa comentários
2) Quando o prémio é recebido deverá fazer um post: Indicando a pessoa que lhe atribuiu o prémio e a respectiva ligação ao blog.
3) Indicar 7 blogs para atribuição do prémio.

Uma vez mais ,afirmo, que os blogs que que tento visitar, com certa regularidade ,primam pela excelência num ou noutro aspecto. Assim sendo , todos eles são passíveis de serem nomeados. Porém as regras ditam que o sejam sete. Difícil escolha mas...

http://fragmentosdanoitecomflores.blogspot.com/
http://terra-da-magia.blogspot.com/
http://omshanti1.blogspot.com/
http://omeucais.blogspot.com/
http://intervalos.blogspot.com/
http://arrabisca.blogspot.com/
http://mararavel.blogspot.com/

20 fevereiro, 2008

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18 fevereiro, 2008

"Desafio 12 Palavras"

MCorreia de "Repensando" .desafiou-me para escrever algo utilizando doze palavras. Escolhê-las não é tarefa fácil, porque as palavras nascem ,não, sob a pena ou o dedo, mas antes no redondo do espírito como se fosse um mar a entornar-se na areia. Apanhei algumas gotas, uns salpicos e aqui vão.

No jardim molhado das palavras, há uma menina tímida de grandes caracóis. Chamam-lhe Verdade. Nasceu pequena e frágil, mas agarra a vida com as raízes fortes da determinação.

É de cor indefinida, direi entre o rosado da rosa, o amarelo da luz e o azul do céu. Aponta para a terra, murmura com o vento e pisca sempre para o sol. Na cabeça desta menina de caracóis soltos brilha o sonho de um amanhã digno, e na boca gulosa de amor sorri, sorri, sorri sempre como se o mundo nela bebesse o húmus da compreensão.

Por estes dias, a menina-palavra depois de muito cirandar pelo seu jardim tão repleto de pequenos pés verdes, sentou-se num canteiro de amarelinhos-jacintos-ternura que já pespontavam meio trémulos mas ansiosos por espreitarem a liberdade e pensou, assim de ensimesmada: o menino-vento tão forte e corrido, tão soprado de uivado bem podia levá-la num passeio de domingo junto ao azul-branco de algodão lá de cima. Gostava tanto de lá ir. Queria com o dedo fazer um desenho, um trejeito de redondos mais de direitos, de afuniladinhos e esticadinhos, tudo alinhado e bonitinho na palavrinha Amor.

Ah como seria lindo no algodão azul-branco, lá em cima, para todos verem e respirarem!

Tenho que nomear doze, como faz parte do acordo.Pois então.

Casa de Maio

Portcroft

Un-dress

Last Dance

A Boneca de Porcelana

A Menina dos Olhos de Água

Boa noite e um queijo

Ana Luar

Tempo entre os Tempos

CValente.

Urbanidades da Madeira

Desde já um obrigada a todos vós.

17 fevereiro, 2008

Creedence Clearwater Revival - BAD MOON RISING

Uma das minhas preferidas!


Beatles
Rolling Stones
Pink Floyd.
Creedence Clearwater Revival
Jane Birkin e Serge Gainsbourg
François Hardy
John Halliday
Simon and Garfunkel
Neil Diamond
Joan Baez



Luís Eusébio de "Portcroft" fez-me um desafio, o de mencionar as seis músicas que na minha juventude me tenham feito " abanar o capacete". Uma proposta extremamente difícil. Não pelo "abanar de capacete" diga-se, mas antes, pela selecção. Como é natural não consegui e depois de muita volta, corte e mais corte fiquei-me por estes dez ícones da minha juventude! Peço desculpa pelo excesso, mas foi uma tarefa árdua!
A quem passo?
Hum...
Canto. Chão
Aguarelas de Turner
Árvore das Palavras
Na dualidade da cor
Foi em Novembro que partiste
Selos Difusos
E agora fico à espera...

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15 fevereiro, 2008

Leda and the Swan




Leda and the Swan



A sudden blow: the great wings beating still
Above the staggering girl, her thighs caressed

By his dark webs, her nape caught in his bill,

He holds her helpless breast upon his breast.



How can those terrified vague fingers push

The feathered glory from her loosening thighs?

How can anybody, laid in that white rush,

But feel the strange heart beating where it lies?



A shudder in the loins, engenders there

The broken wall, the burning roof and tower

And Agamemnon dead.

Being so caught up,

So mastered by the brute blood of the air,

Did she put on his knowledge with his power

Before the indifferent beak could let her drop?

William Butler Yeats
DA VINCI’S LEDA

13 fevereiro, 2008

Carta a Meus Filhos




Carta a Meus Filhos

Os Fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse "com suma piedade e sem efusão de sangue."
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-1a.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam "amanhã".
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

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Jorge de Sena in Metamorfoses

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Pequeno Nada



"Conhecer alguém aqui e ali que pensa e sente como nós, e que embora distante, está perto em espírito, eis o que faz da Terra um jardim habitado."

(Goethe)

A Gi de Os meus Pequenos Nadas ,uma vez mais, foi generosa ,e lembrou-se deste espaço. Agradeço-lhe e ,simultanemanete peço-lhe desculpa pelo hiato de tempo. As razões são-lhe conhecidas.
E porque este convívio de ideias é-me grato, e porque o espírito que creio a todos nortear é de fraternidade, para todos que visito,aqui deixo este
Pequeno Nada.

12 fevereiro, 2008



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Tempos

As cãs abrem-se numa cabeça vestida de cinzento raiada aqui, e ali, de uns fios pretos esparsos, mais abaixo, um chignon perfeito senta-se no alto de uma nuca altiva, suportada por um pescoço esguio e erecto. Os ombros rectos de postura sustêm um corpo já cinzento de vida, tal como os cabelos. No rosto de sulcos finos, e de lábios já vazios, brilham coruscantes uns olhos tão cheios de fulgor que parecem emprestados ao conjunto. Negros e líquidos perscrutam o redor. Pululam de centelhas que iluminam o rosto despido de cor dos anos. Os cílios abundam sombreando ainda mais a pele. Uma mancha, delineada, de cor húmida, preenche a boca, e os zigomas vestem-se de um tom levemente rosado. Está sentada na sua cadeira de braços. Chama-se Camila. Maria Camila D’Andrade e veste-se de setenta e muitos anos.

Sorri apenas nas comissuras dos lábios enquanto a agulha de croché faz a sua dança de abertos, fechados e cruzados. Alisa a peça. Os dedos são esguios, enrugados, já deformados e trémulos. Mãos gastas de tempo e de desejos. Meneia a cabeça no pensamento que a inunda, suspira encolhendo em trejeito os ombros. Ouve um ruído e instintivamente retoma a pose. De novo o trejeito facial, qual máscara afivelada, cola-se de imediato. Viúva de longa data, mãe de seis filhos esparsos por este mundo, sogra de uns tantos, avó de mais e bisavó de uns poucos, Camila endura a solidão da idade no recôndito de uma cadeira, e na pose de uma velha senhora.

Camila é célere na resposta, cáustica na palavra, dura na opinião e soberba na apreciação. Nada a prende a um mundo que não é seu. Não fora a vida que teima em inundar-lhe as veias, não fora a sua força de ser, não fora a raiva que a sustenta, não fora a amargura da quase dependência, talvez já tivesse partido. Mas não, sempre firme, erecta, alinhada e senhora de si. Sorri de novo, um quase esgar de desprezo pelos dias de hoje. Tudo se esvaiu como se fora um simples baralho de cartas. O seu mundo apagara-se tal como a onda na areia desfaz os castelos dos meninos. Assim de breve. Nada resta senão as memórias de um tempo já em sépia.

Descai suavemente a pose, o rosto frio ganha calor, os lábios sorriem. O seu drama, a sua mentira, o seu opróbrio. Aparentar o que não sente. Fora treinada para isso. Assumira o papel.

Nada e criada num mundo de valores já extintos, de deveres servidos, de padrões convencionados, de normas aceites e verdades insofismáveis, Camila geriu tudo isto de forma fúlgida permitindo-se a um certo cintilar intelectual capeado pela sua graça, e elegância natural, o que a tornou numa referência no seu meio. Casou cedo. Camila frequentou as grandes salas da cultura do mundo, foi vestida pelos grandes mestres do dedal, degustou manjares, bebeu néctares, tudo isto entre seis maternidades. Sempre radiosa, sorridente e objectiva. Uma vida cheia, não de vazio mas antes de alter-ego. Inexoráveis, os tempos trouxeram o vento. O vento que varria o embondeiro do jardim de sua casa. As folhas giravam pelo chão, levadas em dança rodopiante tal como sopraram nas voltas da sua vida. E o vento veio, e partiu, levando na sua espiral revolta, a sua vida, e mais alguma coisa de si. Foi assim um voo desnorteado, soprado e cinzento. Quando pairou, algures, numa terra que mal conhecia, pisou terra firme, e se sentou á espera de outros dias, tinha já dentro de si, aquele desdém que lhe amargurava os sentidos, aquele veneno que lhe latia as veias e se soltava em palavras ditas acres. E o vento continuou sibilando em seu redor roubando-lhe as suas gentes. Eram turbilhões que a desancavam, que a faziam tremer, que a violavam roubando-lhe a sua carne, porém no retrato do quotidiano surgia lívida todavia altiva. Diziam dela, ser uma pessoa intragável, dura e inquebrantável. Uma verdadeira peça. Ela sabia-o. Tanto, que por vezes, quando se enfrentava com os mais directos, conseguia sorrir de amargura. A voz era metálica de ríspida, o discurso curto e duro. A última palavra, a sua. Separavam-na dos seus filhos, netos e bisnetos, não abismos de idade mas antes de vivências. Ela fora uma Dama, eles eram apenas Gente. O seu desdém, não era provocatório nem contingente, era sim, uma disfunção de geração, um poço de vivências, um abismo de conceitos.

Camila D’Andrade senhora singular, mãe sentida mas ausente de afectos, rica de benquerenças e orgulhos resguardados, desfia na sua mente o percurso da sua prole e dos seus vindouros. São belos os seus. Têm a graça e a raça da origem. Gravitam pelo mundo tal como ela o fizera outrora. São Gente denodada em busca de um pouco do fulgor de outros ventos. Ora de levante, ora bora, ora siroco e ainda tramontano.

Aviva-se-lhe a memória.Recorda. Olha o mar, que está do outro lado, depois do embondeiro, deslizando na areia fina adormecida pela neblina da manhã. O azul, aliás a sua cor preferida, remansa sob os ténues raios de sol. É o belo, ali, na mão do olhar. A perfeição, numa golfada de sentir. Sente-se inundada, aquele momento será, para sempre, seu. Suspira, dilata a alma.

Vinda de não se sabe onde, uma nuvem, mais outra e outra, acinzentam e enegrecem o que era puro e diáfano. Uma leve brisa que agita o embondeiro, mais outra ,e outra. Em breve os ramos vergam-se, cospem as folhas, varrem o ar em dança abrutalhada. E o seu mar? Revolve-se em turbilhão, agita-se, torna-se denso, escuro ora azul pesado ou verde opaco. O vento cobre o seu quadro, o vento despe a sua alma, o vento dirige o seu estar, o vento chora a sua vida, o vento ventado do tempo passado.

O vento varrido, batido, perdido de si é a chave da sua história. O vento da vida, dos tempos e das gerações. O alísio, do seu mundo passado, dá a mão á nortada do presente, com a veleidade de um futuro adalor. Os tempos virão de mais suavidade. Os tempos da sua Gente.

Adormece breve e leda. O sonho ventado do ontem na brisa do amanhã. Assim Seja!


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07 fevereiro, 2008




"Enivrez-vous" de Charles BAUDELAIRE


Texte extrait du Spleen de Paris.

Il faut être toujours ivre. Tout est là : c'est l'unique question. Pour ne pas sentir l'horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.
Mais de quoi? De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise,
Mais enivrez-vous,
Et si quelquefois, sur les marches d'un palais, sur l'herbe verte d'un fossé , dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l'ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l'étoile, à l'oiseau, à l'horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est; et le vent, la vague, l'étoile, l'oiseau, l'horloge, vous répondront : "Il est l'heure de s'enivrer!
Pour n'être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous;
Enivrez-vous sans cesse ! De vin, de poésie ou de vertu,
à votre guise."

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05 fevereiro, 2008

Check out my Slide Show!

«NINGUÉM SE CONHECE»
Francisco Goya

03 fevereiro, 2008





O homem compreende tudo com a ajuda daquilo que não compreende.
(Autor desconhecido)



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Chagall

Under your white stars", a prayer-lyric, written by Israeli-Yiddish poet Abraham Sutsever, the bard of the Vilna Ghetto.

Under your white stars
give me your white hand
my words turn into tears,
receive them in your hand.
When it becomes night
let the stars light up the dept of my glance
so I find quiet in the darkness,
allow you to weep again.

Only you hear what I ask,
only you know my pain.
Look at this fire, this I carry
and it burns in my heart.
In the cellars, in the dungeons
the freedom is in the death.
On the houses, on the roofs
I shout: "Where are You, God?"

Restless I look for You,
chased by death.
Only for this song I allow me a pause,
and I sing for You, oh God.

29 janeiro, 2008

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A fome.

Na madrugada fria, parca de luz e cinzenta de tempo, Rosália puxa o cobertor puído para o rosto, encolhe-se no côncavo da cama, guardando todo o calor naquele breve espaço. São quase cinco horas da manhã. O vento assobia no granito da casa e depois sobe aos vidros e senta-se no velho telhado musgoso dos anos. Encolhe-se mais. Tirita. Não tem roupa quente. Breve casaquito de lã serve de aconchego nas noites geladas. Os pés vestem-se de meias de lã, daquelas grossas e ásperas já recosidas e que serviram nas socas. O marido, a seu lado, também ele em novelo, dorme no ressono da madrugada. Encosta-se na partilha do calor que o corpo teima em não ter. Treme e humedece os lábios ressequidos do ar. Tenta fechar os olhos e apagar os ouvidos, mas o vento tremula lá fora chiando nas telhas partidas. O ar gélido entra pelas frinchas e pelo chão de tábuas finas dos anos. As paredes desenham fantasmas vindos da janela onde as cortinas já gastas dançam ao som da melodia da madrugada. Volta-se mais uma vez, o rangido acompanha-a. O seu Inácio estremunha e diz-lhe entaramelado: -“Tá queda!”

Rosália espiga de centeio maduro e cheio, enrosca-se no seu Inácio e deixa o resto das horas cobrirem a madrugada. Quando o sol pálido despir o casaco do céu, ela terá que se erguer, acordar os pequenos, arranjar-lhes a merenda, fazer a cevada, dar um jeito nas camas, pôr umas batatas descascadas no pote e juntar-lhes a água. Depois é descer a rua e entrar no carreiro até lá baixo. Sempre a descer quase até á orla do rio, até ao lameiro. Hoje há que cegar o azevém. É sua a tarefa. Já de avental posto, socos calçados, lenço amarrado, casaco cinzento, velho e gasto a aconchegar os ombros de carnes já fugidas. Rosália dá a salvação aqui e ali, pergunta por um ou outro, e sempre sorrindo num trejeito de lábios presos, continua caminho abaixo.

Vê a sua terra ainda pestanejando na neblina da manhã. Está ainda parada. Pouco trémula. Apenas o ar é fresco de límpido. O rio corre tão manso que nem bule. Também dorme. A sua cor ainda não está destapada. Olha em redor e suspira. Chega-lhe o cheiro das couves que parecem abanar, da terra que se destapa, e das heras que se sacodem nos muretes de granito velho e tosco.Sente-se prenhe da sua terra, do seu chão.

O lameiro sorri-lhe no verde da manhã, acompanhado pelos ramos de umas poucas oliveiras já aliviadas do negro. Suspira, pega na gadanha e curva-se no corte rente do azevém. Assim despida de roupagem verde a terra suspira, recolhendo-se. Rosália torna a lide maquinal, num movimento circular de braço, ombro, braço, ombro, como se fora espiral. As mãos fortes e gretadas, onde os sulcos do trabalho se abeiram das veias, compassam a lide em apertos de raiva. Mais á frente ergue o tronco, endireita os ombros, e desafia com um olhar o ar que a rodeia. Perlam-lhe a testa e as fontes, gotículas que lentas escorrem adentro. Afasta pequenos fios loiros que teimaram em escapar do lenço, e estão agora empapados. Direita de gadanha na mão, olhar firme e ávido de muito, estica o braço esquerdo e aponta, algures, no espaço longo de azul forrado, zurzindo as sílabas: -“ Sacana de vida!” A gadanha silva o ar, depois descai como se fosse tomada por um soluço. Deixa cair os braços e retoma a faina.

Nestes momentos de solidão, pode, e extravasa toda a sua revolta, asco, e fúria. Ainda estão vivos os outros tempos, quando trabalhava na pequena empresa, tinha o seu salário, o seu Inácio também. Viviam na vila num apartamento cómodo. Os pequenos, dois, quase seguidos, porque assim os tinham planeado, estavam na creche. Tinham a sua vidinha. Não eram limitados nem iluminados. Eram gente viva de um povo. Porém a empresa começou a ir-se abaixo, depois de percalços de salários atrasados, acabou por fechar. Despedidos, com contas para pagar, só tinham tido uma única solução. Voltar para a aldeia, para o quase casinhoto dos pais dela, já fustigado pelos anos e tempo. Sem quase condições. Fora um recomeço amargo. O recomeço destes novos tempos onde a vida se torna mutável de vazia. Fizeram umas obras, umas pequenas coisas, ela tinha esfregado, esticado e puxado. Voltado aos tempos quase de antanho. Mas as crianças tinham sido talvez as mais doridas. O seu pequeno mundo tinha aberto uma brecha nas cores da quase perfeição. O Inácio trabalhara á jorna mais uns biscates de inicio. Agora já tinha um empregozito numa oficina, coisa que ele detestava, pois o coitado era mais de papel do que de mãos, mas tinha que sacar o dinheiro para alimentar as crianças. Quantas vezes, a sua barriga dera horas e troara de vazio? Tantas, a sua e a do seu Inácio. A fome batera-lhe á porta quando se dizia que o mundo avançava. Não era de grandes tiradas de pensamento, mas achava que algo andava mal na cabeça dos governantes deste país. Olhava em redor e só se ouviam queixas, dores. Os sorrisos estavam fechados, as pernas tornavam-se mais trôpegas. Não, não era a idade, era a vida, a sacana desta vida, parida de ais e uis! Cospe de raiva. Despeja o amargo que lhe vai nas entranhas.

A manhã já vai alta. Acama o azevém para o seu Inácio o carregar mais tarde. Os animais já têm ração. O pior é as gentes. Inda hoje vai ser um caldo e umas batatas. Está-se quase no fim do mês e o dinheiro é curto. A janta é sempre um pouco melhor, há que alimentar os pequenos e a vergonha de mãe impede-a de lhes negar uma refeição quase normal. São tão finos os seus pequenos. Duas cabeças castanhas, e quatro-olhos cheios de luz abertos para a vida. Como impedi-los ainda de sonhar? Mãe que é mãe, não faz, não pode fazer isso. Quantas vezes na cama rangente, do seu quarto despido, chorou com o seu Inácio, desesperou pelo dia seguinte, suplicou por pão. Tantas, Senhor! E os olhos orlam-se de lágrimas, não são doces, são amargas, agudas, viscerais de ácidas. São lágrimas de mãe e de mulher.

Sobe lenta o carreiro, o avental vem enrolado no sujo da terra. As mãos poisam de doridas nas pernas que avançam. Um passo, mais outro, e outro. Os socos matraqueiam nas pedras aqui e acolá. É seco o calcar, pesado de sentir, agitado no movimento. Rosália avança ao compasso dos pensamentos. Entrechocam-se as imagens passadas com as presentes, apenas as do futuro são nadas, vazios sem moldura.

-Será que a vida tem que ser assim? – Murmura. Será? Tão dura e áspera, porquê?

Que país é este onde as suas gentes sofrem o amanhã de cada dia, como se tivessem que expiar os erros daqueles que sentados á mesa do poder se empanturram de tudo esvaziando as cestas daqueles, que como ela joeiram o pão-nosso de cada dia?

Rosália bebe o ar fluido da manhã já quase morna daquele inverno da sua tristeza. Os dias ocos de esperança, frios de sonhos e acres de luta no rol do tempo nu de futuro. As gentes, as crianças, tudo tem fome de futuro. Fome negra, ávida e ansiada, fome desejada, fome de esperança, fome de sorrisos, de rostos abertos e corações leves. De baladas cantadas na alma de um povo!


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23 janeiro, 2008

Mulher de Gabriela Martins





Mulher

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não tive bonecas
nem as fadas me fadaram

não

não tive sonhos
nem rotas nem barcos

fui alguém

ninguém
sobreviveu a mim
na rota de colisão entre o antes e
o depois

depois

não ficou nada a não ser um rasgo
de mulher

vestida de vermelho e
solta entre as feras

.há.de sobreviver.


Gabriela Martins in Luso Poemas


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20 janeiro, 2008

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  • [PAV.jpg] Agradeço a Ana Luar pela distinção ,e mais ainda pelas palavras que me dirigiu. Todos que me visitam, sabem como ajo perante estes mimos. Gosto de os partilhar convosco. Pois bem, meus amigos, uma vez mais uma pequena lembrança.

19 janeiro, 2008




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Tango da Vida

As paredes esquálidas sombreadas de amarelo pardo e escuro triste, o chão rangente, esfregado de humidade escorrida, aqui, e ali, já carcomido de tábua podre, a janela no meio da parede em esquadria torta, olhando parada a vida, que de igual suja os vidros já foscos de amanhã, a cadeira velha, gasta que descansa ao canto na espera de um corpo macio. Tudo é cinzento, triste e atávico no quarto da Vida.

O Cheiro, não se sabe porquê, é de suor; suor escorrido, transpirado e molhado. Eleva-se em nuvens, molha as almas e invade os corpos. O suor rebola o ar, dá-lhe o odor vivido do desejo.

A porta geme e entra o homem, gingão, moreno, franzino, maleável, permeável. A brilhantina escorre-lhe no azeviche da cabeça, o olhar corta o cheiro e embala o desejo. A música crepita nos acordes. Três, únicos, marcantes, vibrantes e dançantes. O homem gira, agacha-se, compassa. Levanta-se, e entrega-se ao som que crepita de tom, qual labareda vermelha. Estende a mãos. Ela chega, carne viva, roçada e criada de movimento. Juntos, unidos, em ritmo único abanam, baixam, cruzam, afastam, inclinam, um, dois, três, em baixo, um, dois, três, ao lado. O olhar é fixo, interior, sentido. Dobra-se, ergue-se e parte-se na entrega.Viola-se no prazer. Suspira no escutar e abandona-se no vai e vem.

Há paixão, ritmo, carne. As pernas entrecruzam-se, tocam-se, exploram-se. Há prazer. Os corpos dúcteis entrechocam-se no desejo, e o suor invade a cabeça, desliza pelos cabelos que empapados se tornam mais vivos e dançam também, colando-se tal como os corpos. Exala o suor do sentir, fétido de desejo, prenhe de paixão. E o movimento único, compassado, ao som das palhetas de bandoneón grita em raiva dolente, em escárnio cuspido, em sentir violado. Tudo salta, tudo irrompe em gestos, olhares e dança. Há fogo, há labareda. Há cinza, tristeza. Vermelho e negro. Corpo e alma. Mais um passo, mais um acorde, e ela requebra, articula a perna esquerda em movimentos fortes e vibrados. Baixam-se de novo em uníssono de movimento, alagados no fluir da música. É dança canalha, suor perlado, olhar dividido, roçares mastigados. É raiva, é dor, é asco ,é paixão. É assim que se dança Tango da Vida…







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13 janeiro, 2008

Uma Estrela e um Rebuçado.



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Uma estrela e um rebuçado

Era uma vez…

Uma menina pequenina de olhos lindos ,e caracóis escuros ,de sorriso gaiato dançando nos lábios de uma boca sempre vermelha de alegria. Os olhos brilhantes de luz interior ora se abrem deslumbrados ora sedentos de vida. Um redemoinho de gente, uma ternura vestida de quatro anos. Chama-se Joana.

Joana espevitada de palavra bem silabada impondo regras, não se deixa ficar aquém, o seu dedito espetado, sorriso franco, caracóis dançando e cinco reis de gente, fazem dela o arauto da pequenada. Joana é traquina, ladina e menina. Menina de ideias saltitantes e gestos falantes. Tão depressa é um docinho de meiguice envolvente como um diabinho de saias troante. Joana cinco reis de gente, um quinhão de alegria e um alambique de meiguice.

Ora, num destes dias, o avô de Joana foi embora. Assim de repente. Ela bem viu o pai pôr a gravata preta, andar de cara triste e olhos aguados, ela viu a mãe também estar mais calada. Pressentiu mas fingiu não perceber. Criança tem destas coisas, sabe, mas faz de conta. Lá no fundo do coraçãozinho fica assim como que tivesse um arranhão, mas o faz de conta vem, e veste o arranhão de cores do sol e a gente esquece. Por isso é que se é criança.

Houve um dia que a avó chegou a casa sozinha com o pai e a mãe. O avô não veio. Então a mãe explicou que o avô já não estava cá que tinha partido para outro lugar também lindo e bom. Joana abriu os lindos olhos, entreabriu a boquita. Ouviu a sua irmã, Maria, já uma menina de sete anos que sabe ler, escrever e desenhar e percebe muita coisa, chorar, chorar muito. Joana teve vontade também, mas porque é alambique de meiguice, estendeu, não só o dedito, mas as mãozinhas para a Maria, que desconsolada soluçava, e disse naquela vozinha doce que estremece o coração dos grandes:

-Maria, não chores. O avô, agora é uma Estrelinha!

Naturalmente que a Maria soluçou, e a avó também, o pai pigarreou e a mãe ficou com os olhos marejados. Procurou-se estabelecer a normalidade, fez-se questão. O esforço nestas alturas é colaborante entre as vontades. Veio a noite e a hora da caminha para as meninas. A Maria e a Joana despediram-se da avó e foram para o quartinho, deitaram-se, disseram boa noite e então é que foram elas. A Joana chorou tanto, e tão desconsoladamente como se o arranhão do seu coração se tivesse aberto numa ferida muito grande, daqueles dói-dóis que precisam de ir ao doutor. Chorou, chorou como se cinco reis de gente fossem, não um alambique de meiguice mas antes de tristeza.

No dia seguinte já sarada e lavada do seu arranhão- dói-dói, Joana levou o dia mais ou menos serena, coisa invulgar naquele diabrete de saias. Era sábado ou domingo, não sei, mas também não importa. Que era dia de anos, isso era. Maria, menina crescida e já com amiguinhas lá foi, Joana também, porque ao diabrete toda gente se derriça. Certamente que pularam, riram, e cantaram. É a infância. Os corações, nestes verdes anos são tão limpos, que dá para tudo, rir, cantar e chorar, tudo num dia como se fora sol, chuva e depois o arco-íris de mundo.

De olhos vivos e sorrisos abertos entraram em casa. Contar as maravilhas da tarde foi relato detalhado, porém Joana que trazia na mão um saquito de rebuçados que não largou. Depois dos beijinhos, de se despir dos casaco e demais atavios, senta-se num cantinho, despeja o saquito e muito concentrada, escolhe, mexe, remexe, escolhe, pesa e sopesa. Decide-se finalmente.

Com aquele sorriso de olhos e lábios que iluminam o rostinho moreno e abanam os caracóis, diz junto da avó:

- Avozinha, olha, toma este rebuçado para o avozinho, para quando ele vier do céu, e dá-lhe também um beijinho meu.

Claro está que a avozinha lacrimejou, claro que guardou religiosamente no seu cofre pessoal o rebuçado, qual jóia viva, claro está que contou a todos esta preciosidade de um alambique de meiguice chamado Joana, claro está, que eu, sua tia, tive também que vos contar esta doçura.

E este foi o meu conto, de uma de uma princesa linda mais de uma estrela, um rebuçado e um alambique de meiguice!


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10 janeiro, 2008






Quis

Quis um dia criar palavras,

Belas, soltas, fortes e pensadas,

Quis um dia contar,

Contos de gente, fábulas de vidas,

Sonhos desejados e lágrimas caídas.

Quis um dia chorar,

Sons magoados de sílabas lançadas,

Ao vento áspero dos afectos.

Quis um dia acreditar,

Na amizade ou amor, digam o que for,

Quis sorrir no vermelho da dor,

Por entre gotas roladas de sentir,

E tréguas de porvir.

Quis ser fraterna, amiga, companheira,

Breve e simples mensageira

Desta solta melopeia cuspida,

De andrajos vazios de afectos

E alinhavos podres de sentires.

Quis…

03 janeiro, 2008




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O tempo de um Pai

Foi ontem? Não, já não sei. O tempo correu tão voado que cheguei ao hoje sem me lembrar do ontem. Foi assim que o tempo marchou. Outrora, dizem, era sereno e límpido. Corria dolente por entre as vidas naquela remanso gordo e feliz. Hoje desliza célere como se fora águia em voo picado. Chega, mal pára, e parte. São os dias da vida, chamam-lhes modernos. Talvez.

Há poucos dias, quando ainda sabia se era ontem ou hoje, vi, na rua , o tempo despedir-se. Estava de passagem, o costume, suspirava. O tempo de ontem já não volta porque se perdeu no tempo de hoje.

Recolhido no tempo de ontem, mas olhando o de hoje, sem olhos de ver, Jacinto tamborila os dedos na mesa de tampo de vidro como que marcando o compasso da vida. Pende-lhe a cabeça, porque o peso do tempo corre-lhe na memória. O olhar prende-se no minúsculo espaço frontal que as pupilas habitam. Está velho e engelhado. Está gasto do tempo sem tempo de amanhã. Também não quer.

Jacinto parou no tempo das memórias. Daquelas que de vívidas passam a enroladas de murchas. Parou naquele momento, em que se despediu do amanhã, porque a vontade se largou, numa viagem por sítios estranhos. O ontem tornou-se o horizonte, o hoje é porta que não transpõe, o amanhã é viagem esperada.

Os dias embrulham-se no tempo cinzento de um roupão vestido por cima de um pijama cinzento de anos vividos. Já não veste a camisa, nem põe gravata. As calças, sempre tão alinhadas, jazem sentadas no cadeirão, á espera de um tempo que não mais chegará. Jacinto veste o tempo de partida. Esperou-o e não teve peito para o sacudir. Não teve vontade, por ter vivido demais, cansou-se dele. Jacinto tem muitos anos e está cansado, cansado de si, da sua forma de gente. Despede-se dos seus, sorrindo de longe, porque de perto não tem força. Sente que vai partir, sente que a vida está de braço dado com o tempo que começa a girar para outro sítio. E o tempo ronda, ronda. Ora abranda, ora aperta. Parece um assobio silvando a vida. É triste, muito. Dói. Jacinto é homem, é pai. Gente que vê o vento soprar assim de levante sente um arrepio na alma e no sangue. Gente que é filho e ama o pai. Jacinto vai partir no tempo do vento. O tempo de vida cessa, e Jacinto- pai, parte. Uma brecha de si, dedilha palavras tentando enganar o tempo, tentando recordar, tentando racionalizar o que já é racional. O tempo de partida.

Jacinto que não é Jacinto, é pai. É o meu pai. É ele que parte, desprendendo-se no tempo e das amarras. Solta-se assim de leve, assim de breve. Fica a imagem, o sorriso, ficam as palavras e como ele embalava as palavras no ócio rico do pensamento. Pai, meu pai, porque parte? Eu sei que o tempo o embala, que o tempo o espera. Eu sei que o corpo está exaurido, eu sei. Eu sei que está exausto, eu sei. Eu sei tanta coisa, pai, mas eu não sei nada, meu pai, quando o vejo de partida. Oh. Como detesto o tempo!

Pai, meu Pai amo-o sempre, para sempre. Digo adeus, deixo um beijo. Para sempre. Recordo-o.

Uma lágrima, um beijo, um pai, uma filha.


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01 janeiro, 2008


Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?)
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.


Carlos Drummond de Andrade