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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

07 setembro, 2023

III

 Recostada nas almofadas, Isa, fecha o livro. Puxa o edredão ajeitando a barra do lençol. O calor da cama aquece-lhe o corpo e deixa-a dolente. As recordações tornam-na sonolenta. O passado é longo… o frio gela o ar. Lá fora cai a neve, fria e branca. Dentro suspira-se o tempo. O calor do aquecimento aquece-lhe as memórias naquela modorra, entre os lençóis coloridos, Isa semicerra os olhos negros e as imagens continuam a povoar-lhe a mente. Os cabelos já se vestiram de cinzento, a pele morena é agora pálida do frio, do tempo, da doença. As mãos fortes e doces poisam na barra do lençol. Ainda há dias tremia na incógnita da cirurgia e hoje, está ali, tranquila na sua doença, mas pronta para agarrar a vida, como sempre. Na mente livre afluem-lhe imagens dos dias. Preocupa-a sobretudo a vida dos filhos e dos netos. A felicidade de Isa chegou anos depois, muitos anos depois. Não é a que esperou, mas foi a que recebeu. 
Tinham casado tão cedo, dois garotos ainda, mas a ânsia de viver no afogadilho dos acontecimentos, fizera o casamento. Noivara com o riso, o corpo, e a alegria da vida. Para trás ficara o altar da convenção. Ainda hoje não percebe bem como tudo foi tão fácil. Não houve drama. Os tempos de instabilidade ajudaram. O tempo dourado acabara. Vivia-se, sobrevivendo, na voragem dos aconteci- | mentos, no medo do desconhecido, na corrida para a fuga. Ainda se vivia. De pequenos relâmpagos aqui e ali, mas na verdade, o tempo acabara. Sem o saberem, ela e Luís tinham aberto as portas do outro lado, do tempo a seguir. No tempo a seguir tudo tinha pressa. Pressa de esquecer, de viver, de fugir. A Faculdade ficara para trás, o que importava isso, nesse tempo de vida. Os anos eram longos, verdes e cheios de promessas, eram os anos que viriam com espaço para tanta coisa ser feita depois não precisavam de atavios. Eles eram os mais belos acessórios de vida. E tanta coisa poderia e seria feita. Depois os dois filhos tinham nascido com o ritmo do desejo jovem. O caracol da vida começou aí a desenhar a sua espiral. Lembra-se como se fosse hoje, o espanto da mãe quando assim sem rodeios lhe disse que se queria casar. A criatura quase que rebentou. Recorda o mau estar e a pergunta sacramental: Estás grávida? “O móbil para semelhante ideia. O pai ao saber, ficou vermelho como se um ataque de apoplexia viesse a caminho, depois voltou-se para a mãe e disse sentencioso.” Que bela educação deste às tuas filhas, não há dúvida!” Claro que a mãe recalcitrou, gritou, disse- -lhe o que lhe competia, e ainda o que não devia. Claro que foram três dias chatos, pesados e só levemente vividos porque a irmã mais velha lhe deu apoio, todavia sem ser muito óbvio, porque como Isa recorda, Clara, a irmã teria sempre culpa de alguma coisa, desde que não preenchesse os quesitos na mente ou no imaginário materno. O irmão, um garoto de treze anos, mas mesmo garoto, com um feitio esquisito, pois que não passava cartão à família que não à mãe, não se manifestou, nem sim, nem não. Saber o que ele pensava, nunca a preocupou, mas neste momento preciso, verifica que nunca soube, nunca precisou o que Vasco pensava ou queria. Engraçado, sempre esteve ausente com a sua presença calada. A semana acalmou, os pais acabaram por receber os futuros compadres, que eram do seu |círculo de amigos, o que de certa forma facilitou as coisas, e entre dentes, lá aquiesceram. Contrafeitos, mas a grande derrocada avizinhava-se a passos largos. Não havia nem houve muito tempo para grandes ponderações. E casaram-se. Dois garotos! E a derrocada veio. Um corre-corre de medos, de malas, de tempo sem amanhã. Uma confusão na qual os mais velhos decidiram. O importante era salvaguardar a família. O tempo fugia, os imponderáveis nasciam. Assim casada de fresco, sem saber realmente o significado de casar, para além de uma cama comum e sexo sem culpas, Isa viu-se de mão dada com o marido e as malas. A memória esbate-se nas recordações de então. São ténues, tudo passou a correr. O tempo de respirar foi entrecortado pelo momento seguinte. Apenas salta veemente a lembrança das mãos fortes de Luís. Aquele entrelaçar deu-lhe a confiança que a neblina da ocasião a impedia de pensar. A Madeira tinha sido o primeiro sossego depois da partida. Para trás, as vidas, de outro tempo. A família de Luís era madeirense, nada mais natural, pois, do que o seguir. Acomodou-se perfeitamente ao ambiente e aos novos familiares, até porque tudo se vestia de novidade e aos dezassete anos ainda era uma criança de corpo esguio e formas de mulher, mas em tempo de crescer. A família era diferente da sua, na expressão dos afetos. Beijavam-se e abraçavam- -se. Não havia contenção de emoções. Como se a insularidade os obrigasse a ser envolventes, a partilharem a vida no bom e no mau, eram afetuosos no seu estar, naturalmente, demonstravam-no sem pudores, maravilhou-se. Na sua casa os gestos de afeto eram desconhecidos. O beijo matinal, o de boas noites ou de cumprimento fora apenas o contacto físico que conhecera entre os pais e os irmãos. Clara era, ainda assim, quem, de vez em quando, lhe apertava as mãos colocando-as entre as suas, lhe dava umas palmadinhas no  ombro ou lhe fazia um carinho breve na face tal como à irmã mais nova, Maria Ana, bebé por então. Espantou-se, admirou-se, e lentamente começou a retribuir, libertando o gesto, o sorriso e até o estar. Soltou-se. Tornou-se ainda mais risonha, mais carinhosa, mais viva, se possível fosse. Aquele embevecimento de afetos fê-la adormecer por muito tempo. Ali entre a neblina macia com cheiro a sal e o verde tinha sossegado uns tempos. Deu para os dois filhos nascerem. Assim seguidos. Tudo se fazia num correr como se quisessem apanhar o tempo que se escoara. O seu embevecimento de afetos, a alegria espargida nos gestos, foi-se recolhendo na medida exata em que as dificuldades se foram alimentando do tempo. Os cursos iniciados antes e após, tinham ficado em permeio como tantas outras coisas. Os filhos eram agora a prioridade. O futuro. Pensava- -se, então, assim. E tinham emigrado. Para o Canadá. O cunhado já andava pelas terras do bacalhau. Ela, Luís e os garotos partiram com a alma cheia de futuro e o coração dorido de passado. Os primeiros tempos. Os primeiros tempos. Como os lembra. Não tinham sido nada do que sonhara. Fora tudo frio. Frio como a terra que os acolhera. Aquela alegria quente da alma fora arrefecendo. Dera lugar ao sorriso frio, às muitas palavras vazias porque os silêncios tinham-se instalado na mente. Silêncio de vida, silêncio de gestos, silêncio de afetos, silêncio de ser. O tempo tornara-a num autómato. Uma mão aqui, outra ali. Um corre, corre, uma sobrevivência, um rosto que procura o amanhã no presente cinzento e o tempo correr. Dias e dias de esforço físico, mental. Dias de luta pelo pão, pela sobrevivência entre outros. Luta dura, luta de quem quer viver o depois. Alvoradas escuras onde o calor da cama se pegava ao corpo deixando a mente numa zonzeira. Em cada manhã os gestos eram mecânicos e sem expressão, pois o sono rondava. Autómatos. E bem cedinho como todos os povos saxónicos gostam, lá estava ela, o marido e os garotos a fecharem a porta ainda sob a luz dos candeeiros. Regressavam à tardinha mudos e estoirados sem vontade de falar, sem vontade para muito mais que não fosse ter forças para o dia seguinte. Os garotos aprenderam a ser independentes pelo lado menos bom. Mas cresceram despegados de grandes objetivos. Mas quem os tem quando desde bem cedo se vive numa espécie de linha de montagem? Pouco se fala do vazio que os filhos dos emigrantes sentem enquanto crescem. Os sonhos são fabricados muitos anos depois quando se tomam adultos, e de tantas vezes pensados tomam-se por quase verdades que jamais foram vividas. Relembra vagamente as promessas que ela e Luís tinham feito. Tudo se fora. Depois os anos trouxeram o conforto do dinheiro. A sua vida tornou-se estável, no entanto nunca recuperou o tempo perdido dos afetos, dos seus afetos. O filho mais velho sempre fora instável. Dentro de si carregava a raiva. Logo que algo não lhe corria bem, ou que as regras eram demasiado fortes, Nuno explodia em acessos tremendos. Os disparates na escola sucediam-se, as notas eram baixas, mesmo baixas. Em casa Luís batia-lhe. Chegou a ter a polícia à porta. Teve medo. Muito medo. Pelo filho, pelo pai, pela vida, por ela. Os anos foram limando o caráter do mais velho enquanto o mais novo começava na mesma senda. E Luís afastou-se. Mergulhou na sua carreira, enfronhou-se. Ganhava bem, as férias eram boas, a vida corria. Ela começou a sentir o vazio, um frio que lhe comia as entranhas. De início o tempo era partilhado com os tachos e as receitas antigas, mais as novas que batia nas tigelas da cozinha. Depois veio o aborrecimento. As mãos ressentiram-se e os quilos aconchegaram-se-lhe na carne. Desistiu. Os arranjos florais prenderam-lhe a atenção. Esse jeitinho fê-la andar entusiasmada durante quase dois anos. Leu muito, assistiu a workshops, tirou pequenos cursos mas… desistiu. Em seguida retomou a velha paixão na qual já tinha alguma prática, | O guia turística na sua própria agência de viagens. O negócio esmoreceu como morre quem não nasce com muita saúde. Viu-se de novo em casa, com um Nuno cada vez mais problemático. Chamada constantemente à escola devido ao comportamento insurreto, Isa teve que parar com todas as suas atividades incipientes e consequentes e dedicar-se de corpo e alma ao mais velho. Ainda recorda o dia em que recebera um telefonema a meio da manhã do diretor para ir urgentemente à escola. Vestiu-se apressada, temendo o pior. Rapidamente tirou o carro da garagem e excedendo um pouco a velocidade que a neve aconselhava, lá se apresentou no gabinete de Mr. Immilish, um canadiano de origem indiana. Ele foi breve e peremptório: — O Nuno não só, terá que pedir desculpa ao colega e aos pais publicamente, a senhora terá que pagar os estragos, e se até ao fim deste trimestre, o Nuno não melhorar o seu comportamento e o seu nível de aprendizagem empenhando-se, o conselho da escola expulsá-lo-á. Será a última oportunidade que lhe damos, atendendo às vossas condições de emigrantes, nós almejamos que a futura geração possua o espírito canadiano. Todos que aqui nascem ou chegam desde muito pequenos merecem o nosso esforço. Fazemos isto pelo futuro, aproveite, aproveite Mrs. Silveira. Regressara a casa dividida entre a vontade de lhe dar uma boa tareia, de contar a Luís ou conversar calmamente com Nuno. Sentou- -se na cozinha, bebeu um bom chá quente, estava a precisar e chorou. Chorou não só pelo acontecido, mas por tudo, pela infelicidade que sentia, pelo esboroar da sua vida, por ser mãe, por não ter desempenhado o seu papel bem, julgava. Foi aí que pela primeira vez teve a noção exata que cometera um tremendo erro ao casar-se tão jovem, ao mergulhar numa vida para a qual não estava preparada, ao pensar que o amor da juventude é duradouro, ao enganar-se a si mesma durante tantos anos. Os filhos, o filho com os seus problemas não |era senão o badalo da campainha da sua vida cujo som desconhecera algures por entre o tempo e a corrida. Aquele som magoava-a. Naquele entardecer, num céu de noite, teve talvez a conversa mais dolorosa da sua vida. Teve-a com um adolescente de treze anos, que rebentava de raiva e desamor por cada hormona do seu corpo, cuja alma se trancara para lá da porta da ternura. Sentiu-se tão culpada. No dia-a-dia nada previa que Nuno arrebatasse tais feridas. Naquele entardecer, Isa, desempenhou, talvez, o seu maior e o principal papel de mãe, amar Nuno. Soube fazê-lo. O rapaz olhou-a, avermelhou-se, gritou, caiu em si, chorou, chorou convulsivamente e agarrou-se a ela, dizendo entre ranho e lágrimas: — Desculpa-me Mammy, desculpa-me, mas, mas, eu, eu, não sei o que me passa pela cabeça, eu rebento de raiva, de vingança, de nada.… Achei que não gostavam de mim, que cá em casa ninguém gostava de ninguém, depois na escola sou sempre o de fora, o estranho. Eles desprezam-me. Porque sou diferente, porque não sou desmaiado nem cabeça de milho. Odeio este país, odeio-os!” 

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 — Nuno, Nuno. Tem calma, filho. Respondem-te à tua forma de agir. Tens que te tornar o melhor, deves isso a ti próprio, aos teus pais e aos outros antes de ti, que são a nossa gente. Não estou a ser meiga como tu desejarias. Não posso, porque não é tempo para esquecermos o essencial. Tens que mudar, tens que lutar por ti, tens que gostar de ti. Nós amamos-te. É verdade que não sabes quanto, porque não temos tempo para to demonstrar, e se calhar, também não temos forma ou jeito. Uma culpa nossa. A vida tem sido dura. O carinho ficou nas Ilhas. Está errado. Mas prometo-te que hei-de recuperar esse jeito perdido. A verdade, Nuno, é que todos estamos |um pouco perdidos, não sabemos se de nós próprios, se da vida. A miragem que um dia tivemos, teu pai e eu, de um futuro para vós, de tanta coisa. Afinal, temos vindo a perder o pouco que tínhamos, a paz e a harmonia na nossa família. Talvez um dia o consigamos recuperar, mas por este caminho, não me parece. A verdade, meu querido, é que toda, a família também está perdida. Não és só tu. Mas temos, vamos recuperar o amor, temos que o conseguir, mas antes de tudo eu vou mostrar-te como te amo, acompanhando-te mais a ti e ao Tiago. Vamos recomeçar, meu filho. Promete-me que episódios destes vão acabar... vai ser difícil, mas és capaz. És forte e eu amo-te muito, muito mesmo. As pessoas novas ou velhas só respeitam quem é superior, e mesmo assim, sabe Deus, por isso Nuno, tens que mudar, tens que começar a gostar mais de ti, sobretudo a dar crédito às tuas capacidades porque és um rapaz inteligente. O que tens feito até agora tem-te diminuído, tu tens-te diminuído perante aqueles que acusas de te rejeitarem. Paciente e dolorosamente, Isa, apertou-o entre os braços bem perto dos seios que um dia, já tão atrás, o tinham alimentado com tanto amor e, carinhosamente olhou-o de frente invadindo aqueles olhos cinzentos cujas pestanas se arramelavam nas lágrimas, assim despiu-lhe o sentir, vestindo-lhe o interior da ternura, de amor de mãe. — Oh mammy, tu ainda gostas de mim? Mas e o Daddy, não nos liga, não te liga, pois não? — Nada disso, Nuno, todos gostamos uns dos outros, apenas não sabemos demonstrá-lo, porque também não nos ensinaram. És o nosso filho, o Tiago é nosso filho. Ambos sois o melhor pedaço de mim e do vosso pai Nós amamos-te muito e ao teu irmão, é verdade meu filho. Deita fora essa infelicidade, apoia-te em mim sempre que algo não correr bem, porque eu também vou aprender a mostrar-te o meu amor, meu querido.  Nuno e Tiago, eram os seus rapazes, meigos, truculentos, envasados em turfa. Eram a terra negra, fecunda e imensa de um povo sentido. Ali estavam perdidos entre canteiros perfeitos de vontades e disciplina. Eles eram a liberdade de ser, em contraponto à ordem calculada e vigente. Dois vulcões adormecidos à espera do dia. Do bem ou do mal. Da vida, em suma. Cresceram. Tornaram-se homens. Razoáveis, bom, melhor do que isso. Boas pessoas. Carregam em si os elos do afeto já semiabertos, pois que o pudor embrulhado de gerações, abriu-se. Os afetos não deveriam ser são tão ocultos quanto o respirar, pelo contrário, deveriam possuir a visibilidade do rir e do chorar, dado que não foram castrados. Nasceu ou recriou- -se, então, a primeira geração que não caiu no erro do desamor. Hoje Nuno já é pai. Duas cerejas doces do seu ramo já dobrado. Tiago e a mulher tiveram outros filhos, as carreiras, que criam desveladamente. Isa suspira, os seus filhos caminham no futuro. O tempo de crescer, o seu de recordar para viver. África fora a meninice, a adolescência, hoje e ainda ontem a emigração foi a solução. As teias da vida. Primeiro a Madeira, a família de Luís tornara-se a dela. Lá e cá. A sua, só muitos anos depois, a voltou a aceitar, porque aquele casamento fora em tudo contrário aos ditames que a mãe e o pai ambicionaram. Era verdade, não tinha senão dezassete anos; era verdade que Luís tinha quase vinte, tudo isso era verdade, mas como explica urgência de estabilidade, de sonho, quando tudo à nossa volta, o caos se reflete e as hormonas falam mais alto. Foi no espaço de um mês a aliança amarela e redonda brilhava-lhes no anelar. Se fizera bem, claro que não. Passados tantos anos apercebera-se que perdera muito mais do que ganhara, apercebera-se que a sua vida ficara suspensa para se partir, depois. O destino, que também lhe pertence, foi traçado por ambos, inexoravelmente. Em Março de setenta e cinco casaram-se. Trinta e  cinco anos. São muitos anos. Nuno, o mais velho já vai nos trinta e quatro e o Tiago nos trinta e dois Ela nos quase cinquenta e seis e Luís nos cinquenta e nove. Meia-idade. Luísa, Isa para todos, sempre foi diferente da sua irmã Clara. Uma criatura nada complicada, extrovertida, muito faladora, uma excelente contadora de histórias, de rosto sempre sorridente mesmo que o mundo desabasse aos pés. A sua voz detém o carrilhão do riso. As frases são terminadas com uma breve risada, mesmo que, da boca tenha saído a mais grave acusação, o que é raro, porque Isa tem sempre uma desculpa para os outros e para si. Não é uma mulher feliz mas é uma feliz mulher. A felicidade que detém, não a que almejou, veio-lhe em pequenas coisas, triviais, maternais e materiais. Os sonhos da juventude, o sentir, desmaiaram, adormeceram como o resto do seu corpo. De segunda filha quiçá protegida, quiçá amada, quiçá mimada fez-se uma mulher não amarga, porque a sua natureza a isso é contrária, mas uma Isa acomodada, mais prosaica do que fora, mais dorida e sobretudo muito solitária. As suas recordações são a sua história, como partiu e como chegou. Não existe transcendência no seu olhar nem muita crítica, somente o desenrolar dos factos, o caminhar das vidas, e aquela dolência tão africana de outros tempos de meninice acompanhou-a sempre. Isa é a mais internacional dos irmãos, não pelos países que conheceu, mas sim pela sua própria maneira de ser. Espírito africano, compleição europeia, gostos de lusitanos e modus vivendi americano. Isa é descomplicada por natureza. Nada a altera, nem sequer a grave doença do marido há mais de três anos nem a sua, agora. Tudo na sua cabeça se solucionará. Acredita na sorte, acredita que alguém velará por ela, acredita sempre que o bom virá mais do que o mau. Não é pessoa de grandes confabulações. Ela e o marido no cimo, na base, em cada ponta, um dos dois filhos, as noras e netos. Entre a base e a altura  do seu triângulo desenrolam-se os dias, uns melhores, outros piores, outros assim-assim, mas sempre dias e anos que têm esculpido a sua passagem. A vida, não é mais que um percurso e, como tal deve ser percorrido sejam quais forem as estações, seja qual for o transporte. As inquietações metafísicas pouco ou nada lhe dizem. Depois a sua vida, assim que teve, respaldo material, limitou-se ao prosaico papel de mãe e dona de casa. Fez uma rápida incursão pela faculdade quando pensou em dedicar-se à escrita a fim de adquirir a técnica, porém outros afazeres mais importantes como o nascimento do seu segundo neto, neste caso, uma neta e o cuidar do primeiro, relegaram as suas intenções e desejos para um outro plano que um dia há-de ser. Não se sentiu roubada, muito pelo contrário, achou esta nova tarefa como algo pleno de sentido. Está deitada. O edredão aquece-lhe o corpo. Não fez ainda um mês e já está quase boa. Um carcinoma na tiróide. Está ciente da doença. Deita as mãos para fora. Puxa os dedos como se puxasse os sonhos também. Sacode a cabeça e os cabelos cinzentos agitam-se. Vai ser Natal. Vai ser Natal. Isa pensa que vai ser um grande Natal. Tem tantos planos. Tantos. Olha o relógio na mesa-de-cabeceira e suspira de novo. Duas da tarde. Só daqui a três horas é que a casa começará a viver. Primeiro Hugo, depois Tiago, o filho, e a nora que agora quase vivem por cá, e sobretudo os netos, Joshua e Emma, sete e quase dois anos, os laços da sua vida. Naquele hiato entre as memórias passadas, o presente magoado e o futuro incerto, Isa engole uma lágrima rebelde da alma. Um sorriso macio abre-lhe os lábios enquanto os olhos molhados, não de esperanças, pestanejam lentos. O tempo e a vida tinham-lhe pregado uma tremenda partida. Questiona-se amiúde, sempre que sozinha debita as suas inseguranças: “Será que vou conseguir, será que vou ser vencida?” Vencer, é uma vontade, mas para além de tudo o incerto, o | amanhã…. Sacode o corpo dorido e fraco. Compõe-no num trejeito de mulher madura. Suave desliza os dedos pela pele. Com a outra mão puxa o edredão e lesta nas suas possibilidades, salta da cama. Vai para a casa de banho. Mesmo na doença é tempo de recuperar o seu papel. Os cinquenta e seis anos ainda são magníficos na sua tez morena e olhos negros. Alta, esbelta na sua compleição de mulher madura. O sorriso é a sua grande jóia. O gargalhar em surdina um atrativo. O encantamento pela vida toma-a, ativa, ligeira e dona de si. Uma verdade que não sabe explicar, o seu encantamento pela vida. Tantas e tantas vezes, quando algo corria mal, desde as discussões com Luís à instabilidade dos filhos, a doença de Luís, o volte face das suas vidas e agora mais esta, no entanto, o seu sorriso, aquela sedução no rosto que a envolve. Ainda hoje, agora, ao olhar-se ao espelho da casa de banho, vê a nudez da sua alma, porém o fascínio na incerteza do futuro, permanece.

 É a sua natureza. Um mistério. A culpa não lhe bateu à porta. — Isa, I'm home! — I'm coming Luis, I'm coming, dear!