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Hoje tal como ontem os gritos originaram mais uma querela.
Tem sido assim ao longo dos anos.
Manuel, o marido, é um ser difícil. Um individuo cujo humor é
semelhante aos dias. Tem uns, em que se alaga, tem outros, em que
se confrange. Entre uns e outros fica aquele período difícil no qual
é quase impossível falar, pois que os gritos e o mau humor são uma
constante. Não aceita que o contradigam sobretudo quando se fala
sobre o meio rural e a sua dificuldade evolutiva social. A ancestralidade rural põe-no sempre em defesa. É como um caracol que ao
toque se fecha na sua casca, assim é com a diferença que enquanto
as antenas do caracol continuam macias, Manuel sem as ter, exibe-as
virtuais, acutilantes, veementes e defensivas. Sempre que o seu mau
feitio se interpõe à clareza do raciocínio, Manuel torna-se compulsivo em má educação. A ancestralidade aflora-lhe o espírito e dele faz
capa de imediato. A bestialidade oral e gesto tornam-se a sua defesa.
Desconheceu-o durante muitos anos. Tomou-o como uma pessoa
de génio controlado com espasmos episódicos, a vida, no entanto,
encarregou-se de o mostrar tal como é. Evita falar da sua infância e
juventude, aliás esconde-a.
Manuel foi uma criança de medos.
A necessidade de afeto foi sempre marcante na sua vida.
Gostava que gostassem dele, que o rodeassem, chegava a dar os
brinquedos, os poucos que possuía, para ter meninos junto dele.
Em casa, a mãe silenciosa no ramerrão da lide caseira jamais lhe prestou a atenção que carecia, e nem tão pouco o carinho que
necessitava.
— Nelo vai tomar conta da tua irmã! Nelo, vai estudar, Nelo
vai depressa à mercearia do sr. Edgar buscar um quilo de arroz,
depressa, avia-te. Nelo vai… vai… vai. E o Nelo ia. Bem-mandado,
ordenado, calado e submisso. A escola foi o seu martírio. Detestava-a.
Na maioria das vezes não percebia do que se falava. Estava longe,
muito longe. Depois as más notas saltavam ao ritmo das cinturadas
do pai, quer pela omissão quer pela negação. Pela mentira que escolhia para se esconder.
E a revolta nasceu por aquele tempo. Indistinta, casual, mas
crescendo mais do que o seu corpo. Estava lá, adormecida porque
não sabia ainda falar. Mas estava lá.
Os anos passaram. A vida esgueirou-se por entre os tempos.
Criou-se
— Ó Nelo, então pá, onde estás a trabalhar?
— Casaste? — Ah, ainda bem. — Eu? Oh estou bem. Tenho uma
fábrica, a minha mulher é artista plástica tem um estúdio em casa e
expõe. Filhos? Tenho um casal. Ele está nos Estados Unidos a tirar o
doutoramento, ela em Londres, a trabalhar em investigação. É assim
pá. E tu?
De forma resumida Manuel dá-lhe os parâmetros de vida.
Óscar, o colega, olha-o detalhadamente, incrédulo. Na sua mente
perpassa a imagem do jovem pobremente vestido, cujo aspeto suscitava as origens sempre a fazer parte de todas as associações de estudante para ter acesso ao que os outros tinham por inerência familiar.
Manuel detesta que conheçam os seus pontos fracos, e as suas
misérias. Vestir a pele de alguém emprestado pela mente, tornou-se
durante muitos anos o seu fato número um. O que dizer de uma
pessoa, com um carácter fraco e inúmeros defeitos e que, todavia, é boa pessoa. Uma contradição poderá pensar-se, no entanto, é esta a
verdade.
Manuel é emocionalmente instável, A sua instabilidade levou-o
durante muitos anos a viver colado a figurinos. O dia-a-dia não se
faz de figurinos nem de cópias. Respirar cada dia é aprender a fazer
as escolhas, e na maioria das vezes elas, as escolhas, são puros atos
de humildade e esquecimento. Nada tem a ver com imagens retocadas de vidas que não existem, que são apenas relatadas na terceira
pessoa porque chegar à primeira é viver e elas, as personagens de
figurino, são fictícias. Não vivem, desenham-se. Naturalmente que
sempre foi e será mais fácil viver no faz de conta, no limbo entre a
verdade e a mentira. Um espaço opaco, porém, suficiente para resistirem. Manuel por ingenuidade ou por falta de caráter acomodou-se
na opacidade. Quem o visse nos seus quarenta anos, suporia tratar-
-se de uma figura, já que o seu aspeto físico sempre foi muito agradável. A loquacidade, que em breves momentos se munia, pressupunha
um indivíduo falador e bem-disposto. Nada disso. Em família, era
distante quiçá agressivo logo que contrariado, fechando-se mais e
mais em si. Um homem, duas pessoas, uma cara e várias solidões.
Ao volante do carro, no desfilar da estrada, com o vento a soprar-
-lhe no corpo, quente e suado, sente-se livre, sente que ali existe.
O quotidiano da vida, os problemas que não soube resolver, a vida
em si, pesa-lhe mais do que o seu próprio corpo e, quando só vê
correr o tempo à sua frente numa estrada algures, sente-se feliz. Não
tem capacidade de resolução, de firmeza, de decisão.
— Se pudesse… se pudesse… eu…
Se, talvez fosse a sua divisa. Se isto tivesse sido assim… se eu
tivesse tido mais sorte, se, se, se… infindavelmente tem participado
da sua vida justificando as situações criadas, muitas vezes por displicência, por ausência de lógica, ou e quase sempre por incapacidade de definição de prioridades. Depois as origens levam-no a ser
condescendente com os menos privilegiados em contraponto com
a intolerância para os favorecidos. Tem gerido o seu caminho entre
compromissos mentais e necessidades anímicas, que na maioria das
vezes prevaleceram, deixando ir as oportunidades pelo cano abaixo
ou simplesmente perdendo-as de vista por inação. O tempo não tem
horas sempre que resolve tomá-lo sem ponteiros. Amolece na própria indolência tornando-se irascível quando chamado a atenção.
Outras alturas, em que o dinamismo é tremendo querendo fazer
tudo, sem horas, de novo. Tem uma tremenda dificuldade em lidar
com o tempo e mais ainda com os relógios que não usa. Ama a sua
privacidade cuja partilha é um ato que desconhece. Não por mal,
mas porque é a sua natureza. O seu íntimo é uma sedimentação de
sensações, de ideais, de incapacidades, de vitórias, de atos vividos,
por viver, de coisas boas e más. A serenidade dos dias tem que ser o
seu caminho, caso contrário, perde rapidamente o prumo entrando
em negação. Lidar com obstáculos, não é de forma alguma um ato,
é antes de mais, uma violação.
Quando estável é doce, mas em tudo retraído. Não existe muita
espontaneidade nos seus atos. Refletem quase sempre o medo de
não ser bem-recebido, a timidez da insegurança emocional e social.
Mas Manuel é, sem sombra de dúvida, um homem interessante e
envolvente. O sorriso fácil, o olhar direto e analítico, avaliativo da
presa sempre que o género feminino está do outro lado, concedem-
-lhe o elogio que gosta. A bizarria do seu carácter advém da dupla
forma de estar na vida. Uma forma fechada, algo acre para casa,
outra cativante para os de fora.
Clara conhece-o bem, tão bem que na maioria das vezes até
consegue saber o que lhe vai no espírito por um simples olhar, por
um silêncio, por um trejeito. É um ser simples movido por impulsos mais do que pela mente, o que lhe acarreta muitos dissabores no
mundo atual. Embora passe por ponderado não o é, relativamente
às suas opções. A liberdade em espiral de movimentos, de escolhas
atrai-o de forma irresistível. Não sopesa as sequelas e estas, na maioria das vezes, tornam-se avassaladoras.
O dia decorreu normal até ao suceder uma pequena pergunta
sobre um gasto. O dinheiro, algo que põe Manuel fora de si, particularmente quando se lhe pergunta sobre esta ou aquela despesa.
Manuel não gosta, aliás detesta prestar contas, mostrar contas. Tem
sempre o pressuposto que se desconfia dele. Não se percebe de onde
lhe advém semelhante conceção. Mas em mais de um quarto de
século de casamento, Clara, nunca soube como o marido geria o
seu dinheiro sobretudo nos tempos de abundância. A necessidade
compulsiva de esconder as contas tem causado dissabores e muito
afastamento. Manuel é incapaz de enfrentar a verdade. É incapaz.
Esconde, mente e nega. Foi sempre assim, quando está em falta é
patente a sua inaptidão em assumir-se, esconde-se, dribla-se a si próprio. Mais tarde, quando a verdade vem ao de cima, embora óbvia, a
negação continua a ser uma defesa. Só depois é que assume, quando
as evidências são tão contundentes, que já não existe espaço de fuga.
O seu rosto, por esta altura, pinta-se de uma autocomiseração como
se fosse a grande vítima, como se a vida lhe fosse madrasta. Clara
tem a certeza, ou pelo menos assim o quer acreditar, para o bem de
ambos, que Manuel é um indivíduo algo, como diria, algo inconsequente. Não mede os efeitos dos seus atos, não avalia os resultados
dos seus disparates. Acredita que as coisas escondidas não vêm à
tona. Vive numa dualidade entre enfrentar aquilo de que tem a plena
consciência que fez mal e o dia-a-dia em que se passa pelo que não é.
Hoje, como ontem, o mau humor rebentou e os gestos mais do que
as palavras, pois que é bastante parco nelas, esmagam o ambiente.
| A violência rebenta-lhe nos poros. Clara deixa-o, e a resmungar a
meia-voz vai dizendo: que devia estar fora de si quando o conheceu
ou então que ele a ludibriou com falinhas mansas. Senta-se no seu
quarto e remói a vida, tantas vezes o fez, que chega à conclusão, de
que já não há muito para remoer. A tarde vai caindo, a escuridão
veste a casa. Depois, a inação toma conta de ambos. Um no quarto,
outro cá fora no jardim. Por fim, Clara, e sempre Clara, levanta-se e
procura-o.
Tenta falar-lhe. De início o silêncio, o eterno silêncio. Não quer
responder, não quer, não gosta.
Assim em silêncio enfrentam o resto do dia. Não vale a pena.
É igual a si mesmo. Amanhã o muro já terá brechas e a vida continuará. Naturalmente que poderá ser um dia feliz e alegre, como eventualmente poderá haver outra recaída. Os dias são assim. Manuel
é assim. Foi há tanto tempo
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