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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças
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12 fevereiro, 2008



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Tempos

As cãs abrem-se numa cabeça vestida de cinzento raiada aqui, e ali, de uns fios pretos esparsos, mais abaixo, um chignon perfeito senta-se no alto de uma nuca altiva, suportada por um pescoço esguio e erecto. Os ombros rectos de postura sustêm um corpo já cinzento de vida, tal como os cabelos. No rosto de sulcos finos, e de lábios já vazios, brilham coruscantes uns olhos tão cheios de fulgor que parecem emprestados ao conjunto. Negros e líquidos perscrutam o redor. Pululam de centelhas que iluminam o rosto despido de cor dos anos. Os cílios abundam sombreando ainda mais a pele. Uma mancha, delineada, de cor húmida, preenche a boca, e os zigomas vestem-se de um tom levemente rosado. Está sentada na sua cadeira de braços. Chama-se Camila. Maria Camila D’Andrade e veste-se de setenta e muitos anos.

Sorri apenas nas comissuras dos lábios enquanto a agulha de croché faz a sua dança de abertos, fechados e cruzados. Alisa a peça. Os dedos são esguios, enrugados, já deformados e trémulos. Mãos gastas de tempo e de desejos. Meneia a cabeça no pensamento que a inunda, suspira encolhendo em trejeito os ombros. Ouve um ruído e instintivamente retoma a pose. De novo o trejeito facial, qual máscara afivelada, cola-se de imediato. Viúva de longa data, mãe de seis filhos esparsos por este mundo, sogra de uns tantos, avó de mais e bisavó de uns poucos, Camila endura a solidão da idade no recôndito de uma cadeira, e na pose de uma velha senhora.

Camila é célere na resposta, cáustica na palavra, dura na opinião e soberba na apreciação. Nada a prende a um mundo que não é seu. Não fora a vida que teima em inundar-lhe as veias, não fora a sua força de ser, não fora a raiva que a sustenta, não fora a amargura da quase dependência, talvez já tivesse partido. Mas não, sempre firme, erecta, alinhada e senhora de si. Sorri de novo, um quase esgar de desprezo pelos dias de hoje. Tudo se esvaiu como se fora um simples baralho de cartas. O seu mundo apagara-se tal como a onda na areia desfaz os castelos dos meninos. Assim de breve. Nada resta senão as memórias de um tempo já em sépia.

Descai suavemente a pose, o rosto frio ganha calor, os lábios sorriem. O seu drama, a sua mentira, o seu opróbrio. Aparentar o que não sente. Fora treinada para isso. Assumira o papel.

Nada e criada num mundo de valores já extintos, de deveres servidos, de padrões convencionados, de normas aceites e verdades insofismáveis, Camila geriu tudo isto de forma fúlgida permitindo-se a um certo cintilar intelectual capeado pela sua graça, e elegância natural, o que a tornou numa referência no seu meio. Casou cedo. Camila frequentou as grandes salas da cultura do mundo, foi vestida pelos grandes mestres do dedal, degustou manjares, bebeu néctares, tudo isto entre seis maternidades. Sempre radiosa, sorridente e objectiva. Uma vida cheia, não de vazio mas antes de alter-ego. Inexoráveis, os tempos trouxeram o vento. O vento que varria o embondeiro do jardim de sua casa. As folhas giravam pelo chão, levadas em dança rodopiante tal como sopraram nas voltas da sua vida. E o vento veio, e partiu, levando na sua espiral revolta, a sua vida, e mais alguma coisa de si. Foi assim um voo desnorteado, soprado e cinzento. Quando pairou, algures, numa terra que mal conhecia, pisou terra firme, e se sentou á espera de outros dias, tinha já dentro de si, aquele desdém que lhe amargurava os sentidos, aquele veneno que lhe latia as veias e se soltava em palavras ditas acres. E o vento continuou sibilando em seu redor roubando-lhe as suas gentes. Eram turbilhões que a desancavam, que a faziam tremer, que a violavam roubando-lhe a sua carne, porém no retrato do quotidiano surgia lívida todavia altiva. Diziam dela, ser uma pessoa intragável, dura e inquebrantável. Uma verdadeira peça. Ela sabia-o. Tanto, que por vezes, quando se enfrentava com os mais directos, conseguia sorrir de amargura. A voz era metálica de ríspida, o discurso curto e duro. A última palavra, a sua. Separavam-na dos seus filhos, netos e bisnetos, não abismos de idade mas antes de vivências. Ela fora uma Dama, eles eram apenas Gente. O seu desdém, não era provocatório nem contingente, era sim, uma disfunção de geração, um poço de vivências, um abismo de conceitos.

Camila D’Andrade senhora singular, mãe sentida mas ausente de afectos, rica de benquerenças e orgulhos resguardados, desfia na sua mente o percurso da sua prole e dos seus vindouros. São belos os seus. Têm a graça e a raça da origem. Gravitam pelo mundo tal como ela o fizera outrora. São Gente denodada em busca de um pouco do fulgor de outros ventos. Ora de levante, ora bora, ora siroco e ainda tramontano.

Aviva-se-lhe a memória.Recorda. Olha o mar, que está do outro lado, depois do embondeiro, deslizando na areia fina adormecida pela neblina da manhã. O azul, aliás a sua cor preferida, remansa sob os ténues raios de sol. É o belo, ali, na mão do olhar. A perfeição, numa golfada de sentir. Sente-se inundada, aquele momento será, para sempre, seu. Suspira, dilata a alma.

Vinda de não se sabe onde, uma nuvem, mais outra e outra, acinzentam e enegrecem o que era puro e diáfano. Uma leve brisa que agita o embondeiro, mais outra ,e outra. Em breve os ramos vergam-se, cospem as folhas, varrem o ar em dança abrutalhada. E o seu mar? Revolve-se em turbilhão, agita-se, torna-se denso, escuro ora azul pesado ou verde opaco. O vento cobre o seu quadro, o vento despe a sua alma, o vento dirige o seu estar, o vento chora a sua vida, o vento ventado do tempo passado.

O vento varrido, batido, perdido de si é a chave da sua história. O vento da vida, dos tempos e das gerações. O alísio, do seu mundo passado, dá a mão á nortada do presente, com a veleidade de um futuro adalor. Os tempos virão de mais suavidade. Os tempos da sua Gente.

Adormece breve e leda. O sonho ventado do ontem na brisa do amanhã. Assim Seja!


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