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03 janeiro, 2008




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O tempo de um Pai

Foi ontem? Não, já não sei. O tempo correu tão voado que cheguei ao hoje sem me lembrar do ontem. Foi assim que o tempo marchou. Outrora, dizem, era sereno e límpido. Corria dolente por entre as vidas naquela remanso gordo e feliz. Hoje desliza célere como se fora águia em voo picado. Chega, mal pára, e parte. São os dias da vida, chamam-lhes modernos. Talvez.

Há poucos dias, quando ainda sabia se era ontem ou hoje, vi, na rua , o tempo despedir-se. Estava de passagem, o costume, suspirava. O tempo de ontem já não volta porque se perdeu no tempo de hoje.

Recolhido no tempo de ontem, mas olhando o de hoje, sem olhos de ver, Jacinto tamborila os dedos na mesa de tampo de vidro como que marcando o compasso da vida. Pende-lhe a cabeça, porque o peso do tempo corre-lhe na memória. O olhar prende-se no minúsculo espaço frontal que as pupilas habitam. Está velho e engelhado. Está gasto do tempo sem tempo de amanhã. Também não quer.

Jacinto parou no tempo das memórias. Daquelas que de vívidas passam a enroladas de murchas. Parou naquele momento, em que se despediu do amanhã, porque a vontade se largou, numa viagem por sítios estranhos. O ontem tornou-se o horizonte, o hoje é porta que não transpõe, o amanhã é viagem esperada.

Os dias embrulham-se no tempo cinzento de um roupão vestido por cima de um pijama cinzento de anos vividos. Já não veste a camisa, nem põe gravata. As calças, sempre tão alinhadas, jazem sentadas no cadeirão, á espera de um tempo que não mais chegará. Jacinto veste o tempo de partida. Esperou-o e não teve peito para o sacudir. Não teve vontade, por ter vivido demais, cansou-se dele. Jacinto tem muitos anos e está cansado, cansado de si, da sua forma de gente. Despede-se dos seus, sorrindo de longe, porque de perto não tem força. Sente que vai partir, sente que a vida está de braço dado com o tempo que começa a girar para outro sítio. E o tempo ronda, ronda. Ora abranda, ora aperta. Parece um assobio silvando a vida. É triste, muito. Dói. Jacinto é homem, é pai. Gente que vê o vento soprar assim de levante sente um arrepio na alma e no sangue. Gente que é filho e ama o pai. Jacinto vai partir no tempo do vento. O tempo de vida cessa, e Jacinto- pai, parte. Uma brecha de si, dedilha palavras tentando enganar o tempo, tentando recordar, tentando racionalizar o que já é racional. O tempo de partida.

Jacinto que não é Jacinto, é pai. É o meu pai. É ele que parte, desprendendo-se no tempo e das amarras. Solta-se assim de leve, assim de breve. Fica a imagem, o sorriso, ficam as palavras e como ele embalava as palavras no ócio rico do pensamento. Pai, meu pai, porque parte? Eu sei que o tempo o embala, que o tempo o espera. Eu sei que o corpo está exaurido, eu sei. Eu sei que está exausto, eu sei. Eu sei tanta coisa, pai, mas eu não sei nada, meu pai, quando o vejo de partida. Oh. Como detesto o tempo!

Pai, meu Pai amo-o sempre, para sempre. Digo adeus, deixo um beijo. Para sempre. Recordo-o.

Uma lágrima, um beijo, um pai, uma filha.


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