No café da aldeia os últimos homens saem. O cheiro a café,
aguardente, suor e ao resto do dia paira no ar. Júlia passa o pano
húmido pelo balcão moída de cansaço. A um canto, as filhas
rebolam-se de sono entre olhos revirados e cabeças despenteadas.
São pequenas as suas meninas mas são a sua fortuna. Júlia tem
que varrer o chão, desligar as máquinas e fechar o recinto. Mais
meia hora.
Abana as filhas, pega nelas em redor do corpo e sai. Uns passos
e a escada da casa está mesmo ali ao lado. Abre a porta da cozinha,
acende a luz e sobe até ao andar de cima. Deita-as nas camas, beija-
-as suavemente e apaga a luz. A mais velha ainda entaramela algo,
impercetível, a mais nova dorme profundamente. Já vai para mais de
duas horas que tinha aterrado no descanso.
Entra no seu quarto, despe-se, enfia uma camisa, e literalmente,
atira-se para a cama vazia. Está só, mas mais rica, tem as filhas.
Labuta entre o pouco e o nada, na mira da sobrevivência. Assim
foi desde que se casara. Tantos a alertaram para o passo falso que iria
dar. Não acreditou. Alguém acredita quando se tem um amor serôdio, quando se confunde paixão com compaixão, quando se tem um
homem, quando se completa o quadro que foi incutido em anos de
vida: Ter um marido! Claro, que não se acredita, claro que se pensa
que se irá dar a volta por cima, que se irá conseguir. Todavia, quando
os anos passam, quando tudo se esboroa, quando se acorda e vê que
esse que ressona ao nosso lado é um fraco aí, os ferros do portão
|da vida sentem-se no corpo, mas, mais ainda na alma. A prisão do
quotidiano, a angústia de cada dia, o vazio de amanhã. Os dias que
escorrem por entre os meses desaguando em anos amarfanhados
sobre o corpo dorido do trabalho. Apenas as filhas lhe sorriem do
quarto ao lado. É por elas que mantém a labuta insana dos dias,
suporta o homem que ressona a seu lado. Sabe que deixá-lo seria
libertar-se do seu pesadelo, porém as convenções e quiçá a resignação secular de mulher de aldeia, fá-la manter-se ao leme dos dias.
A confusão de Júlia, a resignação de Júlia nasceu nos dias de
meninice. A mãe, que Deus a tenha em descanso, se acaso pode, era
uma mulher muito especial. Não por possuir quaisquer qualidades
extraordinárias, pelo contrário. Um ser difícil de trato, de compreensão. Em muitos anos de convivência nunca se conseguia perceber
aquilo de que gostava, no entanto, era bem patente o que não gostava, mais que não fosse por um cerrar de lábios e um fechar de
rosto. O parece mal preenchia-lhe o código de conduta até à medula,
consequentemente, a educação da filha foi uma quase castração de
sentires, castrador possível, atendendo aos tempos pois que eram
os idos de sessenta, setenta. Por esses tempos já muita coisa tinha
levedado nas mentalidades das mulheres, todavia, a da mãe de Júlia
manteve-se igualzinha a ela mesma. Pão ázimo. Sem tirar nem pôr.
Júlia, que por infelicidade hormonal bem cedo teve atributos
físicos de mulher, foi como castigo proibida de brincar com as outras
crianças e obrigada a aprender os pontos de cheio e meios pontos
do croché e bordados. Chegara o tempo da feitura do enxoval. Sendo
uma criança viva, ao ver-se aperreada, iniciou um processo de rebeldia interna que lhe acarretou sérios problemas, os quais ainda hoje
carrega, pese a lucidez da idade a ter visitado há já alguns anos e, se
não fora esta a própria dureza de existir, tornou-a mais serena. Anos
depois, tomou-os como a sua cruz, suportando um tipo cujo molhe
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de defeitos daria quase para um fardo de boa palha. O tipo em questão também não foi senão uma vítima de uma família de sentidos
e sentimentos rudes onde o carinho e a educação foram primários,
onde o intuito primeiro foi sempre o de fazer dinheiro e comprar
bens. O resto, como compreensão, a educação são supérfluos, aliás
ditos como coisa de ricos. Isto, não é senão a história de um povo.
Vivem no Douro, região tão pródiga em fabulosas riquezas visuais e
tão acre em sentimentos, rude como o solo xistoso e seco. As gentes
são talhadas no xisto que cobre o solo. Cortantes, secas e miúdas.
Labutam há gerações no pequeno socalco, na apanha do cacho, no
pisoteio da uva. São vergastados pelo trabalho, endurecidos pela
vida. As palavras soltam-se ácidas e adulteradas. Não existe facilidade de expressão que é tapada pela boca cheia de palavras mal ditas
ou pelo jargão constante.
— Ó Zeza, na viste por í o mê home? O filho de um cabrão saiu
de manhã e ainda na pôs os cornos em casa…
Este é o falar da gente do povo. Nada de frases limadas, nada de
artifícios doces. Assim duro e puro. Júlia teve como pais dois seres
da terra. A mãe, não usaria o jargão, por uma espécie de prurido
que a acompanhou ao longo dos anos, já o pai, à medida que os
anos o dobravam, utilizava-o para se aliviar, talvez do dia-a-dia, talvez de si mesmo. Júlia fugiu dali. Cresceu, tornou-se maior e viveu,
depois apaixonou-se compadecendo-se. A confusão que lhe vinha
dos anos tenros estalou uma vez mais, uma desordem que sempre
sentiu entre o amor e a compaixão. E assim casou-se. Hoje confessa
que deu um mau passo.
Repetidamente serve os copos de vinho, os cafés, o isco e os
gelados. Entre o tabuleiro e o balcão, a conversa rude solta-se, as
vozes prenhas de álcool e ela, em antítese, muda em gesto preciso.
Não ouve as frases somente os sons abocanhados de álcool e rudeza. Olha o relógio, mais uma hora e tempo de fechar. O pano limpa os
pingos de tinto. O cheiro uma vez mais sobe-lhe pelas entranhas
revolvendo-a. Olha. Olha com aquele olhar redondo e vazio. Os dias
caem estilhaçados nos meses que se esgotam. A sobrevivência, a vida,
as filhas são o pêndulo que a acorda todas as manhãs Na tasca, a
culpa da vida, bebe-se em goles de tinto
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