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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

02 julho, 2023

A culpa foi do meu pai! A culpa foi dele!

Henrique detém-se, por breves instantes, diante da filha mais velha. Está amarrotado no olhar e no gesto nervoso, transpira o segredo do passado. Logo, retoma o seu vai e vem inquieto na carpete vermelha. Senta-se à sua mesa de vidro e num sinal de desalento, quiçá arrependimento, coloca as mãos entre a cabeça debruçando-se mais sobre si mesmo, abana a cabeça, enquanto com o polegar a coça no lado direito. Um gesto que lhe ficou do tempo em que a brilhantina lhe empapava os cabelos. Assim fica durante uns minutos. Depois ergue os olhos já mortiços. Os anos não perdoam. A vida há já muito que corre por ali.

Mais um dia de desencontro. Mais um, entre todos os outros, dos seus dias. Henrique vive duas vidas. A de casa e a das fantasias. A sua instabilidade afetiva, o seu saltitar emocional, o seu desejo por algo inatingível sempre o perseguiu. Vê -se transido de medo por detrás da saia da mãe, enquanto o pai, podre de bêbado, gritava que nem um possesso. Vê-se trémulo esfregando o pé no outro, sentado no banco de madeira à espera do prato da sopa na mesa quase vazia. O pai reformado, jogador, bêbado e outras coisas mais, olhava pela família. Lembra a figura doce e sofredora da mãe, abrindo os braços para o acolher como se a paz estivesse ali, naquele abraço. Revê os olhos negros na face cheia podres de amargura, a boca quase sempre fechada entreabrindo-se num esgar sorriso de conforto. Lembra-se de um lar desfeito nas mãos de um homem que fora seu pai. O riso feito lágrimas, os gritos feitos palavras, o choro feito dor, a fome feita alimento. Cresceu assim. Tornou-se belicoso, doce, triste, alegre, pecaminoso, amigo, pai, marido e homem. A raiva engoliu-a em digestão difícil. Levedou para sempre e, ao mínimo aquecimento, rebenta num chorrilho de impropérios sentidos no momento. É incontrolável, é a fúria, é a pena de si. Sente profundamente o que pensa, e numa rapidez única verbaliza essa corrente num esgar provocatório de fúria que não controla. Depois esvai-se, esquece-se, apaga-se, mas jamais pronuncia a desculpa. É a força que lhe estrangula a garganta, o orgulho de si que o impede, é a sua revolta que o perturba mais e mais. E o tempo passa sobre cada ira, o tempo das horas, dos dias, dos meses e dos anos. Tempo. Reconheceu sempre os erros, mas não deu nunca o braço a torcer. Outro, dos seus muitos predicados, era dizer o que sentia diretamente olhos nos olhos às pessoas. Não gostavam, e nas suas costas comentavam, com aquele ar revestido do tom depreciativo: “Quem julga que é? Um pé rapado, um pobretanas, sem eira nem beira que se arvora em grande personagem”! Que tipo irascível!

Porém, no dia-a-dia sentavam-se à mesma mesa de café, sorriam em semidecúbito e afagavam-lhe as costas com as palmadinhas melífluas que a sociedade procriou. A sua vida fora feita de nós que ele próprio causara. Não era mau tipo, só tinha um feitio lixado, como diziam os amigos e a mulher e os filhos, bem quase todos. Havia a mais velha que o aceitava. Não o temia, acatava as suas iras, julgando-o silenciosamente. Agora, mulher madura conversava com ele dizendo-lhe claramente que não estava correto, que não era assim que se fazia. Não partilhava o desassossego que o resto da família sentia. Não, porque o percebia. Ele apercebia-o. Não que a amasse de modo diferente, apenas e somente a respeitava, talvez, um pouco mais. Naquele serão, uma vez mais, ela retorquiu-lhe, após a explosão de culpa solta.

-Os mortos não são culpados. Os vivos é que fazem os disparates, não é justo, culpar quem já cá não está, pai!

Olhou-a de olhos vazios e recolheu-se de novo falando para si. Ela, a filha deixou passar o tempo, deixou-o sossegar. O ar pesado diluiu-se, passado um tempo a conversa retomou o seu curso de sempre. Não era um homem fácil, mas era encantador. Um sedutor enviesado. Conversador nato, com uma fluência de palavra própria de quem gosta e sabe cativar assenhorando-se do tempo. A sua voz não era metálica, nem troante, porém, o seu tom era claro e alto. Sempre houve quem não gostasse do tom de voz, e pensando ser uma forma de subjugação. Puro disparate. Gostava, sobretudo, de ser ouvido mesmo quando o assunto era fastidioso. Nesses momentos, era preciso olhar sorrindo, e mesmo ausente, ir respondendo por monossílabos. Noutras alturas era bom ouvi-lo dissertar sobre coisas passadas e aprender. A ironia rendilhada era percetível para os atentos, esquiva para quem não o entendia. Não podia ser definido por um homem colérico porque a par das suas raivas, das suas tempestades, das suas verdades doridas em tempo de cólera, havia depois um quebranto, que o levava a ser uma espécie de menino arrependido, mas teimoso. Era, então, que se revoltava contra o pai.

Naquele serão, como em tantos outros ao longo dos seus setenta e cinco anos de vida e cinquenta de casado houvera mais um desaguisado entre ele e a mulher. Pontos de vista, palavras ditas aqui e ali, conceções diferentes e acima de tudo traições, pequenas ou grandes que ela nunca lhe perdoara, embora continuassem a viver lado a lado, a pôr-lhe a roupa, a cozinhar-lhe os almoços e os jantares, a gerir-lhe o dinheiro, em suma, a pontificar o seu quotidiano o que para ele, aliás, até era um alívio, uma vez que o trivial sempre o aborrecera. As chamadas minudências do lar eram-lhe fastidiosas como era fastidioso, quase desesperante ter que fazer o seu trabalho repetitivo, desprovido de criação, sem palavras, feita de números que nada lhe diziam, porque para além de serem números, que nem sequer seus eram. Bah, o que lhe interessava a ele, se o estabelecimento A, B, ou C tinha lucro, se o comércio ia de vento em popa, ou se pelo contrário, estavam com as vendas fracas. Somente no primeiro caso ser-lhe-ia mais difícil esconder os lucros para que o cliente pagasse menos impostos. Tudo isso estava intrinsecamente ligado à sua profissão. Sonegar e enganar. Com a ironia própria da sua maneira de ser, muitas vezes pensava que ao fazê-lo profissionalmente era uma atitude aceite e quase sacrossanta por parte da sua Suzette, que achava que assim ele era um bom profissional na medida exata em que receberia mais umas “recompensas”, traduzidas, claro está, num chequezito que, iria providenciar mais algum conforto ou até descanso. Porém, quando na sua vida de homem escondia, enganava, ao ser descoberto era arrasado, jamais perdoado apenas desculpado momentaneamente. Logo a seguir, os epítetos apareciam, sobretudo em ocasiões como a daquele serão. O pomo de discórdia fora banal como sempre. A família de Suzette. O muito que tinham granjeado com suor e lágrimas, a vida simples e desprovida de laivos de vaidade, a seriedade nata dos irmãos que os levavam a ter uma só mulher e a viver dependente dela e dos filhos numa harmonia frugal e quimérica. Enfim um corolário que ouvia, sabe-se lá há quantos anos, talvez desde que tivera aquele malfadado caso com a empregada, em que pusera quase tudo a perder. Depois disso, fora um eterno calvário de críticas e quase desprezo. Sabia muito bem, sabia, que a sua Suzette tinha alturas que o aturava não porque o amasse, antes porque era a sua subsistência, porque era o seu hábito, e principalmente porque lhe era penoso, a ela, ter que mudar. Não pelos filhos, que esses estavam criados e mais que criados, mas por ela. Apesar da sua quase auto convicção de liberdade pessoal era uma mulher muito dependente. Nunca saberia ser autossuficiente. Não possuía estrutura para tal. Não tinha interesses pessoais para além da vida de casa, da dos filhos, e acima de tudo, da deles. Naquele serão como em tantos outros, o desprezo chicoteou-lhe o coração. E, como tantos anos antes, tantos que se perdiam na bruma, reagiu. Não se encolheu nas saias da mãe nem no canto vazio da casa, não, ripostou de forma desabrida, de palavras tortas e tom altaneiro. Jogou à defesa para encobrir as suas misérias humanas, os seus erros, as suas paixões perdidas, o seu amor por ser. Especificamente para se proteger. Quem diria que ele, Henrique Gonçalves conhecido pelas explosões verbais, pela crítica demolidora do socialmente correto, ele, que fazia lembrar o homem bomba do canhão do circo, não era senão uma alma que jogara toda a vida à defesa. A culpa… a culpa…

A culpa instalara-se na família. Culpa das palavras e dos atos. Culpa das ideias e dos percursos ou não percursos. Culpa dos objetivos, de ter ou não ter, culpa do aspeto físico, culpa da inteligência ou não inteligência. Enfim, culpa de Ser.

 

II

 

Clara recolhe as memórias com o olhar num suspiro de ar vivido. Como o tempo passou, medita. Está sentada no alpendre da sua varanda. O jardim em redor dormita na quentura da tarde. O Verão respira ali, ao lado, no bafo do seu alento. Poisa o olhar dentro do tempo e sorri de olhos húmidos.

Como o tempo passou! Aqui mesmo ao lado correu apressado, como correu apressado, nem deu tempo para saborear a vida. Como correu depressa, ontem ainda queria o amanhã, ontem, ainda era hoje. Assim, num ápice, voaram os anos. Remexe-se na cadeira. Levanta-se. Um passo, dois. Desce os degraus da varanda e estende as pernas pelo jardim, puxando uma erva aqui, revolvendo uma pedrita ali, arredondando uma folha acolá, uma forma como outra qualquer de afastar os pensamentos. Junto da sebe das hidrângeas inclina-se, colhe duas para a jarra do hall, pensa. Dá volta ao jardim da casa mastigando o verde das sebes, mais o das árvores. As rosas, parcas este ano, dão o tom macio ao verde do jardim. Suspira quando se senta de novo no banco. A sua casa. O porto dos seus sonhos e das suas angústias. Tanta vida entre as paredes brancas de uma casa. Em cada espaço existe um pouco de si e da sua vida. Entra. A cozinha fervilha no sossego dos cheiros. Inspira. A serenidade entra-lhe pelas narinas abertas. Tudo descansa naquela hora. Transpõe a tijoleira vermelha, e logo o estalar seco da madeira palpita sob seus pés. Já está na saleta. Atira-se no sofá verde, estende as pernas e semicerra os olhos. A sonolência apossa-se dela. O calor dolente e o peso das memórias fazem-na ficar assim quebrada. Puxa a almofada de ramagens verdes e pretas e estende-se. Cruza os braços sobre o peito e abandona-se ao sono de imagens vividas.

………………

Naquela tarde enquanto dava a segunda aula sentiu-se oprimida. Olhou para fora, pela janela mesmo quase ao lado da secretária, as serras respiravam a tormenta. Estavam escuras e poderosas. O céu pintara-se de cinzento pesado e mal se mexia, agrilhoado. Clara entreabriu a janela, porém o ar não limpou o seu sentir. A borrasca pressentia-se. Iria estalar a qualquer momento. O suor pespontava-lhe a testa. Sentia no corpo aquele tempo sem ar.

Caminhou pela ala entre as primeiras carteiras enquanto debitava a matéria. Uma pergunta aqui e outra ali. E o ritmo da aula girava. Mas aquela opressão continuava. Despiu o casaquito de algodão. Resolveu fazer uma pausa na explicação. Os cinco minutos de descanso que dava aos alunos sempre que havia matéria nova. Conversa daqui, conversa dali e, ei-los relaxados. Podia recomeçar. Recomeçou. Cansada olhou de soslaio para o pulso onde os ponteiros pareciam colados. Não se mexiam. Alguma coisa ia acontecer. Conhecia-se por demais para desprezar os sintomas. Aquela opressão causava-lhe um certo atordoamento mental. Bom, o melhor era mesmo continuar a aula. Não valia a pena antecipar-se. A ansiedade não lhe daria descanso. Continuou no seu deambular explicativo, enquanto os alunos se entretinham entre o conteúdo que escorregava por entre os ouvidos, noutros casos era bebido pelas mentes, e noutros ainda era devolvido intacto ao ar pesado da sala.

E o tempo decorreu. E a campainha tocou. O tropel habitual aconteceu. Apanhou as suas coisas, atirou o olhar habitual à sala, fechou a porta e caminhou. Na sala do primeiro andar, onde todos os colegas se reuniam, pairava o calor abafado casado com o som das vozes. Os professores falam alto. Muito. As vozes têm tendência a tornarem-se estrídulas. Clara sentia-se zonza, cada vez mais. Agora era uma agonia vinda não do estômago, mas de algures, que não sabia bem definir. Sentou-se.

Clara, estás bem? Ouviu muito longe, a voz.

Quis dizer algo, mas a língua estava presa, o rosto também. Havia como que uma força a agarrá-la, roubando-lhe a luz do dia, embaciando-lhe o cérebro.

Sentiu-se mole. Terrivelmente mole.

Estava num sítio diferente, estranho, quase diria, esquisito. Estava separada. Ela aqui e a outra, ela também, mais além. Duas pessoas e uma só. Conseguia sentir que a outra lhe pertencia, porém era diferente. Cansou-se e fechou os olhos.

À medida que o tempo passava, a outra vinha-se aproximando. Tão devagar que nem dava por isso. E o cansaço desvanecia-se. Parecia que o torpor a ia deixando. Que o calor e a vibração começavam a tomá-la.

Abriu os olhos três dias depois. Disseram-lhe que tinha estado mais para lá do que para cá. Qual quê! Simplesmente adormecera e deixara que o seu corpo flutuasse. Tão simplesmente. Estava debilitada, sentia-o, contudo o seu cérebro funcionava. Foi retomando a posse dos seus sentidos. Sentia-se quase normal. A vista não. Qualquer coisa não batia certo. Mas não se ia preocupar agora que tinha acordado, e via o mundo à sua volta com outras formas. Esquisito. Mas as pessoas pareciam-lhe diferentes mais pequenas e sumidas. Aquele ar de conquista, aquele brilho de vontade, o frenesim do ser ouvido, tinha-se evaporado. Afinal eram comuns. Tal como ela.

Clara suspirou por entre os lençóis de barra verde. Com a ponta dos dedos puxou-os para si. Tapou a boca. Os olhos orlados de macerado sobressaiam no rosto amarelado de doença, contudo a vida continuava a espreitar.

Recuperou-se. O AVC deixara-lhe lapsos. Lapso de memória, de espaço e até de paciência. Os lapsos de Clara. Lapso que, sub-repticiamente, aprendera a disfarçar com arte e estilo. Uma sobrevivente. Diziam-lhe, uma mulher com sorte!

Talvez sim, talvez não. Já depois, muito depois quando pensava no caso, Clara murmurava para si. “Talvez sim, talvez não”.

O mundo mudara. Ou fora antes ela que mudara? Os pequenos muitos nadas que tanta importância dava nos dias antes, agora ao remirá-los, causavam-lhe bocejos. Como as ninharias deixam de ter peso quando a vida esteve em jogo. Um lugar-comum, aliás um pensamento banal, mas não somos nós todos banais? Encolheu os ombros, era algo intrinsecamente seu, pertencia-lhe. Não, não era displicência, nem tão pouco um deixa andar, somente o seu trejeito, que dizia: “Já lá vai, mas voltará.” A inevitabilidade que sempre a coabitara. E fora com um encolher de ombros que também se relançara na luta de cada dia. Lá no seu íntimo, sabia que levaria a melhor, e assim de um mansinho exterior, mas com a força interior, atirou-se e conseguiu.

Clara venceu a batalha, agora a guerra? Isso, não sabia, mas o que importava, e depois quem o sabia? Certamente outras batalhas cairiam por perto ou mesmo em cima, a sua vida era feita de lutas. Na tela da sua vida os tons sempre se tinham misturado entre os muito fortes e os pastéis, deixando pequenas réstias de azul sonho.

E os pensamentos, quais gotículas de cacimbo, deslizam pelo vestíbulo da noite. Não se sente velha como o reflexo teima em apregoar. Aliás, a sua cabeça é um baloiço de agilidade onde o pensamento se entrecruza com a maturidade do raciocínio. Gosta dos seus cinquentas e sete anos e do amanhã de todos os dias.

Uma mulher sem história ou uma história de mulher? Abana ligeiramente o pescoço afastando as divagações que a visitam em cada segundo. Não quer divagar, apenas pensar. Tem que delinear objetivamente o seu trajeto. As horas deslizam velozmente.

……………………

Eram quase oito da noite quando o filho nasceu. Sentiu alívio. Moveu a cabeça para o lado e viu-o no berço. Viu-o de olhos oblíquos e papudos, cabelos quase alaranjados, de punhos cerrados e tão pequenino. Destapou-o e olhou-o como se visse tudo pela primeira vez. E era a primeira vez. Tocou levemente nas perninhas, no corpo. Percorreu o polegar pela linha do rostinho num toque infinito. Sentiu-lhe a macieza da carne e uma força que a fez parar. Ora, impressão sua. Retomou o toque e parou nas mãozinhas que teimavam em permanecer bem cerradas. Abriu-as e meticulosamente estendeu-lhe os dedinhos. Perfeitos. As unhas arranhavam. E naquela intimidade sem sons, ele suspirou. Era seu. Viera dela. A sua criação. Tapou-o. Pensou. Pensou na incerteza. Pensou em tudo. Sentiu-se dorida, mas feliz. Levantou-se e sorriu. A vida estava mesmo ali ao lado a desafiá-la. E ela aceitou o desafio.

Chamou-lhe Henrique, como o avô.

O tempo voou. Ele cresceu, ela amadureceu. Ele ficou homem, ela mais velha. O tempo sem tranca que varre a vida.

………………

Recorda os tempos de juventude. Enormes, quentes e cheios de promessas. Eram felizes na crença do amor, da ilusão, dos grandes cultos, dos enormes altruísmos, do derrear os dogmas sociais, na construção dos ideais. A sua geração fora assim. Ela fizera parte, tivera as suas lutazinhas, quebrara alguns tabus geracionais, sabe-se lá, à custa de muita lágrima, zanga e tantos outros dramazinhos familiares. A peça que fora cartaz no palco da sua geração chamava-se “Flower Power” e o seu mote era make love not war. Vivia-se entre duas grandes dicotomias, ontem como hoje, o campo e a cidade. A única diferença dos dias de hoje é que a pobreza era mesmo ruim, aviltante, redutora da condição humana. Pobreza material ao extremo nos mais desfavorecidos, na classe rural, ladeada de um pseudo certo bem-estar, um relativo bem-estar e ainda um efetivo bem-estar ou mesmo bem-estar de uma classe média bem instalada. Quem conhece a nossa realidade, sabe bem que a classe média bem instalada foi sempre a que, de uma maneira ou outra, governou o país ou se foi governando, de acordo com o degrau onde o pé era assente. A pobreza era terrível, não só a do campo capeada também da pobreza de pensamento, a par da vivida na cidade onde as pessoas pululavam na robótica do ganha-pão, onde a miséria dos dias se fazia, muitas vezes, de fome vestida de uma aparência arranjadinha e um olhar envergonhado. Lutava-se, não pelos ideais, antes sim pela sobrevivência do corpo. O desejo maior era ver os filhos estudarem, terem um ofício na mão, uma mais-valia de futuro, um casamento sólido sinónimo de porta-moedas remediado. Somente para os mais audazes, os mais inteligentes havia o curso na universidade, ser doutor ou engenheiro era uma ascensão social pratica corrente. No mundo ativo Todo este quadro originava muitos atavismos morais, uma tacanhez de conceitos baseados em padrões pseudomorais que conduziam a um conforto hipócrita de moralidade. Cabia à mulher o papel de sofredora, pese todas as diatribes, traições e outras quejanices que o marido achasse por bem fazer. Ela, ela segundo a tradição judaico-cristã, era o pilar do lar, o esteio moral da família. Claro, que este postulado passou durante gerações de mães para filhas tal como passava a peça do bragal. Esquecia-se que havia um ser humano debaixo de toda essa carga e que ele palpitava. Que ao negar-lhe a sua verdadeira existência se construíam seres insatisfeitos, incapazes de darem amor porque também o não recebiam. Alucinadas pelas leituras cor-de-rosa, não tendo a capacidade para discernir entre o real e o imaginário, desconhecendo muito da vida nua e crua no que respeitava aos verdadeiros desejos humanos. Partiam para as relações, diga-se casamento, mais nuas que a própria nudez. Sempre que o corpo falava mais do que o espírito, logo o sentimento de culpa aflorava. Uma geração de mulheres mestras na arte do disfarce. A culpabilidade e a insatisfação pariram brechas nas relações humanas. Gerações perdidas de si. Ontem como hoje, a sociedade portuguesa girava em torno dos seus extremos. E assim, do atavismo moral mergulhou-se no laxismo experimental. Na sociedade do século vinte um, a moral quase cedeu lugar ao prazer. “Eu desejo, eu quero, tenho que ser feliz, feliz, feliz…eu fui feliz no momento”. Assim num ápice, numa pressa sem delimitações. Tudo se passa num repente. O tempo de maturação, de análise, de construção, desapareceu. Não existe. Meramente um corre-corre de desejo, de posse, de saciedade e finalmente de tédio. Nesta reviravolta de conceitos, o caricato, é que ainda se continua à procura de querer ser feliz, apesar da pesada propaganda. Esconjuram-se os laivos de culpa, qual anátema de civilização primitiva. A bendita que tem ditado tantas e tantas felonias neste nosso século. A culpa, o legado nacional mais poderoso, porque a coitada tem morrido sempre solteira pese, o facto, de ter destruído relações, posições e tantas outras ações. 

Hoje, ao olhar para esses dias, um sorriso irónico tem que forçosamente mascarar-lhe os lábios. Tão ridículo! No entanto, na altura geraram-se conflitos familiares, zangas e humilhações. Depois veio o vinte e cinco e, rapidamente os costumes mudaram. Tomou-se como natural, o que até então era proibido. As massas ululam ao sabor do vento, melhor, as mentes mudam, tal como o vento sopra. E se sopra com força, então a mente parece um cata-vento. Neste caso, bendito cata-vento, diga-se. Houve muita mudança. Os cenários foram-se transmutando à medida que a peça se plasmava aos costumes. Neste entretém teatral, os rostos adquiriram rugas, o espírito aquietou-se e alguns bolsos aviltaram-se. O idealismo virou capitalismo, o amor comprou-se, vendeu-se e emporcalhou-se. E a geração dos ideais metamorfoseou-se em peralvilhos com sebosas contas bancárias Os charros passaram, praticamente, a ser um quase apanágio de uma pseudoelite intelectual que os usa diz, como fonte de inspiração. Uma geração que sonhava sempre que respirava. Respira, hoje, entrecortada entre a ambição dos cifrões e do bem colocado. Não somos senão pavões eternamente voltados para um jardim que já não existe. As penas já são tão toscas que até faz dó, pese o brilho da projeção.

Houve um desbragar de convenções, o caos, diziam os mais velhos, então. E nós ríamos, ríamos porque o sentir era impune, porque éramos jovens e heróis. Havia o cheiro tremendo de sexo, mas também o cheiro da vida. Era diferente. Era a libertação, a nudez da carne e da alma. O despir total, o arrebatamento de comungar o corpo, o vento e a terra. Os primeiros ecologistas não asséticos. Clara sorri abertamente. Tem orgulho de pertencer ao grupo das cotas. É tão maravilhoso ser-se cota quando se tem um mundo de cristais nas traves do espírito. Pertencer a uma geração de descoberta, de aquisições, de luta.

Hoje torna-se doloroso verificar que os Senhores do Mundo são, os que, então, foram seus parceiros de aventura naqueles anos dourados. Como o poder corrói. Tudo é bem pior que o ácido, porque é mais lento e persistente.

Levanta-se, alisa a saia, puxa a o cós do jersey, ajeita o cabelo e sente-se de novo jovem e atraente. Uma hippy repleta de alquimia do tempo.

Está mais segura. Não olha nem para a esquerda nem para a direita. As memórias povoam-lhe o ecrã da mente. A noite pisca-lhe matreira por entre uma meia-lua sentada por cima da janela da saleta.

…… ……………………………….

Clara olha-se no espelho do seu quarto de rapariga.

Gosta do que vê. O vestido comprido cor de champanhe, corte simples, todavia elegante. O saiote faz-lhe o redondo das ancas. O cabelo no seu brilho dourado suporta aquele véu de renda enorme. Na mão as suas eternas rosas amarelas.

Casa-se hoje. Um dia especial. Percorre-a um frenesim. Não é ansiedade, somente a antecipação do acontecimento.

Olha-se fixa e demoradamente no espelho oval, a imagem não reflecte os pensamentos. Interiormente sorri. E interroga-se: Afinal é este o dia tão especial, o dia que desde garotinha ouviu falar? Uma névoa breve tolda-lhe o olhar. Recompõe-se. Há que estar serena. Uma noiva quer-se nimbada de luz. Os eternos clichés da sociedade. Mas enfim, encolhe os ombros. Assim seja.

Debruça-se sobre a cómoda perscrutando a imagem no espelho oval. Aqueles momentos a sós são preciosos. Em breve terá que mergulhar na alegria do dia. Urge.

Deseja que termine. Sempre foi diferente. Sabe que mastigar os momentos não os faz perdurar no arco-íris do relógio. Depois, também sabe antecipadamente o que se passará. Sempre um pouco à frente do hoje. Clara apressada. Não, ela não é apressada, apenas o hoje, foi o ontem dela, o amanhã, é o seu hoje. Naquela divisão de tempo o seu corpo senta-se, porém, o espírito inquieto flui. Nunca ninguém a percebeu. Habituou-se a viver assim. E hoje, pese os seus anos ainda verdes, coabita lindamente com a dicotomia. Chamam-lhe insatisfeita, nervosa. Nada disso. No entanto, nem sequer perde tempo a explicar-se porque, sabe, não a compreenderiam, se calhar até diriam que tinha alguma pancada…não fora em vão que caíra de um escadote bem alto ainda pequeninita. Talvez fosse daí, que lhe adviera esse desassossego de tempo. Não era em vão que lhe diziam ser parecida ao pai…

Mas hoje era o seu dia. Clara casava-se. Apesar da liberdade que aqueles tempos continham, essa mesma liberdade acabava por exigir um invólucro. Há vinte e muitos anos casar-se era uma quase obrigação, pelo menos no meio de onde provinha. Meio arreigado de preconceitos e normas. Aquela necessidade do certinho que sempre a baralhou. A vida é um remoinho de folhas de muitos tamanhos e cores, pelo menos para ela.

Desse dia tem sobretudo a memória das pessoas, da condescendência, do barulho, da norma, dos rostos felizes como se todos se tivessem casado na mesma hora e com eles. Achava tudo um pouco excessivo. Aliás as festas são excessivas mesmo que contidas. Porem é nelas que o ser humano abre a torneira da satisfação. A necessidade grupal do divertimento sempre a espantou. Mas naquele dia, tão especial, Clara sorriu tão beatificamente que todos a acharam uma noiva feliz, tão feliz que até estava linda. Outro dos seus grandes problemas foi perceber como o valor das palavras se alteram de acordo com o estado de espírito do interlocutor, e sobretudo, se este for coletivo.

Clara cumpriu a sua parte com muita elegância e serenidade.

Manuel. Bem, Manuel estava irreconhecível. Elegantíssimo, todo a preceito no seu mais ínfimo detalhe. Também perfez o seu papel. Mais tarde quando já estavam longe daquele reboliço, ele dissera-lhe:” Pronto, já me sinto legal”.

Ainda hoje se interroga sobre o que ele quis dizer conhecendo-lhe todas as reticências que tinha em relação ao casamento religioso, a festas sociais. Ostentação, dizia.

Porém, naquele dia foi gloriosamente simpático. Disseram dele: “Uma jóia de rapaz!”

Um prenúncio de outros dias. Como o tempo se foi!

………………………

Permanece deitada no sofá a espreitar a noite. O livro continua a olhá-la. Prefere embrenhar-se nos seus pensamentos. Clara gosta desta intimidade que tem com as memórias, dão-lhe o conteúdo da vida. Hoje em que tudo passa numa corrida, empurrando tudo e todos, qual efeito de dominó em queda, hoje, em que parar, é sinónimo de desaparecer, hoje, é aquele tempo em que não mais se escutam as memórias, porque elas são feitas de nós vazios. Hoje, pensa Clara, erguendo o queixo acima da linha do horizonte, é o meu tempo de recordar. As suas memórias vestem o tempo. Ei-las ali mesmo defronte, sentadas, à espera de serem catalogadas no armário do pensamento.

Quando pensa em si, Clara, vê-se como alguém cujo caminho de vida tem sido difícil. Para lá das aparências, para lá daquilo que os outros gostam e são capazes de ver, tem existido uma pessoa complexa, por demais. Talvez a sua personalidade tenha sido forjada não em ferro derretido, mas sim, em pedaços de vida amassados. Vivera e tivera a noção exata do desfasamento emocional da vida dos pais. Analisara, desde relativamente cedo o que era a felicidade conjugal em desencontro. Vivera as cenas teatrais de desfalecimentos, choros, acusações e mutismos, Tivera que subsistir animicamente, crescer, diriam, no meio de muitas incongruências. Este passado não foi uma mais valência para ela, pelo contrário, foi algo que a tornou incrédula, fria e dorida. O pior defeito de Clara é não acreditar. Pura e simplesmente não crê. Não é má pessoa, no entanto para quem não a conhece, deixa sempre a ideia de altivez ou muita simpatia. Tudo isso depende do meio em que se encontra. Para os mais simples, para quem a vida é um simples corolário de sucessão de dias sem inquietações metafísicas, oh Dona Clara é tão boazinha, tão simpática, faladora, dada e de uma simplicidade e veja-se, vê-se que tem muita educação. Para os outros, aqueles mesmos que coabitam o seu meio, aos pseudointelectuais, aos alpinistas sociais e aos nouveaux riche não passa de uma criatura intragável com a mania que sabe tudo, e com a aspereza de dizer as coisas na cara, pois que pensa ser a sua verdade. Uma coitada.

O pior defeito de Clara é a sua intolerância com a ignorância. Não concebe que no seu meio, as pessoas digam disparates sobre coisas de senso comum, apenas por desconhecimento, apenas porque são incapazes de recolherem um pouco de informação, antes de debitarem, publicamente, um molhe de anedotas e ainda por cima, convictas na sua santa ignorância. Outra das coisas que lhe põe os nervos em franja é ouvir as pessoas repetirem o que outras disseram, apropriando-se dos conceitos ou simplesmente de frases banais. O ser humano é terrível, vive em atos junto a um palco que na maioria das vezes nem sequer é o seu, e outras ainda é o ator de uma peça para o qual não foi convidado. Comédias em dramas e dramas que nem a sátiras chegam.

Clara viveu uma infância e juventude processada entre dois seres muito diferentes que coabitaram o mesmo teto. Tão diferentes eram que nunca se conseguiram misturar. Água e azeite. Assim os define. Dessa não mistura resultaram quatro filhos. Ela, a mais velha, outra rapariga, um rapaz e mais uma rapariga. A diferença de idade dita-lhes as divergências não só físicas, mas sobretudo de caráter.

 

04 junho, 2022

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O Caracol de sapatos de camurça.

Sendo um animal solitário percorre os dias numa tarefa sincopada e objetiva. Recolhe-se na sua casca e com ela parte para os lugares onde pode encontrar alimento. O caracol porque é um molusco terrestre tem nas costas a sua concha, a qual carrega  diligentemente ao longo da vida, não fosse ela o seu esqueleto 

Pois bem, há quem ao longo da vida, de igual forma, carregue, não tão diligentemente, mas por contingência, não a sua casa, mas as suas malas. Caracóis denominados professores.

As malas são a sua casa, o caminho é feito de percursos vários, todos aqueles que lhe possam facultar o pão nosso de cada dia   e ainda apregoam aos quatro ventos que ensinar, é uma paixão. Bons caracóis sincopados ou antes, professores crédulos, apaixonados e traídos.

José é professor, tem trinta e seis anos. Possui aquele ar tão peculiar dos homens, um misto de independência dependente. Aparentemente sabe bem o seu caminho, porém transversa aqui e ali. Recompõe-se rapidamente e sem muita complicação, continua.

José casou-se há relativamente pouco tempo. Coisa de dois anos. Não tem filhos porque a situação instável ainda não o permite, Laura, a mulher, também não está para aí voltada, tem que palmilhar na profissão, tal como ele. Não é professora, trabalha num laboratório.

Em dois anos de idas e vindas numa distância razoável, a relação sorriu sempre, no limbo do encantamento mútuo. Este ano, porém ,José foi mandado para mais longe. Uma mala, um quartinho, duas refeições diárias, mais umas imposturices e um comboio semanal.

José não está infeliz, feliz também não, amoldurou-se. A mala, a sua casa, leva-o no comboio de volta e regresso. E isso quase lhe basta. A inquietação não faz parte do seu código genético. Filosoficamente a felicidade veste-lhe a filigrana da mente como o seu belo par de sapatos de camurça lhe calça elegantemente os pés que passeia nos seu calcorrear de professor e impõem-se na descida do degrau do comboio. Um cartão, não de visitas, mas de presença.

Hoje é sexta. Mais uma semana que se fecha entre o debitar de conteúdos, o exercício da compreensão, o esgotar da explicação, a aplicação da pedagogia, a síntese do conhecimento e a avaliação das capacidades. O trabalho semanal que nidifica o ensino. Entre o tempo gasto na construção do saber e a imagem, qual reflexo do seu desempenho humano, há lugar a um o espaço tão pequeno onde não cabe o perpassar da inquietação.. Mas afinal, não nos sentamos no decúbito do descanso após o ímpeto da conquista? assim não é de estranhar a complacência quase intermitente do professor.

José possui as imagens e não as inquietações. Revê, a companheira sorridente de olhar alvoraçado e anseia pela viagem de volta. O espaço perdido dos seus dias sacia-se na garganta húmida, no olhar terno , no sorriso fresco e nos braços quentes da sua Laura. Não existem peças caídas, quiçá perdidas de um tempo que foi ontem, somente as imagens, meras memórias. Um tempo esgotado e que crê continuado. Crédulo,

Ah, o tempo tem horas cheias e outras vazias. Tem os ângulos próprios da geometria de cada dia, José descuidou-se na classificação do ângulo da sua vida. Nada é imutável e os ângulos nascem, crescem e apagam-se na sua forma de acordo com as divisões que a circunferência da vida toma.

Longe, na distância da viagem de um comboio, Laura cansa-se da solidão. Recorda com algum enternecimento a biqueira dos sapatos. Sim, o estremeço que lhe dava até há bem pouco quando via aquela biqueira de camurça romper no vazio do degrau do comboio. Hoje, deseja que a biqueira, os sapatos e o dono fiquem longe, onde estão.

As reações nos seus tubos de ensaio são mais precisas, temporais e falíveis. Não existem hiatos. O hiato mata. O hiato não é companheiro do entusiasmo, porém quando o último soluça começa-se a morrer. Laura sabe que o estremecimento se calou.

Como sucedeu?

Não sabe quando a rotina da solidão a fez perder a noção de encantamento. Respirar sem viver foi coisa que lhe revolveu-as entranhas numa agonia de meses e, a facilidade como partiu para novos desafios, encontros e companhias, fá-la rodopiar numa espiral de contentamento. Foi sentir o estremeço do   riso e do alagamento que a cordou para este presente. Não espera pelo comboio e muito menos pelos sapatos de camurça que um dito José, antes mote da sua vida, hoje pretérito imperfeito dos seus dias, cheguem.

E ele?

Inexorável na sua paixão passiva de pedagogo viu a sua vida perder o lastro do estável, para ser mais um entre tantos mil, sem rumo afetivo. Um homem desvaria nos primeiros dias, mergulha nos subsequentes e vem à tona nos outros que chegam. Assim foi.

O ensino absorveu-o mais do que nunca, a solidão que de início o enrolou, no seu fato já gasto de tempo e hábito, essa solidão, que para o mais incauto é sinal de maturidade, despojo e até placidez, tornou-se a sua insegurança insatisfeita. José é um tipo como muitos outros, um inseguro escondido na sua casca de caracol, tornando-a o seu habitat, aí dormitando, nela congeminando e dela saindo para as contracenas que o palco lhe estende. Mais um outro personagem no teatro dos sentires.

E o José-caracol-professor vai deslizar lenta inexoravelmente por entre as escolas, essas as musas da sua paixão, ao mesmo tempo que os sapatos de camurça castanha ficam velhos e  a sua bela casca fica dura até, num dia qualquer ficar vazia…

Chaves, 3 de junho 2022

Maria Teresa Soares

 

25 maio, 2022

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 .As coisas dos dias …
 Há dias que são cinzentos. Há dias que são pesados. Não pelo tempo, mas pelas coisas. São as coisas que vêm, ficam e caem. E os dias afundam
 Há dias pesados. Aqueles que acordam com sol, crescem ventosos, entardecem cinzentos e adormecem húmidos. São os dias da vida.
 Há gentes como os dias. Nascem cinzentos, porém abrem os olhos ao sol, fechando-os de imediato porque a luz desventra-os, permanecendo na letargia das horas pela vida fora. Gente cinzenta, gente pesada, gente dos tempos. Depois os dias cinzentos de gente cinzenta, quais sonâmbulos giram na lentidão dos anos, com meios sorrisos aqui e ali num deslizar de tempo sem alma. Percorrem caminhos sem olhar em redor numa inércia metabólica orlada solavancos e quando chegam, se chegam ao sítio, olham num misto de cansaço e desdém e acomodam-se. Gente cinzenta … 
Há outra gente, leve e móvel que desliza nos dias claros, que sorri e sabe caminhar, que calcorreia os caminhos em passos seguros, em passos de busca
 A natureza das coisas porque é caprichosa tem por devaneio estender atritos que fazem a gente de luz tropeçar, cair, esfolar-se, levantar-se e continuar. Nada lhes é fácil. Nasceram em dias claros, os dias quentes da razão e do porvir. Gente de sorrisos.
 Há dias de chuva. Miúda e semítica. Gotas por ser. Há gente como os dias. Gente pequena do tamanho do nada com a altura do ser. Passam e perpassam entre as gotas semíticas. Alimentam-se delas. Hidratam-se. Húmidos e semíticos partem para a vida. Vivem na humidade do receber e secos no dar, aconchegando-se no bolor húmido de ter. São gotas.
 Há dias de vento soprado, forte, arrepanhado e zangado. Há ventos que quebram, há ventos que fustigam, que marcam que enrolam e varrem. Há dias assim. Assim há gente. 
Gente do vento. Gente impetuosa, agreste, forte. Gente que assobia, ulula e depois serena. Gente apressada qual porta sem tranca que bate de supetão para depois deslizar de mansinho e quedar-se. Gente em azáfama de horas para não se se perder na espiral do tempo. Gente em contraponto.
Há dias falsos. Aqueles que pespontam com luz e se cobrem de sombras numa máscara desbotada de Carnaval cansado. Há gente de máscaras. Tapam os rostos disfarçam-se de arlequins, palhaços, damas, cavaleiros e animais do mundo 
Há dias de tudo, dias num rodopio de faz-de-conta. Passa o tempo, passa o engano, passa o riso de época e a máscara cai. Ah, mas há sempre uma em cada tempo do ano! 
Há dias felizes, dias da terra, dias da gente. Dias em que é natural sonhar, rir e crescer. Há tempos de amanhã com horas de presente. Há gente de presente com alma de amanhã e há amanhã sem presente. A gente faz, a gente desfaz. Há dias de tudo. Dias de agora e dias que vão ser. Há gente que vai ser e de agora. 
Há coisas que são dos dias, há dias que são da gente. Gente dos dias e dias que faz gente. São tão simplesmente as coisas dos dias. 
Chaves 25-05-2022
Maria Teresa Soares


09 março, 2022

Às mulheres ucranianas

. Corre serena na rua vazia de gente e troada de projeteis. Suspira na esquina do fumo entre golfadas de alento. Semicerra os dentes na força do não querer partir e na razão do despedir. No braço leva um saco, nas costas a mochila vazia de tudo, mas cheia de necessidades. Na outra mão, a mão quente, entrelaça os dedos numa mão redonda da criança. É Natalya. É ucraniana. É mulher. Março, oito, 2022. Diz-se Dia Internacional da Mulher, diz-se dia de Direitos. Diz-se dia de Amor. Diz-se… São passos rápidos, fortes e fustigados que a conduzem. São ventos soprados de este que chegam embriagados em vómitos de fogo e raiva. São espasmos bélicos de louco. São labaredas que varram a pele e derretam a alma de um povo. Mas Natalya continua… Tem na mão o futuro, pequeno e macio, trôpego de força, lesto de Amor, cordão umbilical da família. Andriy… Natalya e Andriy sozinhos no gelo defecado de fogo sob um céu cinzento agoniado de dor, caminham… Longe, muito longe estão as mãos que aconchegam, que embalam, que perpassam na alma ferida e suturam, que olham nos olhos partidos de lágrimas e sorriem de esperança. Lá é o lugar. Há que chegar. Há que andar. Há que deixar o caos, a dor, o ódio, a ganância e a loucura. Natalya é mulher, possui a força da árvore, a leveza do ar e a força do caudal. Tem na alma a mater do mundo, e na vontade o sacrifício dos milénios. Caminha nos passos da fuga, caminha porque a vida de mulher é feita de caminhar. Hoje, é o dia, o dia de todas as Natalyas! Coragem! 8 de março 2022

05 dezembro, 2021



O tempo....
Tenho ouvido, nestes últimos tempos, falar muito de tempo, de bolha de tempo, do que foi e já não volta, do tempo perdido, enfim do passado.
O passado é aquele muro a que subimos, onde nos sentamos e que depois descemos ora titubeando, ora graciosamente ou ainda de supetão. Assim, não se me afigura tão memorável, saudosa ou ainda percetível tantos suspiros de memória, pois que não sendo mais do que o caminho dos nossos dias torna-se o resultado dos nossos passos. Há quem se lave de memória e na memória, quem se vista dela e há aqueloutros que se adornam da mesma. Gostos.
Não acredito em bolhas. Só as de espuma cuja duração é de átimos de segundo. Não acredito no passado revivido ou por viver. Tudo tem o seu peso e a sua conta nesta vida. O que foi, foi, o que era, era, os tempos verbais atestam o concreto.
Bolhas de tempo? Metáfora ou sinestesia? Comparação ou sensação? Na verdade …
Agostinho rijo de tempo e vida nos seus setenta anos ainda abre as portas da sua loja. Lê-se nos vidros pintados em tons de outono” Tino Gourmet”. Quem entra depara-se com prateleiras onde se alinham meticulosamente boiões vestidos de cores quentes da vida que fazem crescer a saliva. E o cheiro? Ui, o cheiro é esfomeante. De um lado, cestas de vime velho repletas de frutas e do outro um balcão de ar sério onde espreita o pão.
O “Gourmet do Tino” é moderno na sua conceção e velho nos seus sabores e odores.
Agostinho Roxo, nascido e criado na velha Lisboa dos anos vinte, viu mais mudanças na sua vida que de peúgas mudou até agora. Senão vejamos: apanhou com o rescaldo da IGM, a gripe espanhola, a IIGM, a Guerra Fria, a Guerra colonial, e outras pelo mundo fora, o explodir dos interesses do médio oriente, as guerras civis, as crises monetárias, as financeiras, as mudanças concetuais da diferença fosse de etnia, género e outras, tanta, tanta coisa, que o pobre homem muitas das vezes é a olhar para a imutabilidade dos seus frascos que consegue apanhar o fio à meada aos dias. Contudo, nunca foi homem de bolhas de tempo, rompeu-as sempre e foi à luta.
Da velha mercearia de bairro, por sinal bem situada, transformou-a numa loja gourmet de acordo com os novos preceitos de mercado. Ouviu falar na Web Summit e pôs-se a caminho, apesar do preço do bilhete não ser para gente pobre. Mas lá foi. Ouviu, ouviu, percebeu pouco de início. Uma linguagem truncada, onde os mais jovens debitavam projetos à velocidade do trânsito lisboeta em sexta-feira à tarde. O pobre Agostinho saiu tonto. Foi para casa e meditou, pesou, telefonou ao filho, à neta e ao contabilista , concluindo que tinha que mudar o rumo do negócio, senão estava acabado.
Se bem o pensou, melhor o fez. Depois meteu mãos à obra.
Fez a sua candidatura pedindo o empréstimo a fundo perdido de acordo com os novos cânones, subordinando-se ao subtítulo em questão de dinamização empresarial. Um projeto cheio de papelada, para” Endogeneizar dinâmicas de inovação proativa em articulação com o mercado, geradora de novos produtos e serviços”.
O funcionário abriu os olhos da monotonia habitual e bom do Agostinho continuou o seu discurso: pretendia
reforçar a sua responsabilidade individual de empresário enquanto agente socialmente responsável pela criação de riqueza; tornando-se um empreendedor ativo e consciente do seu papel positivo na organização, desejava, por outro lado, fazer da "empresa" um espaço permanente de procura da criatividade e do valor transacionável nos mercados internacionais consolidando uma cultura de cooperação ativa entre empresas pequena se grandes, nacionais e hipoteticamente internacionais
O discurso estava bem decorado.
Pois entre papeis, arranques, demoras, desesperos e aceitação, chegou, enfim, o dia em que o empréstimo lhe foi concedido.
Imediatamente as obras na loja começaram. Arrastaram-se mais do que o previsto, mas também é quase bíblia no cantinho em vivemos. Daí somente um pequeno desespero.
Os meses voaram. Finalmente chegou o dia em que o “Gourmet do Tino” abriu portas.
De início os clientes espreitavam receosos, não da qualidade, mas da quantidade de euros. As bolsas da nossa casa são, invariavelmente, modestas. Perante uma clientela arredia, Agostinho começou a ver os seus dias enovoados, cinzentões , a pavimentarem o caminho de mais uma malfadada crise.
Na verdade, o que lhe importava era fazer negócio, fosse ele gourmet ou prosaico. A caixa registadora não tilintava como lhe fora impingido pelas jovens mentes, nemo negócio nada tinha a ver com os gráficos projetados.
Havia um vazio entre o prometido e o vivido. Algo não batia certo. Havia que mudar o estilo, sem mudar o rumo, pois que estava financeiramente atolado.
Não dormia o bom do nosso amigo. A enrascada era demasiado grande e a idade não lhe permitia grande descanso. Conversou com a sua Rita, companheira de muitos altos e baixos nos quase cinquenta anos que levavam juntos. A perceção feminina pura e simples, nua de conceitos e calçada de experiência sugeriu-lhe que mantivesse tudo por fora igual, mas que fizesse uma espécie de promoção semanal dos legumes mais antigos e das outras coisas mais baratas que não tinham tido muita saída ao longo da semana. Assim não só escoavam os bens perecíveis , seriam um chamariz e arrecadariam algum dinheirito.
-Sabes Tino, a gente do nosso bairro, os nossos, ainda não se importam se as coisas vieram ontem da horta ou não, o que eles querem é ter comida para encher a barriga, comer muitos legumes, alguma fruta tal como nos impingem agora, comer saudável como é modo e dizem fazer bem à saúde. Tudo isso desde que não seja caro. O caro, é que é o Diabo, por isso é que desconfiam e arredam.
É verdade, Rita. Mas não posso fazê-lo assim como antigamente. Tenho que lhe dar um ar, tudo tem que ter um Ar novo. É quase lei.
-Ó Agostinho. Há tantas caixas que vêm por aí, é só começar a forrá-las de folhas dando-lhe um ar de cabazes bonitos e saudáveis, com um preço apetecível e ao fim de , digamos , seis cabazes têm direito a um miminho, uma compota, um docinho qualquer e vais ver… claro que nunca te esqueças de ser simpático, muito simpático, ser quase feliz. O cliente espera isso de nós.
-És capaz de ter alguma razão. Não há como experimentar.
Passei no sábado por aquela loja de bairro de nome sonante e não era que estava cheia. Na porta, uma mãe dava a mão à filha e na outra carregava uma bela caixa de legumes que quase parecia uma floreira.
As bolhas do tempo também se abrem …
Chaves out.2021
Maria Teresa Soares
Manuela Lopes, Orinda Caetano e 16 outras pessoas
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02 agosto, 2021

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A semente e o silencio e a soidão

 

Sofia, a semente, caiu enrolada no chão. Recolheu-se na escuridão escura e húmida da terra abrigo. Queda, respirou, aspirou e alimentou-se. Germinou. Lenta e metodicamente lançou -se em busca da luz. Quando espreitou, achou-a.

Sofia, a semente, estava no mundo, mas estava só. A solidão abraçava-a.

Sofia ganhou força, expandiu a sua vontade, tornou o caule mais ereto ainda, alargou e multiplicou as folhas e cresceu. Pã, a solidão vagueou intermitente em seu redor na exata medida dos dias do calendário a primeira vintena do novo milénio. Vagueando entre muros vazios e luzes apagadas, Pã entrelaçou-se com o silêncio, com Lala.

Sofias a semente, Lala o silêncio e Pã a solidão. Três nomes, três sentires, um hiato do mundo.

Porém a semente germinada tornou-se planta, de planta em arbusto e finalmente árvore. Floriu qual jacarandá tardio, mas floriu. Floriu a esperança e coragem de um amanhã. Sofia fez-se grande

E Sofia saltou para o tempo.

Um tempo de vazios, de contrições, de medos, de distanciamento, um tempo sem alma. O tempo que nos rodeia.

Sofia a árvore de ramos brilhantes e folhas verdes. Sofia a semente, arbusto, arvore, a esperança. A semente da esperança. A esperança que corre nas veias de outras sementes germinadas, redondas, quadradas, esguias, fortes, fracas, voláteis e duradouras. As sementes humanas que tremem, que adormecem sob  as franjas de Pã e lutam contra Lala. Lala é a bruxa que engole os sentires, Pã a força que quebra o porvir.  Três lutas. Três hiatos, três esgares.

Amanhã, talvez, as sementes do mundo voltem a viver.

Amanhã será de novo madrugada.

Chaves, 2 de agosto de 2021

Maria Teresa Soares

 

18 maio, 2021

 Admirável Mundo Velho
2021 parece desembocar na era do inverosímil. Nada que não fosse expectável, claro que o era.
O Covid -19 teve destas coisas, fez esquecer as maleitas de carácter para se focar exclusivamente nas doenças do corpo do nosso cantinho, da Europa e do Mundo., pois que, por ora ainda somos todos cidadãos desta aldeia global. Pasmamos com a pandemia no Brasil, com a virulência que explode na Índia, com as mutações sul-africanas, com a celeridade de inoculação nos States, com o controlo quase, quase, conseguido em terras de Sua Majestade, (pena que a variante indiana esteja a fazer das suas), ficamos felizes, e muito bem com as descidas do RT, com a vacinação, com o de confinamento e a aceleração da economia, e mais do que tudo isso, com a nossa intrínseca liberdade. Podermos circular, podermos ir de Aa B e de B a A, algo que embora pequenino é muito nosso e ao qual apelidamos de Ser Livre. Pois então, somos de novo livres. Com condicionantes, com cuidados, com panaceias, mas somos. Este pequeno grande item já está solucionado.
Contudo, no meio de tantos problemas de saúde publica, sociais, económico-financeiros (ainda estão para eclodir, segundo dizem os experts), que parecem grassar de forma atribulada por esta aldeia global, existe numa tal aldeia, por sinal muito bonita, geoestrategicamente situada algures num cantinho da Europa e, segundo o seu poeta maior, à beira-mar plantada, que como é pequena em território, acaba sempre por meter-se em grandes sarilhos. Servindo-me do conceito de Principles of Population de Malthus, diria que arranjamos sarilhos em proporção geométrica enquanto solucionamos problemas em proporção aritmética, o que de acordo com a teoria implica um deficit de estabilidade constante.
É, pois, esta instabilidade que grassa no nosso quadrante seja do foro judicial, seja financeiro, seja económico, seja social, cultural e até humano, que desatina, desalenta e irrita o nosso Zé Povinho tão fustigado por decisões e falcatruas cujos epílogos acabam sempre por ser redondos para quem as executou e quadradas para os outros, que as têm que pagar. Na verdade, quer-me a mim parecer que o Estado não produz riqueza que não seja a que lhe advém dos impostos ou dos subsídios sine die que a comunidade vai adiantando, ( não foi em vão que aderimos às dez regras do Consenso de Washington e tendo em conta que seremos perenemente uma economia em desenvolvimento, cá vamos usufruindo das verbas do FMI e do Banco Mundial), porque assumimos a nossa economia como de  neoliberal o Estado não é detentor de empresas de transporte, de correios, de águas, de eletricidade, e demais bens.  Assim seja se for por bem.
Todavia, o por bem desta nossa pequenina aldeia parece não funcionar. Não será culpa dos governos e respetivas ideologias políticas, as quais parecem não navegar, mas antes soçobrar no mar da tempestade do nosso cantinho. Se ainda copiássemos o da Tranquilidade lunar, talvez, embora lunáticos, avançássemos. Há uma degeneração genética de carater que dá pelo nome de corrupção. É essa corrupção que perpassa lasciva entre os cidadãos, tornando uns quantos passivos, outros indiferentes, outros encolhidos e outros ainda revoltados. A revolta nasce da injustiça, ou antes, a justiça deveria prevenir a revolta. pois ela obstrui que a falta de justiça que está na base da sociedade, seja conhecida por todos. Vejamos então, se a justiça é aquela que previne a revolta, as leis do Estado, visando a justiça, são estabelecidas pela força, será incongruente que o povo obedeça às leis e respeite os dominantes em virtude de uma imposição arbitrária da força. É nessa força que se esconde, a ignominia da impunidade que alguns cidadãos nacionais usufruem, pese sofrerem de degeneração vinculativa de carater. Não vale a pena mencionar nomes, até porque seria deselegante e, por outro lado, os mesmos estão frescos na memória de cada um de nós, não pelo bem que fizeram, mas antes pela caterva de venalidades que alegadamente cometerem
Não foi por bem, não foi bem.
A vida é feita de episódios. Muitos. Tantos, que muitos são esquecidos. Ficam na memória da gente. Os bons, vá lá saber a razão, desvanecem-se no tempo ao ritmo do apaziguamento da serotonina, os menos bons corroem dando azo a um mal-estar generalizado, o qual passa pela vulgarização da descrença seguida da maledicência irónica quiçá vingativa. Porém, se o dichote, a ironia, a sátira são elementos constituintes da verborreia lusa, já o alheamento, o descrédito, o afastamento generalizado dos das mesas de voto, da participação  em atos públicos, o ser opinativo de modo construtivo, fazer saber e mostrar de acordo com o  consignado em lei  sobre o que vi mal neste cantinho, parece não  merecer aquiescência dos Tugas que,invariavelmente, delegam nas mãos nem sempre impolutas ou hábeis dos políticos.  Depois do aligeirar das responsabilidades, culpabilizam-se os atos daqueloutros cujo mister seria gerir a coisa publica e parece que, ao invés, progadilizam em bolsos vá-se lá saber de quem. Alvitram-se hipóteses, porém, o certo é que de acordo com as sentenças judiciais, dessas hipotéticas conjeturas saem-se quase sempre impolutos como se fossem puras virgens platónicas. E o povo arrelia-se, torna-se incrédulo, encolhe os ombros e vai à sua vidinha.
Não é por mal. É por hábito.
É verdade que a democracia foi corrompida. Sabemos que quando os indivíduos deixaram de “decidir” algures entre a retoma burguesa dos séculos anteriores e o assenhoreamento da classe política no que respeita ao bem comum, ai cessou o conceito de regime politico em que todos os cidadãos elegíveis participavam de forma igual seja direta , seja indiretamente através dos seus legítimos porque eleitos representantes. Hoje a coisa não é bem assim. A distorção consolidou-se entre políticas, banqueiros, empresas e ideologias. Uma alquimia de não símbolos químicos incapazes de gerar o “ouro” do bem-estar social, originando a refração do nosso caleidoscópio racional em dúvidas, negações e equívocos. O sistema padece de doença, uma verdade anquilosante que petrifica a capacidade humana dos governantes, tornando-os, muitas das vezes, reféns de decisões, interesses, análises e inclusive, pasme-se, de boas vontades.  Governar é difícil, muito difícil, extremamente difícil, sobretudo num mundo em constante transmutação, em busca de si mesmo, esgotado em si, cujo único crédito e descrédito em simultâneo é o de ser gerido pelo ser humano. Creditamos políticas, atos, ideias, gestos e sentimentos., mas igualmente usamos o descrédito com ações, conceções, produções, rendas, consumos e acumulações de capital em atos económicos de limpeza duvidosa a tresandar a vicio. São estes óbices as forças centrifugas e centrípetas que transformam os indivíduos em meras espirais de movimento. A nossa inarrável capacidade humana de sofrimento perpetua-nos tanto na queda como na ascensão, porque somos mais do que carne e osso e menos do que pura energia. Ficamos, talvez, no meio caminho, na busca do amanhã, vivendo o presente, com a memória do passado e piscando ao futuro como quem não a quer a coisa.
Assim fomos, assim somos.
Vivem-se tempos de lavagem. Lavam-se os conceitos, o passado, a vontade, o dinheiro, o sentir. Há no ar um desejo de pulcritude antagónico aos atos, um disfarce veneziano fora de época. A história faz-se do bom e do mau, não se reinventa, não se destrói, não se manipula. É fixa no seu passado mau e bom, por isso é história. No entanto, talvez devido à letargia mecânica provocada pelo Covid-19, deu-se inicio a uma verborreia de ideias, as quais necessitando de seriação, irromperam descontroladas pelas urbes desta nossa aldeia global, crispando à sua passagem a historia do mundo que, não é senão a do Ser Humano.
Porque então pretender que este espécime de vinte e um seculos belicista, belicoso, rude, dominador, mas também criativo, conciliador, sonhador, numa palavra humano seja réu da sua própria história? A história dos pequenos e dos grandes, dos bons e dos maus é que nos permitiu estar aqui e agora sentados num mundo que queremos que seja melhor, que, no entanto, ainda continua firme nas suas incongruências e desleixos para com o próximo.           A máxima errare humanum est assenta-nos como uma belíssima luva. Assim tem sido no desenrolar dos séculos: de erro em erro construiu-se o que prosaicamente achamos bem, construímos destruindo ali, erguendo aqui, aplainando acolá, até chegarmos ao edifício final de hoje. O mundo, o admirável velho mundo , qual feixe assimétrico foi a base deste que dizemos de forma quase garota ( o mundo ainda cresce) ser um admirável Mundo Reinventado  
Se assim for, que seja por bem.
Chaves,18 maio 2021
Maria Teresa Soares.