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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

02 julho, 2023

A culpa foi do meu pai! A culpa foi dele!

Henrique detém-se, por breves instantes, diante da filha mais velha. Está amarrotado no olhar e no gesto nervoso, transpira o segredo do passado. Logo, retoma o seu vai e vem inquieto na carpete vermelha. Senta-se à sua mesa de vidro e num sinal de desalento, quiçá arrependimento, coloca as mãos entre a cabeça debruçando-se mais sobre si mesmo, abana a cabeça, enquanto com o polegar a coça no lado direito. Um gesto que lhe ficou do tempo em que a brilhantina lhe empapava os cabelos. Assim fica durante uns minutos. Depois ergue os olhos já mortiços. Os anos não perdoam. A vida há já muito que corre por ali.

Mais um dia de desencontro. Mais um, entre todos os outros, dos seus dias. Henrique vive duas vidas. A de casa e a das fantasias. A sua instabilidade afetiva, o seu saltitar emocional, o seu desejo por algo inatingível sempre o perseguiu. Vê -se transido de medo por detrás da saia da mãe, enquanto o pai, podre de bêbado, gritava que nem um possesso. Vê-se trémulo esfregando o pé no outro, sentado no banco de madeira à espera do prato da sopa na mesa quase vazia. O pai reformado, jogador, bêbado e outras coisas mais, olhava pela família. Lembra a figura doce e sofredora da mãe, abrindo os braços para o acolher como se a paz estivesse ali, naquele abraço. Revê os olhos negros na face cheia podres de amargura, a boca quase sempre fechada entreabrindo-se num esgar sorriso de conforto. Lembra-se de um lar desfeito nas mãos de um homem que fora seu pai. O riso feito lágrimas, os gritos feitos palavras, o choro feito dor, a fome feita alimento. Cresceu assim. Tornou-se belicoso, doce, triste, alegre, pecaminoso, amigo, pai, marido e homem. A raiva engoliu-a em digestão difícil. Levedou para sempre e, ao mínimo aquecimento, rebenta num chorrilho de impropérios sentidos no momento. É incontrolável, é a fúria, é a pena de si. Sente profundamente o que pensa, e numa rapidez única verbaliza essa corrente num esgar provocatório de fúria que não controla. Depois esvai-se, esquece-se, apaga-se, mas jamais pronuncia a desculpa. É a força que lhe estrangula a garganta, o orgulho de si que o impede, é a sua revolta que o perturba mais e mais. E o tempo passa sobre cada ira, o tempo das horas, dos dias, dos meses e dos anos. Tempo. Reconheceu sempre os erros, mas não deu nunca o braço a torcer. Outro, dos seus muitos predicados, era dizer o que sentia diretamente olhos nos olhos às pessoas. Não gostavam, e nas suas costas comentavam, com aquele ar revestido do tom depreciativo: “Quem julga que é? Um pé rapado, um pobretanas, sem eira nem beira que se arvora em grande personagem”! Que tipo irascível!

Porém, no dia-a-dia sentavam-se à mesma mesa de café, sorriam em semidecúbito e afagavam-lhe as costas com as palmadinhas melífluas que a sociedade procriou. A sua vida fora feita de nós que ele próprio causara. Não era mau tipo, só tinha um feitio lixado, como diziam os amigos e a mulher e os filhos, bem quase todos. Havia a mais velha que o aceitava. Não o temia, acatava as suas iras, julgando-o silenciosamente. Agora, mulher madura conversava com ele dizendo-lhe claramente que não estava correto, que não era assim que se fazia. Não partilhava o desassossego que o resto da família sentia. Não, porque o percebia. Ele apercebia-o. Não que a amasse de modo diferente, apenas e somente a respeitava, talvez, um pouco mais. Naquele serão, uma vez mais, ela retorquiu-lhe, após a explosão de culpa solta.

-Os mortos não são culpados. Os vivos é que fazem os disparates, não é justo, culpar quem já cá não está, pai!

Olhou-a de olhos vazios e recolheu-se de novo falando para si. Ela, a filha deixou passar o tempo, deixou-o sossegar. O ar pesado diluiu-se, passado um tempo a conversa retomou o seu curso de sempre. Não era um homem fácil, mas era encantador. Um sedutor enviesado. Conversador nato, com uma fluência de palavra própria de quem gosta e sabe cativar assenhorando-se do tempo. A sua voz não era metálica, nem troante, porém, o seu tom era claro e alto. Sempre houve quem não gostasse do tom de voz, e pensando ser uma forma de subjugação. Puro disparate. Gostava, sobretudo, de ser ouvido mesmo quando o assunto era fastidioso. Nesses momentos, era preciso olhar sorrindo, e mesmo ausente, ir respondendo por monossílabos. Noutras alturas era bom ouvi-lo dissertar sobre coisas passadas e aprender. A ironia rendilhada era percetível para os atentos, esquiva para quem não o entendia. Não podia ser definido por um homem colérico porque a par das suas raivas, das suas tempestades, das suas verdades doridas em tempo de cólera, havia depois um quebranto, que o levava a ser uma espécie de menino arrependido, mas teimoso. Era, então, que se revoltava contra o pai.

Naquele serão, como em tantos outros ao longo dos seus setenta e cinco anos de vida e cinquenta de casado houvera mais um desaguisado entre ele e a mulher. Pontos de vista, palavras ditas aqui e ali, conceções diferentes e acima de tudo traições, pequenas ou grandes que ela nunca lhe perdoara, embora continuassem a viver lado a lado, a pôr-lhe a roupa, a cozinhar-lhe os almoços e os jantares, a gerir-lhe o dinheiro, em suma, a pontificar o seu quotidiano o que para ele, aliás, até era um alívio, uma vez que o trivial sempre o aborrecera. As chamadas minudências do lar eram-lhe fastidiosas como era fastidioso, quase desesperante ter que fazer o seu trabalho repetitivo, desprovido de criação, sem palavras, feita de números que nada lhe diziam, porque para além de serem números, que nem sequer seus eram. Bah, o que lhe interessava a ele, se o estabelecimento A, B, ou C tinha lucro, se o comércio ia de vento em popa, ou se pelo contrário, estavam com as vendas fracas. Somente no primeiro caso ser-lhe-ia mais difícil esconder os lucros para que o cliente pagasse menos impostos. Tudo isso estava intrinsecamente ligado à sua profissão. Sonegar e enganar. Com a ironia própria da sua maneira de ser, muitas vezes pensava que ao fazê-lo profissionalmente era uma atitude aceite e quase sacrossanta por parte da sua Suzette, que achava que assim ele era um bom profissional na medida exata em que receberia mais umas “recompensas”, traduzidas, claro está, num chequezito que, iria providenciar mais algum conforto ou até descanso. Porém, quando na sua vida de homem escondia, enganava, ao ser descoberto era arrasado, jamais perdoado apenas desculpado momentaneamente. Logo a seguir, os epítetos apareciam, sobretudo em ocasiões como a daquele serão. O pomo de discórdia fora banal como sempre. A família de Suzette. O muito que tinham granjeado com suor e lágrimas, a vida simples e desprovida de laivos de vaidade, a seriedade nata dos irmãos que os levavam a ter uma só mulher e a viver dependente dela e dos filhos numa harmonia frugal e quimérica. Enfim um corolário que ouvia, sabe-se lá há quantos anos, talvez desde que tivera aquele malfadado caso com a empregada, em que pusera quase tudo a perder. Depois disso, fora um eterno calvário de críticas e quase desprezo. Sabia muito bem, sabia, que a sua Suzette tinha alturas que o aturava não porque o amasse, antes porque era a sua subsistência, porque era o seu hábito, e principalmente porque lhe era penoso, a ela, ter que mudar. Não pelos filhos, que esses estavam criados e mais que criados, mas por ela. Apesar da sua quase auto convicção de liberdade pessoal era uma mulher muito dependente. Nunca saberia ser autossuficiente. Não possuía estrutura para tal. Não tinha interesses pessoais para além da vida de casa, da dos filhos, e acima de tudo, da deles. Naquele serão como em tantos outros, o desprezo chicoteou-lhe o coração. E, como tantos anos antes, tantos que se perdiam na bruma, reagiu. Não se encolheu nas saias da mãe nem no canto vazio da casa, não, ripostou de forma desabrida, de palavras tortas e tom altaneiro. Jogou à defesa para encobrir as suas misérias humanas, os seus erros, as suas paixões perdidas, o seu amor por ser. Especificamente para se proteger. Quem diria que ele, Henrique Gonçalves conhecido pelas explosões verbais, pela crítica demolidora do socialmente correto, ele, que fazia lembrar o homem bomba do canhão do circo, não era senão uma alma que jogara toda a vida à defesa. A culpa… a culpa…

A culpa instalara-se na família. Culpa das palavras e dos atos. Culpa das ideias e dos percursos ou não percursos. Culpa dos objetivos, de ter ou não ter, culpa do aspeto físico, culpa da inteligência ou não inteligência. Enfim, culpa de Ser.

 

II

 

Clara recolhe as memórias com o olhar num suspiro de ar vivido. Como o tempo passou, medita. Está sentada no alpendre da sua varanda. O jardim em redor dormita na quentura da tarde. O Verão respira ali, ao lado, no bafo do seu alento. Poisa o olhar dentro do tempo e sorri de olhos húmidos.

Como o tempo passou! Aqui mesmo ao lado correu apressado, como correu apressado, nem deu tempo para saborear a vida. Como correu depressa, ontem ainda queria o amanhã, ontem, ainda era hoje. Assim, num ápice, voaram os anos. Remexe-se na cadeira. Levanta-se. Um passo, dois. Desce os degraus da varanda e estende as pernas pelo jardim, puxando uma erva aqui, revolvendo uma pedrita ali, arredondando uma folha acolá, uma forma como outra qualquer de afastar os pensamentos. Junto da sebe das hidrângeas inclina-se, colhe duas para a jarra do hall, pensa. Dá volta ao jardim da casa mastigando o verde das sebes, mais o das árvores. As rosas, parcas este ano, dão o tom macio ao verde do jardim. Suspira quando se senta de novo no banco. A sua casa. O porto dos seus sonhos e das suas angústias. Tanta vida entre as paredes brancas de uma casa. Em cada espaço existe um pouco de si e da sua vida. Entra. A cozinha fervilha no sossego dos cheiros. Inspira. A serenidade entra-lhe pelas narinas abertas. Tudo descansa naquela hora. Transpõe a tijoleira vermelha, e logo o estalar seco da madeira palpita sob seus pés. Já está na saleta. Atira-se no sofá verde, estende as pernas e semicerra os olhos. A sonolência apossa-se dela. O calor dolente e o peso das memórias fazem-na ficar assim quebrada. Puxa a almofada de ramagens verdes e pretas e estende-se. Cruza os braços sobre o peito e abandona-se ao sono de imagens vividas.

………………

Naquela tarde enquanto dava a segunda aula sentiu-se oprimida. Olhou para fora, pela janela mesmo quase ao lado da secretária, as serras respiravam a tormenta. Estavam escuras e poderosas. O céu pintara-se de cinzento pesado e mal se mexia, agrilhoado. Clara entreabriu a janela, porém o ar não limpou o seu sentir. A borrasca pressentia-se. Iria estalar a qualquer momento. O suor pespontava-lhe a testa. Sentia no corpo aquele tempo sem ar.

Caminhou pela ala entre as primeiras carteiras enquanto debitava a matéria. Uma pergunta aqui e outra ali. E o ritmo da aula girava. Mas aquela opressão continuava. Despiu o casaquito de algodão. Resolveu fazer uma pausa na explicação. Os cinco minutos de descanso que dava aos alunos sempre que havia matéria nova. Conversa daqui, conversa dali e, ei-los relaxados. Podia recomeçar. Recomeçou. Cansada olhou de soslaio para o pulso onde os ponteiros pareciam colados. Não se mexiam. Alguma coisa ia acontecer. Conhecia-se por demais para desprezar os sintomas. Aquela opressão causava-lhe um certo atordoamento mental. Bom, o melhor era mesmo continuar a aula. Não valia a pena antecipar-se. A ansiedade não lhe daria descanso. Continuou no seu deambular explicativo, enquanto os alunos se entretinham entre o conteúdo que escorregava por entre os ouvidos, noutros casos era bebido pelas mentes, e noutros ainda era devolvido intacto ao ar pesado da sala.

E o tempo decorreu. E a campainha tocou. O tropel habitual aconteceu. Apanhou as suas coisas, atirou o olhar habitual à sala, fechou a porta e caminhou. Na sala do primeiro andar, onde todos os colegas se reuniam, pairava o calor abafado casado com o som das vozes. Os professores falam alto. Muito. As vozes têm tendência a tornarem-se estrídulas. Clara sentia-se zonza, cada vez mais. Agora era uma agonia vinda não do estômago, mas de algures, que não sabia bem definir. Sentou-se.

Clara, estás bem? Ouviu muito longe, a voz.

Quis dizer algo, mas a língua estava presa, o rosto também. Havia como que uma força a agarrá-la, roubando-lhe a luz do dia, embaciando-lhe o cérebro.

Sentiu-se mole. Terrivelmente mole.

Estava num sítio diferente, estranho, quase diria, esquisito. Estava separada. Ela aqui e a outra, ela também, mais além. Duas pessoas e uma só. Conseguia sentir que a outra lhe pertencia, porém era diferente. Cansou-se e fechou os olhos.

À medida que o tempo passava, a outra vinha-se aproximando. Tão devagar que nem dava por isso. E o cansaço desvanecia-se. Parecia que o torpor a ia deixando. Que o calor e a vibração começavam a tomá-la.

Abriu os olhos três dias depois. Disseram-lhe que tinha estado mais para lá do que para cá. Qual quê! Simplesmente adormecera e deixara que o seu corpo flutuasse. Tão simplesmente. Estava debilitada, sentia-o, contudo o seu cérebro funcionava. Foi retomando a posse dos seus sentidos. Sentia-se quase normal. A vista não. Qualquer coisa não batia certo. Mas não se ia preocupar agora que tinha acordado, e via o mundo à sua volta com outras formas. Esquisito. Mas as pessoas pareciam-lhe diferentes mais pequenas e sumidas. Aquele ar de conquista, aquele brilho de vontade, o frenesim do ser ouvido, tinha-se evaporado. Afinal eram comuns. Tal como ela.

Clara suspirou por entre os lençóis de barra verde. Com a ponta dos dedos puxou-os para si. Tapou a boca. Os olhos orlados de macerado sobressaiam no rosto amarelado de doença, contudo a vida continuava a espreitar.

Recuperou-se. O AVC deixara-lhe lapsos. Lapso de memória, de espaço e até de paciência. Os lapsos de Clara. Lapso que, sub-repticiamente, aprendera a disfarçar com arte e estilo. Uma sobrevivente. Diziam-lhe, uma mulher com sorte!

Talvez sim, talvez não. Já depois, muito depois quando pensava no caso, Clara murmurava para si. “Talvez sim, talvez não”.

O mundo mudara. Ou fora antes ela que mudara? Os pequenos muitos nadas que tanta importância dava nos dias antes, agora ao remirá-los, causavam-lhe bocejos. Como as ninharias deixam de ter peso quando a vida esteve em jogo. Um lugar-comum, aliás um pensamento banal, mas não somos nós todos banais? Encolheu os ombros, era algo intrinsecamente seu, pertencia-lhe. Não, não era displicência, nem tão pouco um deixa andar, somente o seu trejeito, que dizia: “Já lá vai, mas voltará.” A inevitabilidade que sempre a coabitara. E fora com um encolher de ombros que também se relançara na luta de cada dia. Lá no seu íntimo, sabia que levaria a melhor, e assim de um mansinho exterior, mas com a força interior, atirou-se e conseguiu.

Clara venceu a batalha, agora a guerra? Isso, não sabia, mas o que importava, e depois quem o sabia? Certamente outras batalhas cairiam por perto ou mesmo em cima, a sua vida era feita de lutas. Na tela da sua vida os tons sempre se tinham misturado entre os muito fortes e os pastéis, deixando pequenas réstias de azul sonho.

E os pensamentos, quais gotículas de cacimbo, deslizam pelo vestíbulo da noite. Não se sente velha como o reflexo teima em apregoar. Aliás, a sua cabeça é um baloiço de agilidade onde o pensamento se entrecruza com a maturidade do raciocínio. Gosta dos seus cinquentas e sete anos e do amanhã de todos os dias.

Uma mulher sem história ou uma história de mulher? Abana ligeiramente o pescoço afastando as divagações que a visitam em cada segundo. Não quer divagar, apenas pensar. Tem que delinear objetivamente o seu trajeto. As horas deslizam velozmente.

……………………

Eram quase oito da noite quando o filho nasceu. Sentiu alívio. Moveu a cabeça para o lado e viu-o no berço. Viu-o de olhos oblíquos e papudos, cabelos quase alaranjados, de punhos cerrados e tão pequenino. Destapou-o e olhou-o como se visse tudo pela primeira vez. E era a primeira vez. Tocou levemente nas perninhas, no corpo. Percorreu o polegar pela linha do rostinho num toque infinito. Sentiu-lhe a macieza da carne e uma força que a fez parar. Ora, impressão sua. Retomou o toque e parou nas mãozinhas que teimavam em permanecer bem cerradas. Abriu-as e meticulosamente estendeu-lhe os dedinhos. Perfeitos. As unhas arranhavam. E naquela intimidade sem sons, ele suspirou. Era seu. Viera dela. A sua criação. Tapou-o. Pensou. Pensou na incerteza. Pensou em tudo. Sentiu-se dorida, mas feliz. Levantou-se e sorriu. A vida estava mesmo ali ao lado a desafiá-la. E ela aceitou o desafio.

Chamou-lhe Henrique, como o avô.

O tempo voou. Ele cresceu, ela amadureceu. Ele ficou homem, ela mais velha. O tempo sem tranca que varre a vida.

………………

Recorda os tempos de juventude. Enormes, quentes e cheios de promessas. Eram felizes na crença do amor, da ilusão, dos grandes cultos, dos enormes altruísmos, do derrear os dogmas sociais, na construção dos ideais. A sua geração fora assim. Ela fizera parte, tivera as suas lutazinhas, quebrara alguns tabus geracionais, sabe-se lá, à custa de muita lágrima, zanga e tantos outros dramazinhos familiares. A peça que fora cartaz no palco da sua geração chamava-se “Flower Power” e o seu mote era make love not war. Vivia-se entre duas grandes dicotomias, ontem como hoje, o campo e a cidade. A única diferença dos dias de hoje é que a pobreza era mesmo ruim, aviltante, redutora da condição humana. Pobreza material ao extremo nos mais desfavorecidos, na classe rural, ladeada de um pseudo certo bem-estar, um relativo bem-estar e ainda um efetivo bem-estar ou mesmo bem-estar de uma classe média bem instalada. Quem conhece a nossa realidade, sabe bem que a classe média bem instalada foi sempre a que, de uma maneira ou outra, governou o país ou se foi governando, de acordo com o degrau onde o pé era assente. A pobreza era terrível, não só a do campo capeada também da pobreza de pensamento, a par da vivida na cidade onde as pessoas pululavam na robótica do ganha-pão, onde a miséria dos dias se fazia, muitas vezes, de fome vestida de uma aparência arranjadinha e um olhar envergonhado. Lutava-se, não pelos ideais, antes sim pela sobrevivência do corpo. O desejo maior era ver os filhos estudarem, terem um ofício na mão, uma mais-valia de futuro, um casamento sólido sinónimo de porta-moedas remediado. Somente para os mais audazes, os mais inteligentes havia o curso na universidade, ser doutor ou engenheiro era uma ascensão social pratica corrente. No mundo ativo Todo este quadro originava muitos atavismos morais, uma tacanhez de conceitos baseados em padrões pseudomorais que conduziam a um conforto hipócrita de moralidade. Cabia à mulher o papel de sofredora, pese todas as diatribes, traições e outras quejanices que o marido achasse por bem fazer. Ela, ela segundo a tradição judaico-cristã, era o pilar do lar, o esteio moral da família. Claro, que este postulado passou durante gerações de mães para filhas tal como passava a peça do bragal. Esquecia-se que havia um ser humano debaixo de toda essa carga e que ele palpitava. Que ao negar-lhe a sua verdadeira existência se construíam seres insatisfeitos, incapazes de darem amor porque também o não recebiam. Alucinadas pelas leituras cor-de-rosa, não tendo a capacidade para discernir entre o real e o imaginário, desconhecendo muito da vida nua e crua no que respeitava aos verdadeiros desejos humanos. Partiam para as relações, diga-se casamento, mais nuas que a própria nudez. Sempre que o corpo falava mais do que o espírito, logo o sentimento de culpa aflorava. Uma geração de mulheres mestras na arte do disfarce. A culpabilidade e a insatisfação pariram brechas nas relações humanas. Gerações perdidas de si. Ontem como hoje, a sociedade portuguesa girava em torno dos seus extremos. E assim, do atavismo moral mergulhou-se no laxismo experimental. Na sociedade do século vinte um, a moral quase cedeu lugar ao prazer. “Eu desejo, eu quero, tenho que ser feliz, feliz, feliz…eu fui feliz no momento”. Assim num ápice, numa pressa sem delimitações. Tudo se passa num repente. O tempo de maturação, de análise, de construção, desapareceu. Não existe. Meramente um corre-corre de desejo, de posse, de saciedade e finalmente de tédio. Nesta reviravolta de conceitos, o caricato, é que ainda se continua à procura de querer ser feliz, apesar da pesada propaganda. Esconjuram-se os laivos de culpa, qual anátema de civilização primitiva. A bendita que tem ditado tantas e tantas felonias neste nosso século. A culpa, o legado nacional mais poderoso, porque a coitada tem morrido sempre solteira pese, o facto, de ter destruído relações, posições e tantas outras ações. 

Hoje, ao olhar para esses dias, um sorriso irónico tem que forçosamente mascarar-lhe os lábios. Tão ridículo! No entanto, na altura geraram-se conflitos familiares, zangas e humilhações. Depois veio o vinte e cinco e, rapidamente os costumes mudaram. Tomou-se como natural, o que até então era proibido. As massas ululam ao sabor do vento, melhor, as mentes mudam, tal como o vento sopra. E se sopra com força, então a mente parece um cata-vento. Neste caso, bendito cata-vento, diga-se. Houve muita mudança. Os cenários foram-se transmutando à medida que a peça se plasmava aos costumes. Neste entretém teatral, os rostos adquiriram rugas, o espírito aquietou-se e alguns bolsos aviltaram-se. O idealismo virou capitalismo, o amor comprou-se, vendeu-se e emporcalhou-se. E a geração dos ideais metamorfoseou-se em peralvilhos com sebosas contas bancárias Os charros passaram, praticamente, a ser um quase apanágio de uma pseudoelite intelectual que os usa diz, como fonte de inspiração. Uma geração que sonhava sempre que respirava. Respira, hoje, entrecortada entre a ambição dos cifrões e do bem colocado. Não somos senão pavões eternamente voltados para um jardim que já não existe. As penas já são tão toscas que até faz dó, pese o brilho da projeção.

Houve um desbragar de convenções, o caos, diziam os mais velhos, então. E nós ríamos, ríamos porque o sentir era impune, porque éramos jovens e heróis. Havia o cheiro tremendo de sexo, mas também o cheiro da vida. Era diferente. Era a libertação, a nudez da carne e da alma. O despir total, o arrebatamento de comungar o corpo, o vento e a terra. Os primeiros ecologistas não asséticos. Clara sorri abertamente. Tem orgulho de pertencer ao grupo das cotas. É tão maravilhoso ser-se cota quando se tem um mundo de cristais nas traves do espírito. Pertencer a uma geração de descoberta, de aquisições, de luta.

Hoje torna-se doloroso verificar que os Senhores do Mundo são, os que, então, foram seus parceiros de aventura naqueles anos dourados. Como o poder corrói. Tudo é bem pior que o ácido, porque é mais lento e persistente.

Levanta-se, alisa a saia, puxa a o cós do jersey, ajeita o cabelo e sente-se de novo jovem e atraente. Uma hippy repleta de alquimia do tempo.

Está mais segura. Não olha nem para a esquerda nem para a direita. As memórias povoam-lhe o ecrã da mente. A noite pisca-lhe matreira por entre uma meia-lua sentada por cima da janela da saleta.

…… ……………………………….

Clara olha-se no espelho do seu quarto de rapariga.

Gosta do que vê. O vestido comprido cor de champanhe, corte simples, todavia elegante. O saiote faz-lhe o redondo das ancas. O cabelo no seu brilho dourado suporta aquele véu de renda enorme. Na mão as suas eternas rosas amarelas.

Casa-se hoje. Um dia especial. Percorre-a um frenesim. Não é ansiedade, somente a antecipação do acontecimento.

Olha-se fixa e demoradamente no espelho oval, a imagem não reflecte os pensamentos. Interiormente sorri. E interroga-se: Afinal é este o dia tão especial, o dia que desde garotinha ouviu falar? Uma névoa breve tolda-lhe o olhar. Recompõe-se. Há que estar serena. Uma noiva quer-se nimbada de luz. Os eternos clichés da sociedade. Mas enfim, encolhe os ombros. Assim seja.

Debruça-se sobre a cómoda perscrutando a imagem no espelho oval. Aqueles momentos a sós são preciosos. Em breve terá que mergulhar na alegria do dia. Urge.

Deseja que termine. Sempre foi diferente. Sabe que mastigar os momentos não os faz perdurar no arco-íris do relógio. Depois, também sabe antecipadamente o que se passará. Sempre um pouco à frente do hoje. Clara apressada. Não, ela não é apressada, apenas o hoje, foi o ontem dela, o amanhã, é o seu hoje. Naquela divisão de tempo o seu corpo senta-se, porém, o espírito inquieto flui. Nunca ninguém a percebeu. Habituou-se a viver assim. E hoje, pese os seus anos ainda verdes, coabita lindamente com a dicotomia. Chamam-lhe insatisfeita, nervosa. Nada disso. No entanto, nem sequer perde tempo a explicar-se porque, sabe, não a compreenderiam, se calhar até diriam que tinha alguma pancada…não fora em vão que caíra de um escadote bem alto ainda pequeninita. Talvez fosse daí, que lhe adviera esse desassossego de tempo. Não era em vão que lhe diziam ser parecida ao pai…

Mas hoje era o seu dia. Clara casava-se. Apesar da liberdade que aqueles tempos continham, essa mesma liberdade acabava por exigir um invólucro. Há vinte e muitos anos casar-se era uma quase obrigação, pelo menos no meio de onde provinha. Meio arreigado de preconceitos e normas. Aquela necessidade do certinho que sempre a baralhou. A vida é um remoinho de folhas de muitos tamanhos e cores, pelo menos para ela.

Desse dia tem sobretudo a memória das pessoas, da condescendência, do barulho, da norma, dos rostos felizes como se todos se tivessem casado na mesma hora e com eles. Achava tudo um pouco excessivo. Aliás as festas são excessivas mesmo que contidas. Porem é nelas que o ser humano abre a torneira da satisfação. A necessidade grupal do divertimento sempre a espantou. Mas naquele dia, tão especial, Clara sorriu tão beatificamente que todos a acharam uma noiva feliz, tão feliz que até estava linda. Outro dos seus grandes problemas foi perceber como o valor das palavras se alteram de acordo com o estado de espírito do interlocutor, e sobretudo, se este for coletivo.

Clara cumpriu a sua parte com muita elegância e serenidade.

Manuel. Bem, Manuel estava irreconhecível. Elegantíssimo, todo a preceito no seu mais ínfimo detalhe. Também perfez o seu papel. Mais tarde quando já estavam longe daquele reboliço, ele dissera-lhe:” Pronto, já me sinto legal”.

Ainda hoje se interroga sobre o que ele quis dizer conhecendo-lhe todas as reticências que tinha em relação ao casamento religioso, a festas sociais. Ostentação, dizia.

Porém, naquele dia foi gloriosamente simpático. Disseram dele: “Uma jóia de rapaz!”

Um prenúncio de outros dias. Como o tempo se foi!

………………………

Permanece deitada no sofá a espreitar a noite. O livro continua a olhá-la. Prefere embrenhar-se nos seus pensamentos. Clara gosta desta intimidade que tem com as memórias, dão-lhe o conteúdo da vida. Hoje em que tudo passa numa corrida, empurrando tudo e todos, qual efeito de dominó em queda, hoje, em que parar, é sinónimo de desaparecer, hoje, é aquele tempo em que não mais se escutam as memórias, porque elas são feitas de nós vazios. Hoje, pensa Clara, erguendo o queixo acima da linha do horizonte, é o meu tempo de recordar. As suas memórias vestem o tempo. Ei-las ali mesmo defronte, sentadas, à espera de serem catalogadas no armário do pensamento.

Quando pensa em si, Clara, vê-se como alguém cujo caminho de vida tem sido difícil. Para lá das aparências, para lá daquilo que os outros gostam e são capazes de ver, tem existido uma pessoa complexa, por demais. Talvez a sua personalidade tenha sido forjada não em ferro derretido, mas sim, em pedaços de vida amassados. Vivera e tivera a noção exata do desfasamento emocional da vida dos pais. Analisara, desde relativamente cedo o que era a felicidade conjugal em desencontro. Vivera as cenas teatrais de desfalecimentos, choros, acusações e mutismos, Tivera que subsistir animicamente, crescer, diriam, no meio de muitas incongruências. Este passado não foi uma mais valência para ela, pelo contrário, foi algo que a tornou incrédula, fria e dorida. O pior defeito de Clara é não acreditar. Pura e simplesmente não crê. Não é má pessoa, no entanto para quem não a conhece, deixa sempre a ideia de altivez ou muita simpatia. Tudo isso depende do meio em que se encontra. Para os mais simples, para quem a vida é um simples corolário de sucessão de dias sem inquietações metafísicas, oh Dona Clara é tão boazinha, tão simpática, faladora, dada e de uma simplicidade e veja-se, vê-se que tem muita educação. Para os outros, aqueles mesmos que coabitam o seu meio, aos pseudointelectuais, aos alpinistas sociais e aos nouveaux riche não passa de uma criatura intragável com a mania que sabe tudo, e com a aspereza de dizer as coisas na cara, pois que pensa ser a sua verdade. Uma coitada.

O pior defeito de Clara é a sua intolerância com a ignorância. Não concebe que no seu meio, as pessoas digam disparates sobre coisas de senso comum, apenas por desconhecimento, apenas porque são incapazes de recolherem um pouco de informação, antes de debitarem, publicamente, um molhe de anedotas e ainda por cima, convictas na sua santa ignorância. Outra das coisas que lhe põe os nervos em franja é ouvir as pessoas repetirem o que outras disseram, apropriando-se dos conceitos ou simplesmente de frases banais. O ser humano é terrível, vive em atos junto a um palco que na maioria das vezes nem sequer é o seu, e outras ainda é o ator de uma peça para o qual não foi convidado. Comédias em dramas e dramas que nem a sátiras chegam.

Clara viveu uma infância e juventude processada entre dois seres muito diferentes que coabitaram o mesmo teto. Tão diferentes eram que nunca se conseguiram misturar. Água e azeite. Assim os define. Dessa não mistura resultaram quatro filhos. Ela, a mais velha, outra rapariga, um rapaz e mais uma rapariga. A diferença de idade dita-lhes as divergências não só físicas, mas sobretudo de caráter.

 

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