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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

04 junho, 2022

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O Caracol de sapatos de camurça.

Sendo um animal solitário percorre os dias numa tarefa sincopada e objetiva. Recolhe-se na sua casca e com ela parte para os lugares onde pode encontrar alimento. O caracol porque é um molusco terrestre tem nas costas a sua concha, a qual carrega  diligentemente ao longo da vida, não fosse ela o seu esqueleto 

Pois bem, há quem ao longo da vida, de igual forma, carregue, não tão diligentemente, mas por contingência, não a sua casa, mas as suas malas. Caracóis denominados professores.

As malas são a sua casa, o caminho é feito de percursos vários, todos aqueles que lhe possam facultar o pão nosso de cada dia   e ainda apregoam aos quatro ventos que ensinar, é uma paixão. Bons caracóis sincopados ou antes, professores crédulos, apaixonados e traídos.

José é professor, tem trinta e seis anos. Possui aquele ar tão peculiar dos homens, um misto de independência dependente. Aparentemente sabe bem o seu caminho, porém transversa aqui e ali. Recompõe-se rapidamente e sem muita complicação, continua.

José casou-se há relativamente pouco tempo. Coisa de dois anos. Não tem filhos porque a situação instável ainda não o permite, Laura, a mulher, também não está para aí voltada, tem que palmilhar na profissão, tal como ele. Não é professora, trabalha num laboratório.

Em dois anos de idas e vindas numa distância razoável, a relação sorriu sempre, no limbo do encantamento mútuo. Este ano, porém ,José foi mandado para mais longe. Uma mala, um quartinho, duas refeições diárias, mais umas imposturices e um comboio semanal.

José não está infeliz, feliz também não, amoldurou-se. A mala, a sua casa, leva-o no comboio de volta e regresso. E isso quase lhe basta. A inquietação não faz parte do seu código genético. Filosoficamente a felicidade veste-lhe a filigrana da mente como o seu belo par de sapatos de camurça lhe calça elegantemente os pés que passeia nos seu calcorrear de professor e impõem-se na descida do degrau do comboio. Um cartão, não de visitas, mas de presença.

Hoje é sexta. Mais uma semana que se fecha entre o debitar de conteúdos, o exercício da compreensão, o esgotar da explicação, a aplicação da pedagogia, a síntese do conhecimento e a avaliação das capacidades. O trabalho semanal que nidifica o ensino. Entre o tempo gasto na construção do saber e a imagem, qual reflexo do seu desempenho humano, há lugar a um o espaço tão pequeno onde não cabe o perpassar da inquietação.. Mas afinal, não nos sentamos no decúbito do descanso após o ímpeto da conquista? assim não é de estranhar a complacência quase intermitente do professor.

José possui as imagens e não as inquietações. Revê, a companheira sorridente de olhar alvoraçado e anseia pela viagem de volta. O espaço perdido dos seus dias sacia-se na garganta húmida, no olhar terno , no sorriso fresco e nos braços quentes da sua Laura. Não existem peças caídas, quiçá perdidas de um tempo que foi ontem, somente as imagens, meras memórias. Um tempo esgotado e que crê continuado. Crédulo,

Ah, o tempo tem horas cheias e outras vazias. Tem os ângulos próprios da geometria de cada dia, José descuidou-se na classificação do ângulo da sua vida. Nada é imutável e os ângulos nascem, crescem e apagam-se na sua forma de acordo com as divisões que a circunferência da vida toma.

Longe, na distância da viagem de um comboio, Laura cansa-se da solidão. Recorda com algum enternecimento a biqueira dos sapatos. Sim, o estremeço que lhe dava até há bem pouco quando via aquela biqueira de camurça romper no vazio do degrau do comboio. Hoje, deseja que a biqueira, os sapatos e o dono fiquem longe, onde estão.

As reações nos seus tubos de ensaio são mais precisas, temporais e falíveis. Não existem hiatos. O hiato mata. O hiato não é companheiro do entusiasmo, porém quando o último soluça começa-se a morrer. Laura sabe que o estremecimento se calou.

Como sucedeu?

Não sabe quando a rotina da solidão a fez perder a noção de encantamento. Respirar sem viver foi coisa que lhe revolveu-as entranhas numa agonia de meses e, a facilidade como partiu para novos desafios, encontros e companhias, fá-la rodopiar numa espiral de contentamento. Foi sentir o estremeço do   riso e do alagamento que a cordou para este presente. Não espera pelo comboio e muito menos pelos sapatos de camurça que um dito José, antes mote da sua vida, hoje pretérito imperfeito dos seus dias, cheguem.

E ele?

Inexorável na sua paixão passiva de pedagogo viu a sua vida perder o lastro do estável, para ser mais um entre tantos mil, sem rumo afetivo. Um homem desvaria nos primeiros dias, mergulha nos subsequentes e vem à tona nos outros que chegam. Assim foi.

O ensino absorveu-o mais do que nunca, a solidão que de início o enrolou, no seu fato já gasto de tempo e hábito, essa solidão, que para o mais incauto é sinal de maturidade, despojo e até placidez, tornou-se a sua insegurança insatisfeita. José é um tipo como muitos outros, um inseguro escondido na sua casca de caracol, tornando-a o seu habitat, aí dormitando, nela congeminando e dela saindo para as contracenas que o palco lhe estende. Mais um outro personagem no teatro dos sentires.

E o José-caracol-professor vai deslizar lenta inexoravelmente por entre as escolas, essas as musas da sua paixão, ao mesmo tempo que os sapatos de camurça castanha ficam velhos e  a sua bela casca fica dura até, num dia qualquer ficar vazia…

Chaves, 3 de junho 2022

Maria Teresa Soares

 

25 maio, 2022

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 .As coisas dos dias …
 Há dias que são cinzentos. Há dias que são pesados. Não pelo tempo, mas pelas coisas. São as coisas que vêm, ficam e caem. E os dias afundam
 Há dias pesados. Aqueles que acordam com sol, crescem ventosos, entardecem cinzentos e adormecem húmidos. São os dias da vida.
 Há gentes como os dias. Nascem cinzentos, porém abrem os olhos ao sol, fechando-os de imediato porque a luz desventra-os, permanecendo na letargia das horas pela vida fora. Gente cinzenta, gente pesada, gente dos tempos. Depois os dias cinzentos de gente cinzenta, quais sonâmbulos giram na lentidão dos anos, com meios sorrisos aqui e ali num deslizar de tempo sem alma. Percorrem caminhos sem olhar em redor numa inércia metabólica orlada solavancos e quando chegam, se chegam ao sítio, olham num misto de cansaço e desdém e acomodam-se. Gente cinzenta … 
Há outra gente, leve e móvel que desliza nos dias claros, que sorri e sabe caminhar, que calcorreia os caminhos em passos seguros, em passos de busca
 A natureza das coisas porque é caprichosa tem por devaneio estender atritos que fazem a gente de luz tropeçar, cair, esfolar-se, levantar-se e continuar. Nada lhes é fácil. Nasceram em dias claros, os dias quentes da razão e do porvir. Gente de sorrisos.
 Há dias de chuva. Miúda e semítica. Gotas por ser. Há gente como os dias. Gente pequena do tamanho do nada com a altura do ser. Passam e perpassam entre as gotas semíticas. Alimentam-se delas. Hidratam-se. Húmidos e semíticos partem para a vida. Vivem na humidade do receber e secos no dar, aconchegando-se no bolor húmido de ter. São gotas.
 Há dias de vento soprado, forte, arrepanhado e zangado. Há ventos que quebram, há ventos que fustigam, que marcam que enrolam e varrem. Há dias assim. Assim há gente. 
Gente do vento. Gente impetuosa, agreste, forte. Gente que assobia, ulula e depois serena. Gente apressada qual porta sem tranca que bate de supetão para depois deslizar de mansinho e quedar-se. Gente em azáfama de horas para não se se perder na espiral do tempo. Gente em contraponto.
Há dias falsos. Aqueles que pespontam com luz e se cobrem de sombras numa máscara desbotada de Carnaval cansado. Há gente de máscaras. Tapam os rostos disfarçam-se de arlequins, palhaços, damas, cavaleiros e animais do mundo 
Há dias de tudo, dias num rodopio de faz-de-conta. Passa o tempo, passa o engano, passa o riso de época e a máscara cai. Ah, mas há sempre uma em cada tempo do ano! 
Há dias felizes, dias da terra, dias da gente. Dias em que é natural sonhar, rir e crescer. Há tempos de amanhã com horas de presente. Há gente de presente com alma de amanhã e há amanhã sem presente. A gente faz, a gente desfaz. Há dias de tudo. Dias de agora e dias que vão ser. Há gente que vai ser e de agora. 
Há coisas que são dos dias, há dias que são da gente. Gente dos dias e dias que faz gente. São tão simplesmente as coisas dos dias. 
Chaves 25-05-2022
Maria Teresa Soares


09 março, 2022

Às mulheres ucranianas

. Corre serena na rua vazia de gente e troada de projeteis. Suspira na esquina do fumo entre golfadas de alento. Semicerra os dentes na força do não querer partir e na razão do despedir. No braço leva um saco, nas costas a mochila vazia de tudo, mas cheia de necessidades. Na outra mão, a mão quente, entrelaça os dedos numa mão redonda da criança. É Natalya. É ucraniana. É mulher. Março, oito, 2022. Diz-se Dia Internacional da Mulher, diz-se dia de Direitos. Diz-se dia de Amor. Diz-se… São passos rápidos, fortes e fustigados que a conduzem. São ventos soprados de este que chegam embriagados em vómitos de fogo e raiva. São espasmos bélicos de louco. São labaredas que varram a pele e derretam a alma de um povo. Mas Natalya continua… Tem na mão o futuro, pequeno e macio, trôpego de força, lesto de Amor, cordão umbilical da família. Andriy… Natalya e Andriy sozinhos no gelo defecado de fogo sob um céu cinzento agoniado de dor, caminham… Longe, muito longe estão as mãos que aconchegam, que embalam, que perpassam na alma ferida e suturam, que olham nos olhos partidos de lágrimas e sorriem de esperança. Lá é o lugar. Há que chegar. Há que andar. Há que deixar o caos, a dor, o ódio, a ganância e a loucura. Natalya é mulher, possui a força da árvore, a leveza do ar e a força do caudal. Tem na alma a mater do mundo, e na vontade o sacrifício dos milénios. Caminha nos passos da fuga, caminha porque a vida de mulher é feita de caminhar. Hoje, é o dia, o dia de todas as Natalyas! Coragem! 8 de março 2022

05 dezembro, 2021



O tempo....
Tenho ouvido, nestes últimos tempos, falar muito de tempo, de bolha de tempo, do que foi e já não volta, do tempo perdido, enfim do passado.
O passado é aquele muro a que subimos, onde nos sentamos e que depois descemos ora titubeando, ora graciosamente ou ainda de supetão. Assim, não se me afigura tão memorável, saudosa ou ainda percetível tantos suspiros de memória, pois que não sendo mais do que o caminho dos nossos dias torna-se o resultado dos nossos passos. Há quem se lave de memória e na memória, quem se vista dela e há aqueloutros que se adornam da mesma. Gostos.
Não acredito em bolhas. Só as de espuma cuja duração é de átimos de segundo. Não acredito no passado revivido ou por viver. Tudo tem o seu peso e a sua conta nesta vida. O que foi, foi, o que era, era, os tempos verbais atestam o concreto.
Bolhas de tempo? Metáfora ou sinestesia? Comparação ou sensação? Na verdade …
Agostinho rijo de tempo e vida nos seus setenta anos ainda abre as portas da sua loja. Lê-se nos vidros pintados em tons de outono” Tino Gourmet”. Quem entra depara-se com prateleiras onde se alinham meticulosamente boiões vestidos de cores quentes da vida que fazem crescer a saliva. E o cheiro? Ui, o cheiro é esfomeante. De um lado, cestas de vime velho repletas de frutas e do outro um balcão de ar sério onde espreita o pão.
O “Gourmet do Tino” é moderno na sua conceção e velho nos seus sabores e odores.
Agostinho Roxo, nascido e criado na velha Lisboa dos anos vinte, viu mais mudanças na sua vida que de peúgas mudou até agora. Senão vejamos: apanhou com o rescaldo da IGM, a gripe espanhola, a IIGM, a Guerra Fria, a Guerra colonial, e outras pelo mundo fora, o explodir dos interesses do médio oriente, as guerras civis, as crises monetárias, as financeiras, as mudanças concetuais da diferença fosse de etnia, género e outras, tanta, tanta coisa, que o pobre homem muitas das vezes é a olhar para a imutabilidade dos seus frascos que consegue apanhar o fio à meada aos dias. Contudo, nunca foi homem de bolhas de tempo, rompeu-as sempre e foi à luta.
Da velha mercearia de bairro, por sinal bem situada, transformou-a numa loja gourmet de acordo com os novos preceitos de mercado. Ouviu falar na Web Summit e pôs-se a caminho, apesar do preço do bilhete não ser para gente pobre. Mas lá foi. Ouviu, ouviu, percebeu pouco de início. Uma linguagem truncada, onde os mais jovens debitavam projetos à velocidade do trânsito lisboeta em sexta-feira à tarde. O pobre Agostinho saiu tonto. Foi para casa e meditou, pesou, telefonou ao filho, à neta e ao contabilista , concluindo que tinha que mudar o rumo do negócio, senão estava acabado.
Se bem o pensou, melhor o fez. Depois meteu mãos à obra.
Fez a sua candidatura pedindo o empréstimo a fundo perdido de acordo com os novos cânones, subordinando-se ao subtítulo em questão de dinamização empresarial. Um projeto cheio de papelada, para” Endogeneizar dinâmicas de inovação proativa em articulação com o mercado, geradora de novos produtos e serviços”.
O funcionário abriu os olhos da monotonia habitual e bom do Agostinho continuou o seu discurso: pretendia
reforçar a sua responsabilidade individual de empresário enquanto agente socialmente responsável pela criação de riqueza; tornando-se um empreendedor ativo e consciente do seu papel positivo na organização, desejava, por outro lado, fazer da "empresa" um espaço permanente de procura da criatividade e do valor transacionável nos mercados internacionais consolidando uma cultura de cooperação ativa entre empresas pequena se grandes, nacionais e hipoteticamente internacionais
O discurso estava bem decorado.
Pois entre papeis, arranques, demoras, desesperos e aceitação, chegou, enfim, o dia em que o empréstimo lhe foi concedido.
Imediatamente as obras na loja começaram. Arrastaram-se mais do que o previsto, mas também é quase bíblia no cantinho em vivemos. Daí somente um pequeno desespero.
Os meses voaram. Finalmente chegou o dia em que o “Gourmet do Tino” abriu portas.
De início os clientes espreitavam receosos, não da qualidade, mas da quantidade de euros. As bolsas da nossa casa são, invariavelmente, modestas. Perante uma clientela arredia, Agostinho começou a ver os seus dias enovoados, cinzentões , a pavimentarem o caminho de mais uma malfadada crise.
Na verdade, o que lhe importava era fazer negócio, fosse ele gourmet ou prosaico. A caixa registadora não tilintava como lhe fora impingido pelas jovens mentes, nemo negócio nada tinha a ver com os gráficos projetados.
Havia um vazio entre o prometido e o vivido. Algo não batia certo. Havia que mudar o estilo, sem mudar o rumo, pois que estava financeiramente atolado.
Não dormia o bom do nosso amigo. A enrascada era demasiado grande e a idade não lhe permitia grande descanso. Conversou com a sua Rita, companheira de muitos altos e baixos nos quase cinquenta anos que levavam juntos. A perceção feminina pura e simples, nua de conceitos e calçada de experiência sugeriu-lhe que mantivesse tudo por fora igual, mas que fizesse uma espécie de promoção semanal dos legumes mais antigos e das outras coisas mais baratas que não tinham tido muita saída ao longo da semana. Assim não só escoavam os bens perecíveis , seriam um chamariz e arrecadariam algum dinheirito.
-Sabes Tino, a gente do nosso bairro, os nossos, ainda não se importam se as coisas vieram ontem da horta ou não, o que eles querem é ter comida para encher a barriga, comer muitos legumes, alguma fruta tal como nos impingem agora, comer saudável como é modo e dizem fazer bem à saúde. Tudo isso desde que não seja caro. O caro, é que é o Diabo, por isso é que desconfiam e arredam.
É verdade, Rita. Mas não posso fazê-lo assim como antigamente. Tenho que lhe dar um ar, tudo tem que ter um Ar novo. É quase lei.
-Ó Agostinho. Há tantas caixas que vêm por aí, é só começar a forrá-las de folhas dando-lhe um ar de cabazes bonitos e saudáveis, com um preço apetecível e ao fim de , digamos , seis cabazes têm direito a um miminho, uma compota, um docinho qualquer e vais ver… claro que nunca te esqueças de ser simpático, muito simpático, ser quase feliz. O cliente espera isso de nós.
-És capaz de ter alguma razão. Não há como experimentar.
Passei no sábado por aquela loja de bairro de nome sonante e não era que estava cheia. Na porta, uma mãe dava a mão à filha e na outra carregava uma bela caixa de legumes que quase parecia uma floreira.
As bolhas do tempo também se abrem …
Chaves out.2021
Maria Teresa Soares
Manuela Lopes, Orinda Caetano e 16 outras pessoas
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02 agosto, 2021

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A semente e o silencio e a soidão

 

Sofia, a semente, caiu enrolada no chão. Recolheu-se na escuridão escura e húmida da terra abrigo. Queda, respirou, aspirou e alimentou-se. Germinou. Lenta e metodicamente lançou -se em busca da luz. Quando espreitou, achou-a.

Sofia, a semente, estava no mundo, mas estava só. A solidão abraçava-a.

Sofia ganhou força, expandiu a sua vontade, tornou o caule mais ereto ainda, alargou e multiplicou as folhas e cresceu. Pã, a solidão vagueou intermitente em seu redor na exata medida dos dias do calendário a primeira vintena do novo milénio. Vagueando entre muros vazios e luzes apagadas, Pã entrelaçou-se com o silêncio, com Lala.

Sofias a semente, Lala o silêncio e Pã a solidão. Três nomes, três sentires, um hiato do mundo.

Porém a semente germinada tornou-se planta, de planta em arbusto e finalmente árvore. Floriu qual jacarandá tardio, mas floriu. Floriu a esperança e coragem de um amanhã. Sofia fez-se grande

E Sofia saltou para o tempo.

Um tempo de vazios, de contrições, de medos, de distanciamento, um tempo sem alma. O tempo que nos rodeia.

Sofia a árvore de ramos brilhantes e folhas verdes. Sofia a semente, arbusto, arvore, a esperança. A semente da esperança. A esperança que corre nas veias de outras sementes germinadas, redondas, quadradas, esguias, fortes, fracas, voláteis e duradouras. As sementes humanas que tremem, que adormecem sob  as franjas de Pã e lutam contra Lala. Lala é a bruxa que engole os sentires, Pã a força que quebra o porvir.  Três lutas. Três hiatos, três esgares.

Amanhã, talvez, as sementes do mundo voltem a viver.

Amanhã será de novo madrugada.

Chaves, 2 de agosto de 2021

Maria Teresa Soares

 

18 maio, 2021

 Admirável Mundo Velho
2021 parece desembocar na era do inverosímil. Nada que não fosse expectável, claro que o era.
O Covid -19 teve destas coisas, fez esquecer as maleitas de carácter para se focar exclusivamente nas doenças do corpo do nosso cantinho, da Europa e do Mundo., pois que, por ora ainda somos todos cidadãos desta aldeia global. Pasmamos com a pandemia no Brasil, com a virulência que explode na Índia, com as mutações sul-africanas, com a celeridade de inoculação nos States, com o controlo quase, quase, conseguido em terras de Sua Majestade, (pena que a variante indiana esteja a fazer das suas), ficamos felizes, e muito bem com as descidas do RT, com a vacinação, com o de confinamento e a aceleração da economia, e mais do que tudo isso, com a nossa intrínseca liberdade. Podermos circular, podermos ir de Aa B e de B a A, algo que embora pequenino é muito nosso e ao qual apelidamos de Ser Livre. Pois então, somos de novo livres. Com condicionantes, com cuidados, com panaceias, mas somos. Este pequeno grande item já está solucionado.
Contudo, no meio de tantos problemas de saúde publica, sociais, económico-financeiros (ainda estão para eclodir, segundo dizem os experts), que parecem grassar de forma atribulada por esta aldeia global, existe numa tal aldeia, por sinal muito bonita, geoestrategicamente situada algures num cantinho da Europa e, segundo o seu poeta maior, à beira-mar plantada, que como é pequena em território, acaba sempre por meter-se em grandes sarilhos. Servindo-me do conceito de Principles of Population de Malthus, diria que arranjamos sarilhos em proporção geométrica enquanto solucionamos problemas em proporção aritmética, o que de acordo com a teoria implica um deficit de estabilidade constante.
É, pois, esta instabilidade que grassa no nosso quadrante seja do foro judicial, seja financeiro, seja económico, seja social, cultural e até humano, que desatina, desalenta e irrita o nosso Zé Povinho tão fustigado por decisões e falcatruas cujos epílogos acabam sempre por ser redondos para quem as executou e quadradas para os outros, que as têm que pagar. Na verdade, quer-me a mim parecer que o Estado não produz riqueza que não seja a que lhe advém dos impostos ou dos subsídios sine die que a comunidade vai adiantando, ( não foi em vão que aderimos às dez regras do Consenso de Washington e tendo em conta que seremos perenemente uma economia em desenvolvimento, cá vamos usufruindo das verbas do FMI e do Banco Mundial), porque assumimos a nossa economia como de  neoliberal o Estado não é detentor de empresas de transporte, de correios, de águas, de eletricidade, e demais bens.  Assim seja se for por bem.
Todavia, o por bem desta nossa pequenina aldeia parece não funcionar. Não será culpa dos governos e respetivas ideologias políticas, as quais parecem não navegar, mas antes soçobrar no mar da tempestade do nosso cantinho. Se ainda copiássemos o da Tranquilidade lunar, talvez, embora lunáticos, avançássemos. Há uma degeneração genética de carater que dá pelo nome de corrupção. É essa corrupção que perpassa lasciva entre os cidadãos, tornando uns quantos passivos, outros indiferentes, outros encolhidos e outros ainda revoltados. A revolta nasce da injustiça, ou antes, a justiça deveria prevenir a revolta. pois ela obstrui que a falta de justiça que está na base da sociedade, seja conhecida por todos. Vejamos então, se a justiça é aquela que previne a revolta, as leis do Estado, visando a justiça, são estabelecidas pela força, será incongruente que o povo obedeça às leis e respeite os dominantes em virtude de uma imposição arbitrária da força. É nessa força que se esconde, a ignominia da impunidade que alguns cidadãos nacionais usufruem, pese sofrerem de degeneração vinculativa de carater. Não vale a pena mencionar nomes, até porque seria deselegante e, por outro lado, os mesmos estão frescos na memória de cada um de nós, não pelo bem que fizeram, mas antes pela caterva de venalidades que alegadamente cometerem
Não foi por bem, não foi bem.
A vida é feita de episódios. Muitos. Tantos, que muitos são esquecidos. Ficam na memória da gente. Os bons, vá lá saber a razão, desvanecem-se no tempo ao ritmo do apaziguamento da serotonina, os menos bons corroem dando azo a um mal-estar generalizado, o qual passa pela vulgarização da descrença seguida da maledicência irónica quiçá vingativa. Porém, se o dichote, a ironia, a sátira são elementos constituintes da verborreia lusa, já o alheamento, o descrédito, o afastamento generalizado dos das mesas de voto, da participação  em atos públicos, o ser opinativo de modo construtivo, fazer saber e mostrar de acordo com o  consignado em lei  sobre o que vi mal neste cantinho, parece não  merecer aquiescência dos Tugas que,invariavelmente, delegam nas mãos nem sempre impolutas ou hábeis dos políticos.  Depois do aligeirar das responsabilidades, culpabilizam-se os atos daqueloutros cujo mister seria gerir a coisa publica e parece que, ao invés, progadilizam em bolsos vá-se lá saber de quem. Alvitram-se hipóteses, porém, o certo é que de acordo com as sentenças judiciais, dessas hipotéticas conjeturas saem-se quase sempre impolutos como se fossem puras virgens platónicas. E o povo arrelia-se, torna-se incrédulo, encolhe os ombros e vai à sua vidinha.
Não é por mal. É por hábito.
É verdade que a democracia foi corrompida. Sabemos que quando os indivíduos deixaram de “decidir” algures entre a retoma burguesa dos séculos anteriores e o assenhoreamento da classe política no que respeita ao bem comum, ai cessou o conceito de regime politico em que todos os cidadãos elegíveis participavam de forma igual seja direta , seja indiretamente através dos seus legítimos porque eleitos representantes. Hoje a coisa não é bem assim. A distorção consolidou-se entre políticas, banqueiros, empresas e ideologias. Uma alquimia de não símbolos químicos incapazes de gerar o “ouro” do bem-estar social, originando a refração do nosso caleidoscópio racional em dúvidas, negações e equívocos. O sistema padece de doença, uma verdade anquilosante que petrifica a capacidade humana dos governantes, tornando-os, muitas das vezes, reféns de decisões, interesses, análises e inclusive, pasme-se, de boas vontades.  Governar é difícil, muito difícil, extremamente difícil, sobretudo num mundo em constante transmutação, em busca de si mesmo, esgotado em si, cujo único crédito e descrédito em simultâneo é o de ser gerido pelo ser humano. Creditamos políticas, atos, ideias, gestos e sentimentos., mas igualmente usamos o descrédito com ações, conceções, produções, rendas, consumos e acumulações de capital em atos económicos de limpeza duvidosa a tresandar a vicio. São estes óbices as forças centrifugas e centrípetas que transformam os indivíduos em meras espirais de movimento. A nossa inarrável capacidade humana de sofrimento perpetua-nos tanto na queda como na ascensão, porque somos mais do que carne e osso e menos do que pura energia. Ficamos, talvez, no meio caminho, na busca do amanhã, vivendo o presente, com a memória do passado e piscando ao futuro como quem não a quer a coisa.
Assim fomos, assim somos.
Vivem-se tempos de lavagem. Lavam-se os conceitos, o passado, a vontade, o dinheiro, o sentir. Há no ar um desejo de pulcritude antagónico aos atos, um disfarce veneziano fora de época. A história faz-se do bom e do mau, não se reinventa, não se destrói, não se manipula. É fixa no seu passado mau e bom, por isso é história. No entanto, talvez devido à letargia mecânica provocada pelo Covid-19, deu-se inicio a uma verborreia de ideias, as quais necessitando de seriação, irromperam descontroladas pelas urbes desta nossa aldeia global, crispando à sua passagem a historia do mundo que, não é senão a do Ser Humano.
Porque então pretender que este espécime de vinte e um seculos belicista, belicoso, rude, dominador, mas também criativo, conciliador, sonhador, numa palavra humano seja réu da sua própria história? A história dos pequenos e dos grandes, dos bons e dos maus é que nos permitiu estar aqui e agora sentados num mundo que queremos que seja melhor, que, no entanto, ainda continua firme nas suas incongruências e desleixos para com o próximo.           A máxima errare humanum est assenta-nos como uma belíssima luva. Assim tem sido no desenrolar dos séculos: de erro em erro construiu-se o que prosaicamente achamos bem, construímos destruindo ali, erguendo aqui, aplainando acolá, até chegarmos ao edifício final de hoje. O mundo, o admirável velho mundo , qual feixe assimétrico foi a base deste que dizemos de forma quase garota ( o mundo ainda cresce) ser um admirável Mundo Reinventado  
Se assim for, que seja por bem.
Chaves,18 maio 2021
Maria Teresa Soares.

09 março, 2021

A Todas as Mulheres
Duas mãos. Mãos em laço, mãos esguias, flutuantes, macias. Mãos.
Redondas, firmes, ásperas suaves, mãos de vida.
Tamborilantes, deslizantes, acariciadoras, persistentes, mãos de fêmea.
Discursivas, ágeis e modulares, mãos que procuram, que lutam pela verdade e pelo saber; .
E as mãos do mundo, as mãos que embalam, que acariciam, que lavam, que passam, que enxugam. Mãos vivas criam e recriam, que vivificam milagres. 
Mãos de mãe.
 Mãos belas, mãos de amor, mãos de riso, dor, mãos de mulher.
E as mãos sobem os degraus da vida, descem as encostas da dor, erguem-se no pináculo de cada dia, deitam-se em cada estrela da madrugada.
As mãos   são os mais belos instrumentos da geografia mulher. Aquele mapa intersetado não de rios, mas de afluentes de dádiva e renuncia, com colinas de amor e sonho, com bosques latejantes de força onde o solo fecundo se torna o útero do mundo. 
Mulher é mapa físico, político. Mulher é a mão de todos nós. É nas mãos, esguias, macias, fortes e redondas, discursivas, modulares, nas gretadas crivadas de ais, nas etéreas de risos, nas deslizantes de fêmea que o mundo chora, grita, gira e se ergue. 
Cada laço de mãos beija o amanhã, seja em esperança, seja em tremor, beija-o com AMOR de MULHER: 
Chaves 7 de março 2021