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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

13 fevereiro, 2008

Pequeno Nada



"Conhecer alguém aqui e ali que pensa e sente como nós, e que embora distante, está perto em espírito, eis o que faz da Terra um jardim habitado."

(Goethe)

A Gi de Os meus Pequenos Nadas ,uma vez mais, foi generosa ,e lembrou-se deste espaço. Agradeço-lhe e ,simultanemanete peço-lhe desculpa pelo hiato de tempo. As razões são-lhe conhecidas.
E porque este convívio de ideias é-me grato, e porque o espírito que creio a todos nortear é de fraternidade, para todos que visito,aqui deixo este
Pequeno Nada.

12 fevereiro, 2008



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Tempos

As cãs abrem-se numa cabeça vestida de cinzento raiada aqui, e ali, de uns fios pretos esparsos, mais abaixo, um chignon perfeito senta-se no alto de uma nuca altiva, suportada por um pescoço esguio e erecto. Os ombros rectos de postura sustêm um corpo já cinzento de vida, tal como os cabelos. No rosto de sulcos finos, e de lábios já vazios, brilham coruscantes uns olhos tão cheios de fulgor que parecem emprestados ao conjunto. Negros e líquidos perscrutam o redor. Pululam de centelhas que iluminam o rosto despido de cor dos anos. Os cílios abundam sombreando ainda mais a pele. Uma mancha, delineada, de cor húmida, preenche a boca, e os zigomas vestem-se de um tom levemente rosado. Está sentada na sua cadeira de braços. Chama-se Camila. Maria Camila D’Andrade e veste-se de setenta e muitos anos.

Sorri apenas nas comissuras dos lábios enquanto a agulha de croché faz a sua dança de abertos, fechados e cruzados. Alisa a peça. Os dedos são esguios, enrugados, já deformados e trémulos. Mãos gastas de tempo e de desejos. Meneia a cabeça no pensamento que a inunda, suspira encolhendo em trejeito os ombros. Ouve um ruído e instintivamente retoma a pose. De novo o trejeito facial, qual máscara afivelada, cola-se de imediato. Viúva de longa data, mãe de seis filhos esparsos por este mundo, sogra de uns tantos, avó de mais e bisavó de uns poucos, Camila endura a solidão da idade no recôndito de uma cadeira, e na pose de uma velha senhora.

Camila é célere na resposta, cáustica na palavra, dura na opinião e soberba na apreciação. Nada a prende a um mundo que não é seu. Não fora a vida que teima em inundar-lhe as veias, não fora a sua força de ser, não fora a raiva que a sustenta, não fora a amargura da quase dependência, talvez já tivesse partido. Mas não, sempre firme, erecta, alinhada e senhora de si. Sorri de novo, um quase esgar de desprezo pelos dias de hoje. Tudo se esvaiu como se fora um simples baralho de cartas. O seu mundo apagara-se tal como a onda na areia desfaz os castelos dos meninos. Assim de breve. Nada resta senão as memórias de um tempo já em sépia.

Descai suavemente a pose, o rosto frio ganha calor, os lábios sorriem. O seu drama, a sua mentira, o seu opróbrio. Aparentar o que não sente. Fora treinada para isso. Assumira o papel.

Nada e criada num mundo de valores já extintos, de deveres servidos, de padrões convencionados, de normas aceites e verdades insofismáveis, Camila geriu tudo isto de forma fúlgida permitindo-se a um certo cintilar intelectual capeado pela sua graça, e elegância natural, o que a tornou numa referência no seu meio. Casou cedo. Camila frequentou as grandes salas da cultura do mundo, foi vestida pelos grandes mestres do dedal, degustou manjares, bebeu néctares, tudo isto entre seis maternidades. Sempre radiosa, sorridente e objectiva. Uma vida cheia, não de vazio mas antes de alter-ego. Inexoráveis, os tempos trouxeram o vento. O vento que varria o embondeiro do jardim de sua casa. As folhas giravam pelo chão, levadas em dança rodopiante tal como sopraram nas voltas da sua vida. E o vento veio, e partiu, levando na sua espiral revolta, a sua vida, e mais alguma coisa de si. Foi assim um voo desnorteado, soprado e cinzento. Quando pairou, algures, numa terra que mal conhecia, pisou terra firme, e se sentou á espera de outros dias, tinha já dentro de si, aquele desdém que lhe amargurava os sentidos, aquele veneno que lhe latia as veias e se soltava em palavras ditas acres. E o vento continuou sibilando em seu redor roubando-lhe as suas gentes. Eram turbilhões que a desancavam, que a faziam tremer, que a violavam roubando-lhe a sua carne, porém no retrato do quotidiano surgia lívida todavia altiva. Diziam dela, ser uma pessoa intragável, dura e inquebrantável. Uma verdadeira peça. Ela sabia-o. Tanto, que por vezes, quando se enfrentava com os mais directos, conseguia sorrir de amargura. A voz era metálica de ríspida, o discurso curto e duro. A última palavra, a sua. Separavam-na dos seus filhos, netos e bisnetos, não abismos de idade mas antes de vivências. Ela fora uma Dama, eles eram apenas Gente. O seu desdém, não era provocatório nem contingente, era sim, uma disfunção de geração, um poço de vivências, um abismo de conceitos.

Camila D’Andrade senhora singular, mãe sentida mas ausente de afectos, rica de benquerenças e orgulhos resguardados, desfia na sua mente o percurso da sua prole e dos seus vindouros. São belos os seus. Têm a graça e a raça da origem. Gravitam pelo mundo tal como ela o fizera outrora. São Gente denodada em busca de um pouco do fulgor de outros ventos. Ora de levante, ora bora, ora siroco e ainda tramontano.

Aviva-se-lhe a memória.Recorda. Olha o mar, que está do outro lado, depois do embondeiro, deslizando na areia fina adormecida pela neblina da manhã. O azul, aliás a sua cor preferida, remansa sob os ténues raios de sol. É o belo, ali, na mão do olhar. A perfeição, numa golfada de sentir. Sente-se inundada, aquele momento será, para sempre, seu. Suspira, dilata a alma.

Vinda de não se sabe onde, uma nuvem, mais outra e outra, acinzentam e enegrecem o que era puro e diáfano. Uma leve brisa que agita o embondeiro, mais outra ,e outra. Em breve os ramos vergam-se, cospem as folhas, varrem o ar em dança abrutalhada. E o seu mar? Revolve-se em turbilhão, agita-se, torna-se denso, escuro ora azul pesado ou verde opaco. O vento cobre o seu quadro, o vento despe a sua alma, o vento dirige o seu estar, o vento chora a sua vida, o vento ventado do tempo passado.

O vento varrido, batido, perdido de si é a chave da sua história. O vento da vida, dos tempos e das gerações. O alísio, do seu mundo passado, dá a mão á nortada do presente, com a veleidade de um futuro adalor. Os tempos virão de mais suavidade. Os tempos da sua Gente.

Adormece breve e leda. O sonho ventado do ontem na brisa do amanhã. Assim Seja!


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07 fevereiro, 2008




"Enivrez-vous" de Charles BAUDELAIRE


Texte extrait du Spleen de Paris.

Il faut être toujours ivre. Tout est là : c'est l'unique question. Pour ne pas sentir l'horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.
Mais de quoi? De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise,
Mais enivrez-vous,
Et si quelquefois, sur les marches d'un palais, sur l'herbe verte d'un fossé , dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l'ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l'étoile, à l'oiseau, à l'horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est; et le vent, la vague, l'étoile, l'oiseau, l'horloge, vous répondront : "Il est l'heure de s'enivrer!
Pour n'être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous;
Enivrez-vous sans cesse ! De vin, de poésie ou de vertu,
à votre guise."

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05 fevereiro, 2008

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«NINGUÉM SE CONHECE»
Francisco Goya

03 fevereiro, 2008





O homem compreende tudo com a ajuda daquilo que não compreende.
(Autor desconhecido)



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Chagall

Under your white stars", a prayer-lyric, written by Israeli-Yiddish poet Abraham Sutsever, the bard of the Vilna Ghetto.

Under your white stars
give me your white hand
my words turn into tears,
receive them in your hand.
When it becomes night
let the stars light up the dept of my glance
so I find quiet in the darkness,
allow you to weep again.

Only you hear what I ask,
only you know my pain.
Look at this fire, this I carry
and it burns in my heart.
In the cellars, in the dungeons
the freedom is in the death.
On the houses, on the roofs
I shout: "Where are You, God?"

Restless I look for You,
chased by death.
Only for this song I allow me a pause,
and I sing for You, oh God.

29 janeiro, 2008

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A fome.

Na madrugada fria, parca de luz e cinzenta de tempo, Rosália puxa o cobertor puído para o rosto, encolhe-se no côncavo da cama, guardando todo o calor naquele breve espaço. São quase cinco horas da manhã. O vento assobia no granito da casa e depois sobe aos vidros e senta-se no velho telhado musgoso dos anos. Encolhe-se mais. Tirita. Não tem roupa quente. Breve casaquito de lã serve de aconchego nas noites geladas. Os pés vestem-se de meias de lã, daquelas grossas e ásperas já recosidas e que serviram nas socas. O marido, a seu lado, também ele em novelo, dorme no ressono da madrugada. Encosta-se na partilha do calor que o corpo teima em não ter. Treme e humedece os lábios ressequidos do ar. Tenta fechar os olhos e apagar os ouvidos, mas o vento tremula lá fora chiando nas telhas partidas. O ar gélido entra pelas frinchas e pelo chão de tábuas finas dos anos. As paredes desenham fantasmas vindos da janela onde as cortinas já gastas dançam ao som da melodia da madrugada. Volta-se mais uma vez, o rangido acompanha-a. O seu Inácio estremunha e diz-lhe entaramelado: -“Tá queda!”

Rosália espiga de centeio maduro e cheio, enrosca-se no seu Inácio e deixa o resto das horas cobrirem a madrugada. Quando o sol pálido despir o casaco do céu, ela terá que se erguer, acordar os pequenos, arranjar-lhes a merenda, fazer a cevada, dar um jeito nas camas, pôr umas batatas descascadas no pote e juntar-lhes a água. Depois é descer a rua e entrar no carreiro até lá baixo. Sempre a descer quase até á orla do rio, até ao lameiro. Hoje há que cegar o azevém. É sua a tarefa. Já de avental posto, socos calçados, lenço amarrado, casaco cinzento, velho e gasto a aconchegar os ombros de carnes já fugidas. Rosália dá a salvação aqui e ali, pergunta por um ou outro, e sempre sorrindo num trejeito de lábios presos, continua caminho abaixo.

Vê a sua terra ainda pestanejando na neblina da manhã. Está ainda parada. Pouco trémula. Apenas o ar é fresco de límpido. O rio corre tão manso que nem bule. Também dorme. A sua cor ainda não está destapada. Olha em redor e suspira. Chega-lhe o cheiro das couves que parecem abanar, da terra que se destapa, e das heras que se sacodem nos muretes de granito velho e tosco.Sente-se prenhe da sua terra, do seu chão.

O lameiro sorri-lhe no verde da manhã, acompanhado pelos ramos de umas poucas oliveiras já aliviadas do negro. Suspira, pega na gadanha e curva-se no corte rente do azevém. Assim despida de roupagem verde a terra suspira, recolhendo-se. Rosália torna a lide maquinal, num movimento circular de braço, ombro, braço, ombro, como se fora espiral. As mãos fortes e gretadas, onde os sulcos do trabalho se abeiram das veias, compassam a lide em apertos de raiva. Mais á frente ergue o tronco, endireita os ombros, e desafia com um olhar o ar que a rodeia. Perlam-lhe a testa e as fontes, gotículas que lentas escorrem adentro. Afasta pequenos fios loiros que teimaram em escapar do lenço, e estão agora empapados. Direita de gadanha na mão, olhar firme e ávido de muito, estica o braço esquerdo e aponta, algures, no espaço longo de azul forrado, zurzindo as sílabas: -“ Sacana de vida!” A gadanha silva o ar, depois descai como se fosse tomada por um soluço. Deixa cair os braços e retoma a faina.

Nestes momentos de solidão, pode, e extravasa toda a sua revolta, asco, e fúria. Ainda estão vivos os outros tempos, quando trabalhava na pequena empresa, tinha o seu salário, o seu Inácio também. Viviam na vila num apartamento cómodo. Os pequenos, dois, quase seguidos, porque assim os tinham planeado, estavam na creche. Tinham a sua vidinha. Não eram limitados nem iluminados. Eram gente viva de um povo. Porém a empresa começou a ir-se abaixo, depois de percalços de salários atrasados, acabou por fechar. Despedidos, com contas para pagar, só tinham tido uma única solução. Voltar para a aldeia, para o quase casinhoto dos pais dela, já fustigado pelos anos e tempo. Sem quase condições. Fora um recomeço amargo. O recomeço destes novos tempos onde a vida se torna mutável de vazia. Fizeram umas obras, umas pequenas coisas, ela tinha esfregado, esticado e puxado. Voltado aos tempos quase de antanho. Mas as crianças tinham sido talvez as mais doridas. O seu pequeno mundo tinha aberto uma brecha nas cores da quase perfeição. O Inácio trabalhara á jorna mais uns biscates de inicio. Agora já tinha um empregozito numa oficina, coisa que ele detestava, pois o coitado era mais de papel do que de mãos, mas tinha que sacar o dinheiro para alimentar as crianças. Quantas vezes, a sua barriga dera horas e troara de vazio? Tantas, a sua e a do seu Inácio. A fome batera-lhe á porta quando se dizia que o mundo avançava. Não era de grandes tiradas de pensamento, mas achava que algo andava mal na cabeça dos governantes deste país. Olhava em redor e só se ouviam queixas, dores. Os sorrisos estavam fechados, as pernas tornavam-se mais trôpegas. Não, não era a idade, era a vida, a sacana desta vida, parida de ais e uis! Cospe de raiva. Despeja o amargo que lhe vai nas entranhas.

A manhã já vai alta. Acama o azevém para o seu Inácio o carregar mais tarde. Os animais já têm ração. O pior é as gentes. Inda hoje vai ser um caldo e umas batatas. Está-se quase no fim do mês e o dinheiro é curto. A janta é sempre um pouco melhor, há que alimentar os pequenos e a vergonha de mãe impede-a de lhes negar uma refeição quase normal. São tão finos os seus pequenos. Duas cabeças castanhas, e quatro-olhos cheios de luz abertos para a vida. Como impedi-los ainda de sonhar? Mãe que é mãe, não faz, não pode fazer isso. Quantas vezes na cama rangente, do seu quarto despido, chorou com o seu Inácio, desesperou pelo dia seguinte, suplicou por pão. Tantas, Senhor! E os olhos orlam-se de lágrimas, não são doces, são amargas, agudas, viscerais de ácidas. São lágrimas de mãe e de mulher.

Sobe lenta o carreiro, o avental vem enrolado no sujo da terra. As mãos poisam de doridas nas pernas que avançam. Um passo, mais outro, e outro. Os socos matraqueiam nas pedras aqui e acolá. É seco o calcar, pesado de sentir, agitado no movimento. Rosália avança ao compasso dos pensamentos. Entrechocam-se as imagens passadas com as presentes, apenas as do futuro são nadas, vazios sem moldura.

-Será que a vida tem que ser assim? – Murmura. Será? Tão dura e áspera, porquê?

Que país é este onde as suas gentes sofrem o amanhã de cada dia, como se tivessem que expiar os erros daqueles que sentados á mesa do poder se empanturram de tudo esvaziando as cestas daqueles, que como ela joeiram o pão-nosso de cada dia?

Rosália bebe o ar fluido da manhã já quase morna daquele inverno da sua tristeza. Os dias ocos de esperança, frios de sonhos e acres de luta no rol do tempo nu de futuro. As gentes, as crianças, tudo tem fome de futuro. Fome negra, ávida e ansiada, fome desejada, fome de esperança, fome de sorrisos, de rostos abertos e corações leves. De baladas cantadas na alma de um povo!


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