— A culpa foi do meu pai! A culpa foi dele!
Henrique detém-se, por breves instantes, diante da filha
mais velha. Está amarrotado no olhar e no gesto nervoso, transpira o segredo do
passado. Logo, retoma o seu vai e vem inquieto na carpete vermelha. Senta-se à
sua mesa de vidro e num sinal de desalento, quiçá arrependimento, coloca as
mãos entre a cabeça debruçando-se mais sobre si mesmo, abana a cabeça, enquanto
com o polegar a coça no lado direito. Um gesto que lhe ficou do tempo em que a
brilhantina lhe empapava os cabelos. Assim fica durante uns minutos. Depois
ergue os olhos já mortiços. Os anos não perdoam. A vida há já muito que corre
por ali.
Mais um dia de desencontro. Mais um, entre todos os outros,
dos seus dias. Henrique vive duas vidas. A de casa e a das fantasias. A sua
instabilidade afetiva, o seu saltitar emocional, o seu desejo por algo
inatingível sempre o perseguiu. Vê -se transido de medo por detrás da saia da
mãe, enquanto o pai, podre de bêbado, gritava que nem um possesso. Vê-se trémulo
esfregando o pé no outro, sentado no banco de madeira à espera do prato da sopa
na mesa quase vazia. O pai reformado, jogador, bêbado e outras coisas mais,
olhava pela família. Lembra a figura doce e sofredora da mãe, abrindo os braços
para o acolher como se a paz estivesse ali, naquele abraço. Revê os olhos
negros na face cheia podres de amargura, a boca quase sempre fechada entreabrindo-se
num esgar sorriso de conforto. Lembra-se de um lar desfeito nas mãos de um
homem que fora seu pai. O riso feito lágrimas, os gritos feitos palavras, o
choro feito dor, a fome feita alimento. Cresceu assim. Tornou-se belicoso,
doce, triste, alegre, pecaminoso, amigo, pai, marido e homem. A raiva engoliu-a
em digestão difícil. Levedou para sempre e, ao mínimo aquecimento, rebenta num
chorrilho de impropérios sentidos no momento. É incontrolável, é a fúria, é a
pena de si. Sente profundamente o que pensa, e numa rapidez única verbaliza
essa corrente num esgar provocatório de fúria que não controla. Depois
esvai-se, esquece-se, apaga-se, mas jamais pronuncia a desculpa. É a força que
lhe estrangula a garganta, o orgulho de si que o impede, é a sua revolta que o
perturba mais e mais. E o tempo passa sobre cada ira, o tempo das horas, dos
dias, dos meses e dos anos. Tempo. Reconheceu sempre os erros, mas não deu
nunca o braço a torcer. Outro, dos seus muitos predicados, era dizer o que sentia
diretamente olhos nos olhos às pessoas. Não gostavam, e nas suas costas
comentavam, com aquele ar revestido do tom depreciativo: “Quem julga que é? Um
pé rapado, um pobretanas, sem eira nem beira que se arvora em grande personagem”!
Que tipo irascível!
Porém, no dia-a-dia sentavam-se à mesma mesa de café,
sorriam em semidecúbito e afagavam-lhe as costas com as palmadinhas melífluas
que a sociedade procriou. A sua vida fora feita de nós que ele próprio causara.
Não era mau tipo, só tinha um feitio lixado, como diziam os amigos e a mulher e
os filhos, bem quase todos. Havia a mais velha que o aceitava. Não o temia,
acatava as suas iras, julgando-o silenciosamente. Agora, mulher madura
conversava com ele dizendo-lhe claramente que não estava correto, que não era
assim que se fazia. Não partilhava o desassossego que o resto da família
sentia. Não, porque o percebia. Ele apercebia-o. Não que a amasse de modo
diferente, apenas e somente a respeitava, talvez, um pouco mais. Naquele serão,
uma vez mais, ela retorquiu-lhe, após a explosão de culpa solta.
-Os mortos não são culpados. Os vivos é que fazem os disparates,
não é justo, culpar quem já cá não está, pai!
Olhou-a de olhos vazios e recolheu-se de novo falando para
si. Ela, a filha deixou passar o tempo, deixou-o sossegar. O ar pesado
diluiu-se, passado um tempo a conversa retomou o seu curso de sempre. Não era
um homem fácil, mas era encantador. Um sedutor enviesado. Conversador nato, com
uma fluência de palavra própria de quem gosta e sabe cativar assenhorando-se do
tempo. A sua voz não era metálica, nem troante, porém, o seu tom era claro e
alto. Sempre houve quem não gostasse do tom de voz, e pensando ser uma forma de
subjugação. Puro disparate. Gostava, sobretudo, de ser ouvido mesmo quando o
assunto era fastidioso. Nesses momentos, era preciso olhar sorrindo, e mesmo
ausente, ir respondendo por monossílabos. Noutras alturas era bom ouvi-lo dissertar
sobre coisas passadas e aprender. A ironia rendilhada era percetível para os
atentos, esquiva para quem não o entendia. Não podia ser definido por um homem
colérico porque a par das suas raivas, das suas tempestades, das suas verdades
doridas em tempo de cólera, havia depois um quebranto, que o levava a ser uma
espécie de menino arrependido, mas teimoso. Era, então, que se revoltava contra
o pai.
Naquele serão, como em tantos outros ao longo dos seus setenta
e cinco anos de vida e cinquenta de casado houvera mais um desaguisado entre
ele e a mulher. Pontos de vista, palavras ditas aqui e ali, conceções
diferentes e acima de tudo traições, pequenas ou grandes que ela nunca lhe
perdoara, embora continuassem a viver lado a lado, a pôr-lhe a roupa, a cozinhar-lhe
os almoços e os jantares, a gerir-lhe o dinheiro, em suma, a pontificar o seu
quotidiano o que para ele, aliás, até era um alívio, uma vez que o trivial
sempre o aborrecera. As chamadas minudências do lar eram-lhe fastidiosas como
era fastidioso, quase desesperante ter que fazer o seu trabalho repetitivo,
desprovido de criação, sem palavras, feita de números que nada lhe diziam,
porque para além de serem números, que nem sequer seus eram. Bah, o que lhe
interessava a ele, se o estabelecimento A, B, ou C tinha lucro, se o comércio
ia de vento em popa, ou se pelo contrário, estavam com as vendas fracas. Somente
no primeiro caso ser-lhe-ia mais difícil esconder os lucros para que o cliente
pagasse menos impostos. Tudo isso estava intrinsecamente ligado à sua
profissão. Sonegar e enganar. Com a ironia própria da sua maneira de ser,
muitas vezes pensava que ao fazê-lo profissionalmente era uma atitude aceite e
quase sacrossanta por parte da sua Suzette, que achava que assim ele era um bom
profissional na medida exata em que receberia mais umas “recompensas”,
traduzidas, claro está, num chequezito que, iria providenciar mais algum
conforto ou até descanso. Porém, quando na sua vida de homem escondia,
enganava, ao ser descoberto era arrasado, jamais perdoado apenas desculpado
momentaneamente. Logo a seguir, os epítetos apareciam, sobretudo em ocasiões
como a daquele serão. O pomo de discórdia fora banal como sempre. A família de
Suzette. O muito que tinham granjeado com suor e lágrimas, a vida simples e
desprovida de laivos de vaidade, a seriedade nata dos irmãos que os levavam a
ter uma só mulher e a viver dependente dela e dos filhos numa harmonia frugal e
quimérica. Enfim um corolário que ouvia, sabe-se lá há quantos anos, talvez
desde que tivera aquele malfadado caso com a empregada, em que pusera quase
tudo a perder. Depois disso, fora um eterno calvário de críticas e quase
desprezo. Sabia muito bem, sabia, que a sua Suzette tinha alturas que o aturava
não porque o amasse, antes porque era a sua subsistência, porque era o seu hábito,
e principalmente porque lhe era penoso, a ela, ter que mudar. Não pelos filhos,
que esses estavam criados e mais que criados, mas por ela. Apesar da sua quase
auto convicção de liberdade pessoal era uma mulher muito dependente. Nunca
saberia ser autossuficiente. Não possuía estrutura para tal. Não tinha
interesses pessoais para além da vida de casa, da dos filhos, e acima de tudo,
da deles. Naquele serão como em tantos outros, o desprezo chicoteou-lhe o
coração. E, como tantos anos antes, tantos que se perdiam na bruma, reagiu. Não
se encolheu nas saias da mãe nem no canto vazio da casa, não, ripostou de forma
desabrida, de palavras tortas e tom altaneiro. Jogou à defesa para encobrir as
suas misérias humanas, os seus erros, as suas paixões perdidas, o seu amor por
ser. Especificamente para se proteger. Quem diria que ele, Henrique Gonçalves
conhecido pelas explosões verbais, pela crítica demolidora do socialmente correto,
ele, que fazia lembrar o homem bomba do canhão do circo, não era senão uma alma
que jogara toda a vida à defesa. — A culpa… a culpa…
A culpa instalara-se na família. Culpa das palavras e dos
atos. Culpa das ideias e dos percursos ou não percursos. Culpa dos objetivos,
de ter ou não ter, culpa do aspeto físico, culpa da inteligência ou não inteligência.
Enfim, culpa de Ser.
II
Clara recolhe as memórias com o olhar num suspiro de ar vivido.
Como o tempo passou, medita. Está sentada no alpendre da sua varanda. O jardim
em redor dormita na quentura da tarde. O Verão respira ali, ao lado, no bafo do
seu alento. Poisa o olhar dentro do tempo e sorri de olhos húmidos.
— Como o tempo passou! Aqui mesmo ao
lado correu apressado, como correu apressado, nem deu tempo para saborear a
vida. Como correu depressa, ontem ainda queria o amanhã, ontem, ainda era hoje.
Assim, num ápice, voaram os anos. Remexe-se na cadeira. Levanta-se. Um passo,
dois. Desce os degraus da varanda e estende as pernas pelo jardim, puxando uma
erva aqui, revolvendo uma pedrita ali, arredondando uma folha acolá, uma forma
como outra qualquer de afastar os pensamentos. Junto da sebe das hidrângeas
inclina-se, colhe duas para a jarra do hall, pensa. Dá volta ao jardim da casa
mastigando o verde das sebes, mais o das árvores. As rosas, parcas este ano,
dão o tom macio ao verde do jardim. Suspira quando se senta de novo no banco. A
sua casa. O porto dos seus sonhos e das suas angústias. Tanta vida entre as
paredes brancas de uma casa. Em cada espaço existe um pouco de si e da sua
vida. Entra. A cozinha fervilha no sossego dos cheiros. Inspira. A serenidade
entra-lhe pelas narinas abertas. Tudo descansa naquela hora. Transpõe a tijoleira
vermelha, e logo o estalar seco da madeira palpita sob seus pés. Já está na
saleta. Atira-se no sofá verde, estende as pernas e semicerra os olhos. A
sonolência apossa-se dela. O calor dolente e o peso das memórias fazem-na ficar
assim quebrada. Puxa a almofada de ramagens verdes e pretas e estende-se. Cruza
os braços sobre o peito e abandona-se ao sono de imagens vividas.
………………
Naquela tarde enquanto dava a segunda aula sentiu-se oprimida.
Olhou para fora, pela janela mesmo quase ao lado da secretária, as serras
respiravam a tormenta. Estavam escuras e poderosas. O céu pintara-se de
cinzento pesado e mal se mexia, agrilhoado. Clara entreabriu a janela, porém o
ar não limpou o seu sentir. A borrasca pressentia-se. Iria estalar a qualquer
momento. O suor pespontava-lhe a testa. Sentia no corpo aquele tempo sem ar.
Caminhou pela ala entre as primeiras carteiras enquanto
debitava a matéria. Uma pergunta aqui e outra ali. E o ritmo da aula girava.
Mas aquela opressão continuava. Despiu o casaquito de algodão. Resolveu fazer
uma pausa na explicação. Os cinco minutos de descanso que dava aos alunos
sempre que havia matéria nova. Conversa daqui, conversa dali e, ei-los relaxados.
Podia recomeçar. Recomeçou. Cansada olhou de soslaio para o pulso onde os
ponteiros pareciam colados. Não se mexiam. Alguma coisa ia acontecer.
Conhecia-se por demais para desprezar os sintomas. Aquela opressão causava-lhe
um certo atordoamento mental. Bom, o melhor era mesmo continuar a aula. Não
valia a pena antecipar-se. A ansiedade não lhe daria descanso. Continuou no seu
deambular explicativo, enquanto os alunos se entretinham entre o conteúdo que
escorregava por entre os ouvidos, noutros casos era bebido pelas mentes, e
noutros ainda era devolvido intacto ao ar pesado da sala.
E o tempo decorreu. E a campainha tocou. O tropel habitual
aconteceu. Apanhou as suas coisas, atirou o olhar habitual à sala, fechou a
porta e caminhou. Na sala do primeiro andar, onde todos os colegas se reuniam,
pairava o calor abafado casado com o som das vozes. Os professores falam alto.
Muito. As vozes têm tendência a tornarem-se estrídulas. Clara sentia-se zonza,
cada vez mais. Agora era uma agonia vinda não do estômago, mas de algures, que
não sabia bem definir. Sentou-se.
— Clara, estás bem? — Ouviu muito longe, a voz.
Quis dizer algo, mas a língua estava presa, o rosto também.
Havia como que uma força a agarrá-la, roubando-lhe a luz do dia, embaciando-lhe
o cérebro.
Sentiu-se mole. Terrivelmente mole.
Estava num sítio diferente, estranho, quase diria,
esquisito. Estava separada. Ela aqui e a outra, ela também, mais além. Duas
pessoas e uma só. Conseguia sentir que a outra lhe pertencia, porém era
diferente. Cansou-se e fechou os olhos.
À medida que o tempo passava, a outra vinha-se aproximando.
Tão devagar que nem dava por isso. E o cansaço desvanecia-se. Parecia que o
torpor a ia deixando. Que o calor e a vibração começavam a tomá-la.
Abriu os olhos três dias depois. Disseram-lhe que tinha
estado mais para lá do que para cá. Qual quê! Simplesmente adormecera e deixara
que o seu corpo flutuasse. Tão simplesmente. Estava debilitada, sentia-o, contudo
o seu cérebro funcionava. Foi retomando a posse dos seus sentidos. Sentia-se quase
normal. A vista não. Qualquer coisa não batia certo. Mas não se ia preocupar
agora que tinha acordado, e via o mundo à sua volta com outras formas.
Esquisito. Mas as pessoas pareciam-lhe diferentes mais pequenas e sumidas.
Aquele ar de conquista, aquele brilho de vontade, o frenesim do ser ouvido,
tinha-se evaporado. Afinal eram comuns. Tal como ela.
Clara suspirou por entre os lençóis de barra verde. Com a
ponta dos dedos puxou-os para si. Tapou a boca. Os olhos orlados de macerado
sobressaiam no rosto amarelado de doença, contudo a vida continuava a
espreitar.
Recuperou-se. O AVC deixara-lhe lapsos. Lapso de memória, de
espaço e até de paciência. Os lapsos de Clara. Lapso que, sub-repticiamente,
aprendera a disfarçar com arte e estilo. Uma sobrevivente. Diziam-lhe, uma
mulher com sorte!
Talvez sim, talvez não. Já depois, muito depois quando
pensava no caso, Clara murmurava para si. “Talvez sim, talvez não”.
O mundo mudara. Ou fora antes ela que mudara? Os pequenos
muitos nadas que tanta importância dava nos dias antes, agora ao remirá-los,
causavam-lhe bocejos. Como as ninharias deixam de ter peso quando a vida esteve
em jogo. Um lugar-comum, aliás um pensamento banal, mas não somos nós todos
banais? Encolheu os ombros, era algo intrinsecamente seu, pertencia-lhe. Não,
não era displicência, nem tão pouco um deixa andar, somente o seu trejeito, que
dizia: “Já lá vai, mas voltará.” A inevitabilidade que sempre a coabitara. E
fora com um encolher de ombros que também se relançara na luta de cada dia. Lá
no seu íntimo, sabia que levaria a melhor, e assim de um mansinho exterior, mas
com a força interior, atirou-se e conseguiu.
Clara venceu a batalha, agora a guerra? Isso, não sabia, mas
o que importava, e depois quem o sabia? Certamente outras batalhas cairiam por
perto ou mesmo em cima, a sua vida era feita de lutas. Na tela da sua vida os
tons sempre se tinham misturado entre os muito fortes e os pastéis, deixando
pequenas réstias de azul sonho.
E os pensamentos, quais gotículas de cacimbo, deslizam pelo
vestíbulo da noite. Não se sente velha como o reflexo teima em apregoar. Aliás,
a sua cabeça é um baloiço de agilidade onde o pensamento se entrecruza com a
maturidade do raciocínio. Gosta dos seus cinquentas e sete anos e do amanhã de
todos os dias.
Uma mulher sem história ou uma história de mulher? Abana
ligeiramente o pescoço afastando as divagações que a visitam em cada segundo.
Não quer divagar, apenas pensar. Tem que delinear objetivamente o seu trajeto. As
horas deslizam velozmente.
……………………
Eram quase oito da noite quando o filho nasceu. Sentiu
alívio. Moveu a cabeça para o lado e viu-o no berço. Viu-o de olhos oblíquos e
papudos, cabelos quase alaranjados, de punhos cerrados e tão pequenino. Destapou-o
e olhou-o como se visse tudo pela primeira vez. E era a primeira vez. Tocou
levemente nas perninhas, no corpo. Percorreu o polegar pela linha do rostinho
num toque infinito. Sentiu-lhe a macieza da carne e uma força que a fez parar.
Ora, impressão sua. Retomou o toque e parou nas mãozinhas que teimavam em
permanecer bem cerradas. Abriu-as e meticulosamente estendeu-lhe os dedinhos.
Perfeitos. As unhas arranhavam. E naquela intimidade sem sons, ele suspirou.
Era seu. Viera dela. A sua criação. Tapou-o. Pensou. Pensou na incerteza.
Pensou em tudo. Sentiu-se dorida, mas feliz. Levantou-se e sorriu. A vida
estava mesmo ali ao lado a desafiá-la. E ela aceitou o desafio.
Chamou-lhe Henrique, como o avô.
O tempo voou. Ele cresceu, ela amadureceu. Ele ficou homem, ela
mais velha. O tempo sem tranca que varre a vida.
………………
Recorda os tempos de juventude. Enormes, quentes e cheios de
promessas. Eram felizes na crença do amor, da ilusão, dos grandes cultos, dos
enormes altruísmos, do derrear os dogmas sociais, na construção dos ideais. A
sua geração fora assim. Ela fizera parte, tivera as suas lutazinhas, quebrara
alguns tabus geracionais, sabe-se lá, à custa de muita lágrima, zanga e tantos
outros dramazinhos familiares. A peça que fora cartaz no palco da sua geração chamava-se
“Flower Power” e o seu mote era make love not war. Vivia-se entre duas
grandes dicotomias, ontem como hoje, o campo e a cidade. A única diferença dos
dias de hoje é que a pobreza era mesmo ruim, aviltante, redutora da condição
humana. Pobreza material ao extremo nos mais desfavorecidos, na classe rural,
ladeada de um pseudo certo bem-estar, um relativo bem-estar e ainda um efetivo bem-estar ou mesmo bem-estar de uma classe média bem
instalada. Quem conhece a nossa realidade, sabe bem que a classe média bem
instalada foi sempre a que, de uma maneira ou outra, governou o país ou se foi
governando, de acordo com o degrau onde o pé era assente. A pobreza era
terrível, não só a do campo capeada também da pobreza de pensamento, a par da
vivida na cidade onde as pessoas pululavam na robótica do ganha-pão, onde a
miséria dos dias se fazia, muitas vezes, de fome vestida de uma aparência
arranjadinha e um olhar envergonhado. Lutava-se, não pelos ideais, antes sim
pela sobrevivência do corpo. O desejo maior era ver os filhos estudarem, terem
um ofício na mão, uma mais-valia de futuro, um casamento sólido sinónimo de porta-moedas
remediado. Somente para os mais audazes, os mais inteligentes havia o curso na
universidade, ser doutor ou engenheiro era uma ascensão social pratica corrente.
No mundo ativo Todo este quadro originava muitos
atavismos morais, uma tacanhez de conceitos baseados em padrões pseudomorais
que conduziam a um conforto hipócrita de moralidade. Cabia à mulher o papel de
sofredora, pese todas as diatribes, traições e outras quejanices que o marido
achasse por bem fazer. Ela, ela segundo a tradição judaico-cristã, era o pilar
do lar, o esteio moral da família. Claro, que este postulado passou durante
gerações de mães para filhas tal como passava a peça do bragal. Esquecia-se que
havia um ser humano debaixo de toda essa carga e que ele palpitava. Que ao
negar-lhe a sua verdadeira existência se construíam seres insatisfeitos,
incapazes de darem amor porque também o não recebiam. Alucinadas pelas leituras
cor-de-rosa, não tendo a capacidade para discernir entre o real e o imaginário,
desconhecendo muito da vida nua e crua no que respeitava aos verdadeiros
desejos humanos. Partiam para as relações, diga-se casamento, mais nuas que a
própria nudez. Sempre que o corpo falava mais do que o espírito, logo o
sentimento de culpa aflorava. Uma geração de mulheres mestras na arte do
disfarce. A culpabilidade e a insatisfação pariram brechas nas relações
humanas. Gerações perdidas de si. Ontem como hoje, a sociedade portuguesa
girava em torno dos seus extremos. E assim, do atavismo moral mergulhou-se no laxismo
experimental. Na sociedade do século vinte um, a moral quase cedeu lugar ao
prazer. “Eu desejo, eu quero, tenho que ser feliz, feliz, feliz…eu fui feliz no
momento”. Assim num ápice, numa pressa sem delimitações. Tudo se passa num
repente. O tempo de maturação, de análise, de construção, desapareceu. Não
existe. Meramente um corre-corre de desejo, de posse, de saciedade e finalmente
de tédio. Nesta reviravolta de conceitos, o caricato, é que ainda se continua à
procura de querer ser feliz, apesar da pesada propaganda. Esconjuram-se os
laivos de culpa, qual anátema de civilização primitiva. A bendita que tem
ditado tantas e tantas felonias neste nosso século. A culpa, o legado nacional
mais poderoso, porque a coitada tem morrido sempre solteira pese, o facto, de
ter destruído relações, posições e tantas outras ações.
Hoje, ao olhar para esses dias, um sorriso irónico tem que
forçosamente mascarar-lhe os lábios. Tão ridículo! No entanto, na altura
geraram-se conflitos familiares, zangas e humilhações. Depois veio o vinte e
cinco e, rapidamente os costumes mudaram. Tomou-se como natural, o que até
então era proibido. As massas ululam ao sabor do vento, melhor, as mentes mudam,
tal como o vento sopra. E se sopra com força, então a mente parece um
cata-vento. Neste caso, bendito cata-vento, diga-se. Houve muita mudança. Os
cenários foram-se transmutando à medida que a peça se plasmava aos costumes.
Neste entretém teatral, os rostos adquiriram rugas, o espírito aquietou-se e
alguns bolsos aviltaram-se. O idealismo virou capitalismo, o amor comprou-se,
vendeu-se e emporcalhou-se. E a geração dos ideais metamorfoseou-se em
peralvilhos com sebosas contas bancárias Os charros passaram, praticamente, a
ser um quase apanágio de uma pseudoelite intelectual que os usa diz, como fonte
de inspiração. Uma geração que sonhava sempre que respirava. Respira, hoje,
entrecortada entre a ambição dos cifrões e do bem colocado. Não somos senão
pavões eternamente voltados para um jardim que já não existe. As penas já são
tão toscas que até faz dó, pese o brilho da projeção.
Houve um desbragar de convenções, o caos, diziam os mais
velhos, então. E nós ríamos, ríamos porque o sentir era impune, porque éramos
jovens e heróis. Havia o cheiro tremendo de sexo, mas também o cheiro da vida.
Era diferente. Era a libertação, a nudez da carne e da alma. O despir total, o
arrebatamento de comungar o corpo, o vento e a terra. Os primeiros ecologistas
não asséticos. Clara sorri abertamente. Tem orgulho de pertencer ao grupo das
cotas. É tão maravilhoso ser-se cota quando se tem um mundo de cristais nas
traves do espírito. Pertencer a uma geração de descoberta, de aquisições, de
luta.
Hoje torna-se doloroso verificar que os Senhores do Mundo
são, os que, então, foram seus parceiros de aventura naqueles anos dourados.
Como o poder corrói. Tudo é bem pior que o ácido, porque é mais lento e
persistente.
Levanta-se, alisa a saia, puxa a o cós do jersey, ajeita o
cabelo e sente-se de novo jovem e atraente. Uma hippy repleta de alquimia do
tempo.
Está mais segura. Não olha nem para a esquerda nem para a direita.
As memórias povoam-lhe o ecrã da mente. A noite pisca-lhe matreira por entre
uma meia-lua sentada por cima da janela da saleta.
…… ……………………………….
Clara olha-se no espelho do seu quarto de rapariga.
Gosta do que vê. O vestido comprido cor de champanhe, corte
simples, todavia elegante. O saiote faz-lhe o redondo das ancas. O cabelo no
seu brilho dourado suporta aquele véu de renda enorme. Na mão as suas eternas
rosas amarelas.
Casa-se hoje. Um dia especial. Percorre-a um frenesim. Não é
ansiedade, somente a antecipação do acontecimento.
Olha-se fixa e demoradamente no espelho oval, a imagem não
reflecte os pensamentos. Interiormente sorri. E interroga-se: Afinal é este o
dia tão especial, o dia que desde garotinha ouviu falar? Uma névoa breve
tolda-lhe o olhar. Recompõe-se. Há que estar serena. Uma noiva quer-se nimbada
de luz. Os eternos clichés da sociedade. Mas enfim, encolhe os ombros. Assim
seja.
Debruça-se sobre a cómoda perscrutando a imagem no espelho
oval. Aqueles momentos a sós são preciosos. Em breve terá que mergulhar na
alegria do dia. Urge.
Deseja que termine. Sempre foi diferente. Sabe que mastigar
os momentos não os faz perdurar no arco-íris do relógio. Depois, também sabe
antecipadamente o que se passará. Sempre um pouco à frente do hoje. Clara
apressada. Não, ela não é apressada, apenas o hoje, foi o ontem dela, o amanhã,
é o seu hoje. Naquela divisão de tempo o seu corpo senta-se, porém, o espírito
inquieto flui. Nunca ninguém a percebeu. Habituou-se a viver assim. E hoje,
pese os seus anos ainda verdes, coabita lindamente com a dicotomia. Chamam-lhe
insatisfeita, nervosa. Nada disso. No entanto, nem sequer perde tempo a
explicar-se porque, sabe, não a compreenderiam, se calhar até diriam que tinha
alguma pancada…não fora em vão que caíra de um escadote bem alto ainda
pequeninita. Talvez fosse daí, que lhe adviera esse desassossego de tempo. Não
era em vão que lhe diziam ser parecida ao pai…
Mas hoje era o seu dia. Clara casava-se. Apesar da liberdade
que aqueles tempos continham, essa mesma liberdade acabava por exigir um
invólucro. Há vinte e muitos anos casar-se era uma quase obrigação, pelo menos
no meio de onde provinha. Meio arreigado de preconceitos e normas. Aquela
necessidade do certinho que sempre a baralhou. A vida é um remoinho de folhas
de muitos tamanhos e cores, pelo menos para ela.
Desse dia tem sobretudo a memória das pessoas, da condescendência,
do barulho, da norma, dos rostos felizes como se todos se tivessem casado na
mesma hora e com eles. Achava tudo um pouco excessivo. Aliás as festas são
excessivas mesmo que contidas. Porem é nelas que o ser humano abre a torneira
da satisfação. A necessidade grupal do divertimento sempre a espantou. Mas
naquele dia, tão especial, Clara sorriu tão beatificamente que todos a acharam
uma noiva feliz, tão feliz que até estava linda. Outro dos seus grandes
problemas foi perceber como o valor das palavras se alteram de acordo com o
estado de espírito do interlocutor, e sobretudo, se este for coletivo.
Clara cumpriu a sua parte com muita elegância e serenidade.
Manuel. Bem, Manuel estava irreconhecível. Elegantíssimo,
todo a preceito no seu mais ínfimo detalhe. Também perfez o seu papel. Mais
tarde quando já estavam longe daquele reboliço, ele dissera-lhe:” Pronto, já me
sinto legal”.
Ainda hoje se interroga sobre o que ele quis dizer
conhecendo-lhe todas as reticências que tinha em relação ao casamento religioso,
a festas sociais. Ostentação, dizia.
Porém, naquele dia foi gloriosamente simpático. Disseram
dele: — “Uma jóia de rapaz!”
Um prenúncio de outros dias. Como o tempo se foi!
………………………
Permanece deitada no sofá a espreitar a noite. O livro continua
a olhá-la. Prefere embrenhar-se nos seus pensamentos. Clara gosta desta intimidade
que tem com as memórias, dão-lhe o conteúdo da vida. Hoje em que tudo passa
numa corrida, empurrando tudo e todos, qual efeito de dominó em queda, hoje, em
que parar, é sinónimo de desaparecer, hoje, é aquele tempo em que não mais se
escutam as memórias, porque elas são feitas de nós vazios. Hoje, pensa Clara,
erguendo o queixo acima da linha do horizonte, é o meu tempo de recordar. As
suas memórias vestem o tempo. Ei-las ali mesmo defronte, sentadas, à espera de
serem catalogadas no armário do pensamento.
Quando pensa em si, Clara, vê-se como alguém cujo caminho de
vida tem sido difícil. Para lá das aparências, para lá daquilo que os outros
gostam e são capazes de ver, tem existido uma pessoa complexa, por demais.
Talvez a sua personalidade tenha sido forjada não em ferro derretido, mas sim,
em pedaços de vida amassados. Vivera e tivera a noção exata do desfasamento emocional
da vida dos pais. Analisara, desde relativamente cedo o que era a felicidade
conjugal em desencontro. Vivera as cenas teatrais de desfalecimentos, choros,
acusações e mutismos, Tivera que subsistir animicamente, crescer, diriam, no
meio de muitas incongruências. Este passado não foi uma mais valência para ela,
pelo contrário, foi algo que a tornou incrédula, fria e dorida. O pior defeito
de Clara é não acreditar. Pura e simplesmente não crê. Não é má pessoa, no
entanto para quem não a conhece, deixa sempre a ideia de altivez ou muita
simpatia. Tudo isso depende do meio em que se encontra. Para os mais simples,
para quem a vida é um simples corolário de sucessão de dias sem inquietações
metafísicas, oh Dona Clara é tão boazinha, tão simpática, faladora, dada e de
uma simplicidade e veja-se, vê-se que tem muita educação. Para os outros,
aqueles mesmos que coabitam o seu meio, aos pseudointelectuais, aos alpinistas
sociais e aos nouveaux riche não passa de uma criatura intragável com a mania
que sabe tudo, e com a aspereza de dizer as coisas na cara, pois que pensa ser
a sua verdade. Uma coitada.
O pior defeito de Clara é a sua intolerância com a
ignorância. Não concebe que no seu meio, as pessoas digam disparates sobre
coisas de senso comum, apenas por desconhecimento, apenas porque são incapazes
de recolherem um pouco de informação, antes de debitarem, publicamente, um
molhe de anedotas e ainda por cima, convictas na sua santa ignorância. Outra
das coisas que lhe põe os nervos em franja é ouvir as pessoas repetirem o que
outras disseram, apropriando-se dos conceitos ou simplesmente de frases banais.
O ser humano é terrível, vive em atos junto a um palco que na maioria das vezes
nem sequer é o seu, e outras ainda é o ator de uma peça para o qual não foi convidado.
Comédias em dramas e dramas que nem a sátiras chegam.
Clara viveu uma infância e juventude processada entre dois seres
muito diferentes que coabitaram o mesmo teto. Tão diferentes eram que nunca se
conseguiram misturar. Água e azeite. Assim os define. Dessa não mistura
resultaram quatro filhos. Ela, a mais velha, outra rapariga, um rapaz e mais
uma rapariga. A diferença de idade dita-lhes as divergências não só físicas,
mas sobretudo de caráter.