O Caracol de sapatos de
camurça.
Sendo
um animal solitário percorre os dias numa tarefa sincopada e objetiva. Recolhe-se
na sua casca e com ela parte para os lugares onde pode encontrar alimento. O
caracol porque é um molusco terrestre tem nas costas a sua concha, a qual
carrega diligentemente ao longo da vida,
não fosse ela o seu esqueleto
Pois
bem, há quem ao longo da vida, de igual forma, carregue, não tão
diligentemente, mas por contingência, não a sua casa, mas as suas malas.
Caracóis denominados professores.
As
malas são a sua casa, o caminho é feito de percursos vários, todos aqueles que
lhe possam facultar o pão nosso de cada dia
e ainda apregoam aos quatro ventos que ensinar, é uma paixão. Bons
caracóis sincopados ou antes, professores crédulos, apaixonados e traídos.
José
é professor, tem trinta e seis anos. Possui aquele ar tão peculiar dos homens,
um misto de independência dependente. Aparentemente sabe bem o seu caminho, porém
transversa aqui e ali. Recompõe-se rapidamente e sem muita complicação,
continua.
José
casou-se há relativamente pouco tempo. Coisa de dois anos. Não tem filhos
porque a situação instável ainda não o permite, Laura, a mulher, também não
está para aí voltada, tem que palmilhar na profissão, tal como ele. Não é
professora, trabalha num laboratório.
Em
dois anos de idas e vindas numa distância razoável, a relação sorriu sempre, no
limbo do encantamento mútuo. Este ano, porém ,José foi mandado para mais longe.
Uma mala, um quartinho, duas refeições diárias, mais umas imposturices e um
comboio semanal.
José
não está infeliz, feliz também não, amoldurou-se. A mala, a sua casa, leva-o no
comboio de volta e regresso. E isso quase lhe basta. A inquietação não faz
parte do seu código genético. Filosoficamente a felicidade veste-lhe a
filigrana da mente como o seu belo par de sapatos de camurça lhe calça elegantemente
os pés que passeia nos seu calcorrear de professor e impõem-se na descida do
degrau do comboio. Um cartão, não de visitas, mas de presença.
Hoje
é sexta. Mais uma semana que se fecha entre o debitar de conteúdos, o exercício
da compreensão, o esgotar da explicação, a aplicação da pedagogia, a síntese do
conhecimento e a avaliação das capacidades. O trabalho semanal que nidifica o
ensino. Entre o tempo gasto na construção do saber e a imagem, qual reflexo do
seu desempenho humano, há lugar a um o espaço tão pequeno onde não cabe o
perpassar da inquietação.. Mas afinal, não nos sentamos no decúbito do descanso
após o ímpeto da conquista? assim não é de estranhar a complacência quase intermitente
do professor.
José
possui as imagens e não as inquietações. Revê, a companheira sorridente de
olhar alvoraçado e anseia pela viagem de volta. O espaço perdido dos seus dias
sacia-se na garganta húmida, no olhar terno , no sorriso fresco e nos braços
quentes da sua Laura. Não existem peças caídas, quiçá perdidas de um tempo que
foi ontem, somente as imagens, meras memórias. Um tempo esgotado e que crê
continuado. Crédulo,
Ah,
o tempo tem horas cheias e outras vazias. Tem os ângulos próprios da geometria
de cada dia, José descuidou-se na classificação do ângulo da sua vida. Nada é
imutável e os ângulos nascem, crescem e apagam-se na sua forma de acordo com as
divisões que a circunferência da vida toma.
Longe,
na distância da viagem de um comboio, Laura cansa-se da solidão. Recorda com
algum enternecimento a biqueira dos sapatos. Sim, o estremeço que lhe dava até há
bem pouco quando via aquela biqueira de camurça romper no vazio do degrau do
comboio. Hoje, deseja que a biqueira, os sapatos e o dono fiquem longe, onde
estão.
As
reações nos seus tubos de ensaio são mais precisas, temporais e falíveis. Não
existem hiatos. O hiato mata. O hiato não é companheiro do entusiasmo, porém
quando o último soluça começa-se a morrer. Laura sabe que o estremecimento se
calou.
Como
sucedeu?
Não
sabe quando a rotina da solidão a fez perder a noção de encantamento. Respirar
sem viver foi coisa que lhe revolveu-as entranhas numa agonia de meses e, a
facilidade como partiu para novos desafios, encontros e companhias, fá-la
rodopiar numa espiral de contentamento. Foi sentir o estremeço do riso e do alagamento que a cordou para este
presente. Não espera pelo comboio e muito menos pelos sapatos de camurça que um
dito José, antes mote da sua vida, hoje pretérito imperfeito dos seus dias,
cheguem.
E
ele?
Inexorável
na sua paixão passiva de pedagogo viu a sua vida perder o lastro do estável,
para ser mais um entre tantos mil, sem rumo afetivo. Um homem desvaria nos
primeiros dias, mergulha nos subsequentes e vem à tona nos outros que chegam.
Assim foi.
O
ensino absorveu-o mais do que nunca, a solidão que de início o enrolou, no seu
fato já gasto de tempo e hábito, essa solidão, que para o mais incauto é sinal
de maturidade, despojo e até placidez, tornou-se a sua insegurança
insatisfeita. José é um tipo como muitos outros, um inseguro escondido na sua
casca de caracol, tornando-a o seu habitat, aí dormitando, nela congeminando e
dela saindo para as contracenas que o palco lhe estende. Mais um outro
personagem no teatro dos sentires.
E
o José-caracol-professor vai deslizar lenta inexoravelmente por entre as
escolas, essas as musas da sua paixão, ao mesmo tempo que os sapatos de camurça
castanha ficam velhos e a sua bela casca
fica dura até, num dia qualquer ficar vazia…
Chaves,
3 de junho 2022
Maria
Teresa Soares