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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

13 março, 2016

Mulheres Com Rosto



VI
No velho pátio que adorna a cozinha, Berta pára de cegar as couves. Sentada no banco tem no regaço vestido de cinzento, o velho alguidar de barro. As pernas cansadas e balofas estão abertas para fazer o colo ao vaso O rosto redondo descansa num olhar cansado de lides. As mãos gretadas de unhas quebradas, arroxeadas do sabão e das águas dançam lestas o bailado do vai e vem. Uma volta redonda, e mais outra, e outra ainda. Uma dança simples, leve, contudo precisa no seu traçado. Os fios verdes caem no vidrado do barro e cheiro a couve fresca enrola-se nas narinas. Endireita ascostas, olha em frente, murmura algo inteligível e recomeça o seu baile de mãos.
Serve naquela casa já vai para um ror de anos. Não sabe quantos anos tem, dizia-lhe a mãe que nascera no ano da grande festa em Lisboa. Berta cresceu, começou a trabalhar ainda bem pequena. Depois viu os meninos crescerem, partirem, casarem. Viu tanta coisa. S. Gião faz parte dos seus ossos. Noutros tempos era uma casa de risos. Não havia silêncios. Os senhores iam e vinham entre a capital e a casa. As crianças por ali ficavam, pulando os dias. Hoje, Berta abana a cabeça, as sombras tomaram conta do lugar. Dona Mathilde é uma tristeza. O Senhor sempre vermelho de ira. Brada com todos. Anda sempre num desatino. O menino com quem ela andou ao colo perdeu-se entre o Sisandro e o Carvalho. Talvez ao descer a encosta ou ao subi-la. Quem diria que aquele jovem tão alegre, tão amigo das suas gentes se tornaria naquele homem amargo? Quem pensaria que o jovem arroubado de encanto por Dona Mathilde viria a desprezá-la? Aquela casa perdera o sino do bom senso, oh se perdera! Quem o dizia era ela. Os seus olhos já tinham visto muito. Oh se tinham.

Os anos não tinham sido doces para a casa nem para as gentes. Havia um quase prenúncio de desgraça. Ela, Berta de Jesus, sentia-o no ranger dos ossos. A maldita dor que lhe tolhia os gestos. As cruzes que a faziam entortarem de dia para dia. Um calvário constante que a massacrava não só no corpo como na alma. Eram as dores da velhice, diziam, porém Berta sabia que era o sofrimento dos tempos que vivia.
Berta casara com Julião. Casara, não, juntara-se. Que mais dava? O padre também  não lhes dera a bênção. Fizeram o mesmo do que os outros. Tiveram filhos e baptizaram-nos. Fora a única vez que o padre torcera o nariz, mas a Senhora pusera os seus bons ofícios a correr e o Padre Inácio lá botara a água benta na moleirinha dos ganapos. Cresceram, fizeram-se gente, arranjaram bons homens e mulheres, trabalhadoras como companheiros e partiram. Todos, menos a Rosa. Fora a mais fraquinha, doentinha, assim quase meia atoleimada. Uns dias estava com o prumo certo, noutros, Jesus, a coisa andava num desinço que até fervia a alma. Muitos cuidados lhe dera a rapariga. Sempre assim num ora que vai, ora que vem. Apareceu-lhe prenha, ainda hoje não sabe quem foi o estafermo. Mas Santo Deus, o que é que se esperava. Coisas da vida. A Rosa também tinha as suas quenturas e prontos. Nasceu Julião. O rapaz não saíra à mãe, na Senhor. Era fino como um raio e de resposta afiada. Devia ter puxado ao tratante do pai. E não é que até lia? Ela nem gostava que os outros soubessem. Havia coisas que a gente não devia dizer. Podiam trazer desgraça. Berta tinha visto e ouvido tanto, que o melhor era mesmo ouvir e calar, pois que se Deus Nosso Senhor tinha dado dois ouvidos e só uma boca, Ele na sua sabedoria lá sabia o que fazia. Mas o seu Julião, afinal era quase seu, fora ela que lhe limpara os cueiros e o criara. Coitada da sua Rosa que à medida que o rapaz se fazia gente, atoleimava-secada vez mais. Quanto ao Julião andava meio enviesado. Não falava, mastigava as respostas, cuspia palavrões, trincava o sorriso e bolçava rancor. Não sabia o que se passava. Dera em sair à noite. O rapaz ainda ia nos quinze anos, espigados, era verdade, porém já se julgava um homem. Berta já antevia sarilhos. Cheirava-os, pressentia-os. Chiavam-lhe nos ossos. O seu Julião ia arranjá-los, uma certeza que lhe roía o corpo.
Poisa o alguidar no chão deitando o olhar para o vazio do pátio. As sombras da noite já dançam por entre as vinhas do outro lado. Chegam-lhe aos ouvidos sons de vozes. Não consegue distinguir o que dizem. Os anos roubaram-lhe o ouvido. Espreita por entre as telhas do beiral e apercebe-se da hora. Daqui a um bocado é hora da ceia. Vêem dos campos. São as vozes que caminham para ali. Há que despachar.
VII

Maria da Nazareth olha espantada para aquela coisa que está ali nas mãos da ama. Mexe-se e grita. Guincha. Dizem-lhe que é a irmã. Que tem uma irmã. Não acha lá muita graça. Mas Zinha não pergunta, para quê? Já sabe de antemão que vão entretê-la com parvoíces. Como se ela acreditasse nas coisas que lhe impingem. Basta olhar em redor, para a gente da casa, para quem gira por dentro e, quem anda por fora, para aprender muita coisa, aquilo que não se fala.
Olha para o embrulho de lã que baixam à sua altura. Vê uma coisa vermelha de punhos fechados. Olha-a bem e ,de repente o embrulho esboça um trejeito, chamam-lhe sorriso naquela boca escancarada de dentes.. A velha ama fica estarrecida e titubeia:
-Ai menina, ai minha rica menina, que esta criaturinha está a rir para si!
A ama, rapidamente, voltou a tapar o novelo e recolheu-se ao quarto.
Zinha dá meia volta, olha o para os pés unindo simultaneamente as pontas dos sapatos num triângulo e, depois com um salto bate-os um contra o outro. Fica direita, estática. Rebola a cabeça num carrossel de ideias, ergue os braços para um sítio que só ela sabe. Toma a direcção da cozinha., contudo já a meio, dá meia volta e corre para o outro lado da casa, cruzando a sala e o corredor numa correria ruidosa. Pára ofegante na porta alta de madeira creme no fim do corredor. Bate timidamente. Nada. Bate de novo.
Escuta a voz melodiosa da mãe:
- Entre.
Estremece.Está zangada. Sente-se roubada. Tem vontade de dar meia volta e fugir dali. Rosada de rebeldia, abre a porta entrando no quarto. Na cama, semi-deitada, está a mãe. Os longos cabelos cor de avelã chispam as centelhas da tarde. Branca, e com um ar cansada mas sempre sorridente, a mãe olha-a. Sente-se mais pequena ainda. O olhar da mãe sempre a perturbou. Lia-a em todas as linhas do seu livro de vida. Não valia a pena rasurar ou apagar A mãe já tinha lido. E uma vez mais a mãe lera.
-Sim, Zinha é a tua irmã. Não é perfeita? Pareces tu. Eras assim.
- Eu?
Sim minha querida, também já foste assim. Olha, senta-te aqui ao pé de mim.
O convite inundou-a. Tanto que, delicadamente aproximou-se e sentou-se devagarinho encostando-se ao corpo macio. Estava ali o seu princípio. Sentiu. A fúria soltou-se, evaporou-se.
Não falou, não se mexeu. Deixou-se embalar pelo cheiro da mãe, pelo calor do corpo, pela penumbra do quarto, pelo momento.
Não sabe quanto tempo esteve ali. Sobressaltou-se com a voz do pai que perguntava:
- O que faz a pequena aqui? Onde está a Berta. Que venha buscá-la.Minha querida tem que descansar. Está com um ar cansado. Tantos pequenos por aqui. Vá menina levante-se, deixe a sua mãe.
Espera um pouco. O calor percorre-a. O instante foi-se. Levanta-se.
O pai está de pé junto da cama. Pega nas mãos brancas e leves da mãe. Olham-se. Ela sai. Não se aperceberam. O mundo deteve-se ali. O deles.
Uma sensação esquisita inunda-a. Sente-se a mais. Como se fora uma haste fora do sitio do tronco que são os pais. Mergulhada nestes pensamentos, encosta-se a uma parede do corredor, deixando-se escorregar até ficar de cócoras. Ali fica. Não se ouve vivalma. Parece-lhe que o mundo parou. Está do outro lado, onde o nada é o todo.
As paredes brancas reflectem o amarelo do sol. Na mesa a toalha alva adorna-se de pratos e copos. Há flores nas jarras. As pratas reluzem. A grande sala de tábuas corridas e janelas levantadas enche-se de sorrisos e conversas ligeiras. Gestos doces de uma manhã de baptizado. Maria de Santo António já é uma alma cristã. 
O cheiro a canja, misto de gordura quente e carne, espalha-se pela sala à medida que as terrinas chegam.
Maria de Santo António faz a sua entrada triunfal. Nos braços da velha Berta bem engomada e brunida. No alto do carrapito cinzento e branco a touca dança-lhe ao sabor dos passos seguros.
-A nossa menina!
Rápida D. Luísa, a madrinha, ergue-se e toma-a entre os seus braços. Embala-a suavemente. Olha-a. Um botão de rosa feito gente. É isso. A menina é perfeita e linda. – Maria esta criança é linda! -diz
- Obrigada, minha amiga.
Dona Luísa percorre o espaço da mesa para a janela. Afasta o xaile e Maria de Santo António resplende no seu branco. Um botão-flor. A luz de Setembro inunda-lhe as feições, um instante glorioso de luz e vida. Dona Luísa profetiza:
 -Vais ser uma beleza.
Ao som das palavras a pequena esboça um trejeito, um quase sorriso que lhe levanta deliciosamente as comissuras dos lábios.
-Oh, oh, Santo Deus, a menina está a sorrir.
Dona Luísa fica perplexa. Olha-a, ergue-a, avalia-a e rende-se ao encanto daqueles dez vinténs de gente. Momentos liquefeitos de amor.
Depois recompõe-se Olha em redor. Chama a velha Berta com um simples olhar e entrega a preciosa carga. Suspira.
A tarde diluiu-se entre o assado, o arroz-doce, o vinho, as castas de entre vinhas sempre apaladaram as conversas e amaciaram as vontades entorpecendo os sentidos.
O entardecer chegou. Logo se acenaram as despedidas, os beijos, os obrigados e os convites para próximas soirées. O deleite da companhia no encanto daquela família.
Quando o último partiu, Caetano cambaleando sentou-se descaído no velho canapé de palhinha, desapertou o colarinho engomado, desabotoou o colete.
O remanso da noite e da casa envolveram-no. No pensamento meio enublado de cansaço e vapores etílicos, o mau estar que o vem tomando fá-lo fechar os olhos, e deixar-se ficar naquela modorra que rapidamente o conduz ao sono. Queda-se ali Uma mão engelhada cobre-o de uma manta, ajeita-lhe a cabeça sobre uma travesseira doce e sai de mansinho tal como de mansinho entrara e se ajoelhara.
Do outro lado, na dobra do corredor, a cozinha ainda respira os cheiros do dia. Sentadas em redor da mesa, Berta, Lela e Rosa conversam o dia. Os vestidos das senhoras, os sorrisos malandros dos senhores, as correrias dos rebentos. O baptizado, enfim. Um dia para recordar. Naquele dia a alegria tinha dançado na casa.
Os homens vestidos nos seus jalecos domingueiros continuam de copito na mão num jogo entaramelado de vozes, a recordar uma melopeia de agudos e graves em carrossel de feira.
Alguns levantam-se cambaleantes dizendo:
- Uma última saúde á menina!
Os caixotes arrastam-se na medida perfeita das botas. De novo os copos mascaram-se de tinto e levantam-se unidos.
 -Á saúde! - Exclamam
O silêncio vai-se deitando com a noite já quase abotoada no lençol das estrelas.
Amanhã será outro dia.
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08 março, 2016

Mulheres com rosto



IV
- Ó menina, por amor de Deus venha para dentro, se a senhora sua mãe a vê nesses preparos inda se zanga.
-.......
 -Menina, menina, não me ouve? Ponha um chapéu ao menos.
E Lela enrola a ponta do avental meio sujo num triângulo por ser, desata o velho chapéu de palha dirigindo-se para o outro canto do pátio, onde Zinha se debruça sobre não se sabe bem o quê.
- Não me ouviu? Vá lá, ponha isto na cabeça. Já viu o sol? Ai se a sua mãezinha a vê. Porque é que não descansa como toda a gente da casa?
- Já sabes que não gosto!
- Pois isso… E entre dentes vai dizendo para si: “Ai se fosse minha filha…” porém responde:
-Ai a menina Zinha não devia estar aqui, é isso que lhe digo, vá para dentro que este sol não é para andar cá por fora. Mais a mais uma menina da casa.
- E depois? Ó Lela eu não quero descansar., que coisa.
-Mas não precisa, vá para dentro, com tanta coisa bonita lá dentro, pra qé qanda cá fora, neste calor e neste sol. Ainda fica com algum mal de cabeça…oiça o qu’eu lhe digo. Vá por mim.
- Já disse que não vou.
-Prontos, prontos. Então venha pró pé de mim. Ali prá sombrinha. Estou a debulhar o feijão. Sempre vê.
- Ó Lela, eu também vou debulhar.
-Ai, p’la sua santa saudinha.’ Teja queda. Senão inda oiço das grossas. Isso é lá coisa prá menina!
-Ora ninguém vê…
-Vejo eu...e. ós depois….Valha Deus, atão na querem lá vere…Na…na…
-Já disse, eu também vou debulhar!
-Ai que danadinha… ai, ai… tá bem, na há vivalma. Mas logo que comece a bulir a menina sai daqui. Oiça bem o qu’eu lhe digo. Na quero ouvir sermão, percebeu menina? Cada um no sê lugar, é assim cá prá gente.
- Está bem Lela, está bem. Cala-te que ninguém vai saber. Estão todos a descansar. É a sesta.
-Seja, atão venha lá e na suje essas mãozinhas, veja só…
-Eu também quero debulhar.
- Ora, ora, isto só a mim, c’os diabos…! Valha-me Sto Antoninho…
- Escusas de estar para aí a resmungar. Não vale a pena. Deixa-me sentar ao pé de ti.
A velha Lela escuta aquelas palavras vestidas não sabe bem de que doce e o coração logo lhe amolece. A rabugice anterior dá lugar a um sorriso amplo e desdentado mas tão rico de ternura que tudo mais se esquece. Zinha dá-lhe a mão assim suavemente. Aquele momento de ternura fugaz depressa se solta.
 O silêncio senta-se entre elas. Para quê palavras, se já tudo foi percebido? A velha e a criança. Dois mundos, dois tempos duas vidas.
V
Do lado poente uma porta abre-se. No varandim um homem debruça-se. Quem o olha, apercebe um olhar cansado, melhor entediado. O tédio aliás reveste-lhe o semblante. Um todo cromático de castanhos como se fora já uma sépia mas viva. Castanho e bege. Caetano expele uma baforada logo os dedos esguios e alvos seguram a cigarrilha com a displicência de um hábito corriqueiro. A outra mão ergue-se cofiando o bigode quase loiro senão fossem as sombras castanhas. Semi-cerra o olhar azul e entra na penumbra do escritório. Uma grafonola debita os sons arrastados de Rigoletto. O tom plangente do melodrama fá-lo sorrir levemente nas comissuras de uns lábios cheios. Senta-se na velha poltrona. De novo a cigarrilha e o fumo que se eleva em elipses abertas. O silêncio forra o lugar. O pesado veludo isola os sons exteriores. Ali a vida é um segmento. Porém a sépia de Caetano estende-se entre os vultos de sombras. Alimenta o seu espírito e despe a mente. É ali que tudo começa.
1848
José  faz estalar os suspensórios naquele jeito altivo. Olha em redor. Sete cabeças olham-no sem pestanejar. Azeviche e ouro. Sãos os sete filhos. Bela prole. Esperam que se sente para começarem a almoçar. Mathilde já sentada olha vagamente para os filhos. Matilde está sempre ausente. A sua mulher vive noutro mundo. Enfim. Ele não. Ele é presente. É o senhor do seu espaço, da sua casa, das suas terras. Ele manda, os outros obedecem Seguro decide sem titubear Sabe exactamente o que quer. Sempre soube. Não existem franjas de dúvidas no seu dia-a-dia. Logo a indecisão de Matilde sobre os assuntos mais comezinhos quase o enlouquece. Epiphânio gere, dirige, manda e domina a casa grande. Temem-no, sabe-o. Os criados andam ligeiros à sua frente, não levantam os olhos. O gozo do mando. Não lhe passa pela mente que por detrás existe um ódio visceral. Está-se borrifando. Por ora e enquanto puder, Epiphânio é, e será, o senhor. Depois são gentinha sem rei nem roque. Só trabalham quando lhes mandam. Só produzem quando se anda em cima deles. Não pensam, obedecem. Para Epiphânio o trabalho é algo sagrado mas desde que seja ele a mandar. Vem-lhe da terra, que ele venera, esse poder sólido e agreste. É nos campos húmidos ou secos que sorve a força do seu corpo.
Junto à entrada do seu casal existe, um velho carvalho, secular, robusto, guarda fiel do tempo. Para quem chega é o símbolo da casa, do carácter da gente. O carvalho frondoso e altivo. A terra e o espírito. Uma inquietação perene. O carvalho de S. Gião possuía um tronco curto mas tão musculado que infundia protecção e sobretudo respeito. Naquelas tardes vazias de verão, a sua sombra mitigava a canícula e embebedava o espírito. A sua copa era verde como os olhos das mulheres. As folhas dançavam suavemente numa brisa soprada de carícia. E as mulheres da casa largavam os seus recantos e sentavam-se sob o carvalho. Os que vinham de fora, também paravam sob os seus ramos antes de tocarem a sineta.
Quando se dobrava a esquina e se vislumbrava o velho carvalho sentia-se a alma da casa e então dizia-se: “Chegámos”! E assim foi durante quase dois séculos.
Depois um dia, a gente partiu, todavia o carvalho ficou, e ainda hoje a sua copa acena a quem passa.
Epiphânio senta-se no topo da mesa. Deliberadamente olha em redor de forma cáustica. Sentir o temor da prole é quase o preliminar da refeição cujo cheiro já lhe palpita nas narinas. Vem da cozinha mesmo no fundo do corredor. O cheiro da sopa alaga-lhe o estômago e amacia-lhe os sentidos. Humedece. Pigarreia.
– Rita, minha filha, porque é que não foi receber a minha bênção esta manhã?
-Meu Pai fiquei com a Senhora minha mãe que se sentia indisposta.
- Ah!
Olha demoradamente para Mathilde no topo da mesa, perscruta-lhe e olhar e pergunta-lhe?
- Como vai, minha amiga?
Mathilde pálida e ausente rebola o olhar até o fixar em Epiphânio. Não percebeu directamente a pergunta. Aliás nunca o entendeu muito bem. Tartamudeia umas sílabas que soam:
- Bem, estou melhor.
Mergulha a sua atenção na parede. Naquela que se ergue mesmo defronte, e onde uma porta aberta deixa antever uma pequena salinha. O seu olhar poisa algures no vazio. Sente-se escorada. As paredes ausentes devolvem-lhe a segurança ao espírito errante. Ao redor os filhos olham-na. Caritas ausentes de calor materno e acanhadas na rispidez paterna. Olhares claros e escuros semi-obscuros de amor. Todos os dias a cena repete-se. Logo, logo, o pai vai-se levantar, retirar-se, a mãe vai sorrir meio aérea, em seguida, num gesto lento e dorido, levantará a campainha de prata. A fiel Bina virá, pegará nos mais novos que no meio de risadas e afagos deixarão a sala. Mathilde sorrirá lentamente depois com gesto senhoril, pegará na saia que flutuará em redor do seu corpo como se fora uma copa em murmúrio de vento. Eles, os mais velhos, irão escapulir-se acendendo os seus recantos, irão correr por aqui e ali, irão gastar o tempo dos dias, a noite virá, o dia irá acordar de novo, e assim sucessivamente na memória da casa.
Caetano, o quinto na prole de oito, o varão pese as três primeiras, pois que António e, o segundo, falecera, e Maria a terceira também, é sobre quem recai mais a atenção do pai. Questão de varonia. Caetano é um belo rapaz. Da mãe herdou a beleza bem como o carácter. Vive acordado dormindo no mundo por chegar. Detesta a força do pai, o amor à terra, o cheiro dos tonéis, a força do vento e o cheiro do estrume. Caetano é São Gião mas em aguarela. Caetano adora os livros, a música, os passeios. Caetano ama as coisas belas e detesta a verdade da vida. Caetano é um solitário. As irmãs, Rita, e Carolina estranham-no, porém respeitam-no. Não possui laços, um solitário. Os mais novos, são ainda crianças.
Caetano olha de soslaio para a mãe. Uma criatura nua de amor. Tudo nela rescende a vazio. Não há vida. Somente a forma. Lamenta-a. Passar pela vida assim. Raramente a vê sorrir, sempre marmórea. Até o toque é gelado. Um ser glauco. As crianças sorriem-lhe de fugida, o pai olha-a como ser menor. Ele que é tão dominador, tão imponente, dá-lhe pouco mérito. Pensa.
As criadas obedecem-lhe todavia murmuram e dão risadas nas costas. Ele tem visto e ouvido enquanto cresce. Sempre tudo igual. A mãe só tem vida quando os padrinhos vêm almoçar ou seroar, quando vão até à vila e os visitam. Aí a mãe veste a vida. O rosto adquire cor o sorriso vida e o olhar é firme e cintilante. Depois, quando a cena se esvai ela retira-se de novo para o seu mundo que não compartilha. Matilde é mais uma sombra da casa. S. Gião tem tantas sombras, tantas coisas por dizer. Ninguém ousou escutá-las, no entanto elas giram em torno. Caetano por vezes tem a percepção nítida que elas se adensam. Mas cala-se. Há coisas que não se falam, pensam-se.
Já cá fora espreita a tarde com a indiferença das horas por vir. Aspira a secura do tempo. Depois senta-se sob o velho carvalho. Olha em redor. Nada, nem vivalma. Tudo dorme. Sons dispersos dos animais, dos moços que labutam aqui e ali, das lides das mulheres, do campo, da tarde Apoia os cotovelos na mesa de pedra. Enfia o rosto entre as mãos e divaga. Ah, como gostava de ter estado ali mesmo em 1807.A mente povoa-se de homens, de feitos, de S. Gião no coração dos episódios. E ele por nascer. As sensações empapam-no. O alheamento à realidade come-o. Caetano é um fuso numa roca quebrada.
- Menino, Menino Caetano… menino.
Uma mão pisa na sua cabeça. Levanta o olhar. Perde-se no miolo macio do ontem. A imaginação arrebata-o para feitos por acontecer, para glórias perdidas. Os factos romanceiam-se numa mente ávida de fronteiras que não as de vinhas, riachos e lavoura. Caetano repele a terra tal da mesma forma que o pai a ama. O sentimento de ambos tem a mesma força. São diametralmente opostos. A força do pai agasta-o. A sua voz forte, imperiosa, o seu desdém pelos sentimentos. Tudo nele o afasta. Todavia os outros respeitam-no. Ele teme-o. O seu padrinho Caetano de Gibraltar, seu homónimo deveria ser seu pai. Como é bom ouvi-lo. Na casa de Gibraltar os silêncios dormem pouco. A tia Paula e os primos sorriem. A casa é feliz.
Ali em S. Gião as sombras impedem que se respire. Suspira-se muito ou cala-se.
- Menino, menino…menino Caetano.
A voz chega-lhe agora nítida. Está mesmo ali ao lado. Tão nítida que quase o sobressalta. Levanta o olhar. O velho Julião sorri-lhe com jeito preocupado.
- O que há Julião?
- O seu pai… está a chamá-lo há um ror de tempo e…
 - Sim?
-O menino já sabe…vem tempestade por aí, vem, vem…
- Está bem, está bem… já vou.
Caetano ergue-se do tronco de madeira que serve de banco sob o velho carvalho. Sorri contrafeito. O velho Julião de cujo rosto escuro de sóis e enrugado do anos, de boca desdentada, lábios engolidos, sorri-lhe meigamente. Os olhinhos escuros e tolhidos do tempo parecem ampará-lo. O braço descarnado de veias salientes afaga-lhe a cabeça e empurra-o em direcção a casa.
 -Vá, menino, vá lá… senão …
Caetano contrafeito toma o caminho da casa. Entra pela porta de trás. A do pátio da cozinha. As vozes cantantes das mulheres no seu contínuo cacarejar esvaem-se à sua entrada. Baixam a cabeça e enrolam os ombros. Dá-lhes a saudação. Vê a mirada das raparigas e olhar afectuoso das mais velhas. Rápido cruza o pátio e entra na cozinha. Está fresca. Um arrepio percorre-o. Prenúncio de que está para chegar. Os velhos degraus de madeira que o conduzem ao primeiro andar rangem sob os pés. Sobe-os pausadamente. Não há alvoroço, antes um demorar deliberado. Os encontros com o pai são sempre dolorosos. Ele ouve, o pai fala. Ele ouve. O pai vocifera. Ele escuta. O pai ameaça. Ele silencia. É assim sempre. O vermelho das faces casa-se com o fulgor dos olhos, porém os lábios mantêm-se unidos. Não responde, não fala. Espera que o pai o despeça.
- Rico filho! Um calaceiro. Anda pelos cantos em vez de ir comigo ver os homens. Só pensa em disparates. Não vou tolerar que seja igual a sua Mãe. Fique ciente. Amanhã vai levantar-se com os homens e vai para o campo. Vai aprender. A madraçaria só traz vícios e por casa já me chegam. Hei-de fazer de si um Homem ou não me chame Epiphânio! Pode sair!
Caetano abate-se na sua altura. O olhar emite um fulgor porém tem o cuidado de o baixar e numa voz meio imperceptível murmura:
-Com a sua licença meu pai.
Já cá fora Caetano respira fundo. Enfia as mãos nos bolsos e dando meia volta entra no seu quarto. Atira-se para cima da cama, atira com o boné que enrodilhava nas mãos para o ar e cerra os punhos. Como odeia o pai, como odeia a casa, como odeia tudo!
-Um dia hei-de ser feliz! Exclama

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06 março, 2016

Mulheres com rosto



III
Sob as árvores, na sombra macia da tarde, os jornaleiros saboreiam a sonolência da hora. Daqui a pouco regressam à sua labuta. Um passarito vagueia de uma árvore para outra. -Se ficasse quedo, pensa Júlio, um dos moços da jorna, talvez ele pregasse olho. Bem o queria. Uma noite em branco. Agora todas são assim. O velho, o avô, passa a noite numa urticária de sons. A avó resmunga toda a noite num ressonar de silvos depois lá pelas três da matina levanta-se, anda num desinço de um lado para outro. Nunca percebeu porque é que aquela Santa alma tem que começar a bulir de madrugada. A casa é vazia de quase tudo menos de eco. No quarto o avô resfolga o calor da enxerga madrugada fora enquanto ele, que dorme do outro lado da divisória, uma chita roçada de vermelho num azul desbotado de luz., não consegue pregar olho. Depois logo, logo tem que se levantar. Anda quebrado. A espiga de trigo entre os lábios fá-lo mexer os maxilares, que comprime em fúria. Porra de vida a sua! Já vai nos quinze anos e tratam-no como um fedelho, e no entanto trabalha que nem um homem. Senta-se de rompante. As pernas estão flectidas e entreabertas, na mão baloiça a espiga molhada, com a outra tira o boné e coça os cabelos empapados de suor. Olha em frente audaz, e entre dentes jura para si: “Um dia hei-de ser rico! “ Arremessa a haste de trigo com desdém. De um salto levanta o corpo ainda franzino de rapaz. Uma cuspidela nas mãos em concha, uma esfregadela, um ajeitar do boné surrado sobre os cabelos suados cuja cor é puro azeviche, um ajustar da corda que lhe sustém as calças de cotim remendadas em mapa de azuis baços, um arrepanhar a camisa suja que aberta, por falta de botões, deixa ver um peito moreno e ossudo. E ei-lo em pé mastigando o desafio da sua condição.

Um pontapé na pedra, que repousa ali à sua frente, fá-lo praguejar. A bota está rota. Esqueceu-se. O pó que se levantou fá-lo tossicar. Olha em redor. Não vê vivalma. Já regressaram. Lesto dirige-se para o campo do outro lado. Tem que atravessar a ribeira. Para chegar aos campos de trigo. Hoje andam na ceifa. Júlio estuga o passo. A jorna espera-o. Há que labutar para sobreviver. A pobreza é a única porta da sua casa. Conhece-a desde que se enxerga. As contas do rosário feitas do pão duro e vazio de gosto. Comer o caldo aguado que engana o estômago, vestir os trapos de anos ou as roupas já bem usadas que a caridade dos senhores oferece, crescer na rusticidade dos gestos e das palavras capeados pela feiura dos traços fechados. Ser sempre o filho do Zé da Horta ou da Lela do Carrapito. Não ser o Júlio Antunes, Rego ou algo assim. Ter o estigma da diferença desde que a mãe ficou prenha, ser sempre o rapaz e não o menino “Ah, mas um dia vou ser rico!”- Grunhe para si fechando os punhos –“ Vou ser rico!” A boca enche-se de saliva quente, e num gesto altaneiro cospe-a. Comprime os lábios trincando o desejo guloso e parte.
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29 fevereiro, 2016

Mulheres com Rosto



Mulheres com Rosto
I
Maria da Nazareth senta-se na velha poltrona. Silenciosamente move os olhos para a janela. O olhar esbarra nas cortinas que volteiam docemente. Meia janela aberta. Uma brisa, um sopro de vento inunda-lhe o rosto. A velha senhora remexe-se, perscruta o exterior, encosta a cabeça na orelha na poltrona, fecha os olhos e deixa-se transportar pelo tempo murmurando:
-Tanta vida, tanto tempo, tanta dor.
…………………….
O sumo da maçã escorre-lhe pelas comissuras enquanto trinca metodicamente. Levanta a mão esquerda, e com as costas, limpa os lábios. Na direita, a maçã vermelha presa entre o indicador e o polegar, brilha branca e suculenta. Tem nove anos. Verdes e frescos como o vestidinho de nervuras que lhe cobre o corpito roliço.
No olhar verde-água há determinação. Uma centelha de fulgor. Rebola a cabeça na direção da brisa. A cada trinca o sumo escorre pelo queixo. Boa maçã. Ácida e carnuda. No peitilho de vestido, o verde das nervuras orvalha-se. Saliva e sumo. Hábil revira a maçã, outra trincadela, uma mastigadela e um suspiro. Os caracóis loiros dançam no movimento dos maxilares. Maria e a maçã. Atira o caroço pelos ares. Depois espreita faceira, se alguém viu, ou melhor, se alguém levou com o objecto, e não ouvindo resmungos entra em casa.
A penumbra cobre o corredor de paredes altas. O soalho de tábuas já gastas mas bem polidas chia no cheiro de cera. Não se ouve vivalma. Devem estar a dormir. São três da tarde. O dia é de calor. Agosto. A casa grande descansa. Aborrecida salta de tábua em tábua num pé-coxinho de menina. Um, dois, três e quatro. Um e dois, três e quatro. Assim até á porta que dá para o salão. Estaca à entrada e franze o nariz num trejeito muito seu. Aquele quadro mesmo em cima do cadeirão de palhinha irrita-a. Diz a mãe que é de sua Alteza Real, o príncipe D. Luís, pois será mas tem cara de emproado. Claro que não o diz em voz alta, aliás cá em casa não se diz nada em voz alta, pelo menos as crianças. E ela é uma delas. Uma irmã, mais três irmãos. Maria Nazareth, Zinha para todos, nem é a mais nova, nem a mais velha, nem a do meio em cinco. É a terceira. Um lugar distraído numa família numerosa. Entre três rapazes ela é a menina. Mas não possui o encanto das primas, e muito menos a sua doçura. Zinha é diferente.
Habituara-se a deslizar, a passar despercebida, a não falar muito e a acenar mais. É bom ser a terceira em tudo. Não tem que manter a compostura forçada de João, o mais velho, nem ter a ponderação trabalhada de Caetano, nem muito menos esconder a estouvadice de José. Zinha, a terceira é simplesmente o vento da casa. Vai e vem.
Gosta daquelas tardes nuas de vozes e vestidas e silêncio. Sente-se crescer porque se ouve. Os seus pensamentos disparam em todos os sentidos. O seu mundo gira por entre os muros altos da quinta, os casais em redor, a quinta dos pavões, a vila ao fundo da estrada no virar choupos, a praia para lá dos vinhedos de S. Gião e as duas vezes que foi à capital.
Maria, a terceira, pára um momento. Recorda a cidade grande. A mãe cheia de sorrisos, de gestos, de braço dado com o pai e em franca tagarelice com a madrinha. Estava feliz, a mãe e como era bela, muito. Demasiado. A mãe que ela adora mas que a faz sentir sempre insignificante, e o pai que a confunde. Há nele o misto de presença ausente. Sente que ele é um pedaço do seu vento. Sempre que pensa nele, estremece. Não sabe porquê. É algo que a percorre como um arrepio. E no entanto, ele afaga-a sorrindo, numa distracção feita de ternura perdida. Um ritual feito de sopros. Gestos conluiados de afecto e pudor. O pai que os olha aos quatro como se penitenciasse, mergulhando de imediato o olhar no lago profundo da mãe. Por vezes pensa que eles não são dois, mas um. Sempre juntos, sempre rindo entre eles, sempre partindo e chegando. Não sabe onde vão e porque vão. Mas também não se importa, o seu mundo está do outro lado da porta. Quando desce os degraus e pisa a terra abrindo os braços ou simplesmente baloiçando as saias sob o bibe, sente a brisa vinda do mar e o calor dos campos.
II
A porta do varandim que dá sobre o lado sul do jardim mantém-se fechada., os cortinados porém estão ligeiramente afastados. No recanto, entre a penumbra da parede e a luz da janela, senta-se uma mulher. Na escrivaninha pequenos papéis, que ela, deliberadamente, vai debitando no livro de capa castanha. Figura fremente de contornos graciosos, a mulher nos seus trinta e picos anos revela -se num rosto de linhas macias e púberes. O olhar fixa-se algures entre as páginas e o espaço mais além. Lentamente, passa os dedos esguios pelos cabelos de avelã enrolados numa magnífica trança ao alto. Quem a vê de costas hipnotiza-se pela linha altiva do pescoço, pelos ombros direitos porém graciosos. O tronco reflecte-se. O pescoço inclina-se para o lado direito num movimento que a mão estabelece ao escrever. Pára por momentos. Relê o que escrevera. Suspira.
Sopra suavemente, depois assenta o mata-borrão rosa. Levanta-o cuidadosamente. Na página, a letra dançante aponta, inexorável, as despesas. Olha os algarismos, mira-os com a dureza de quem lhe desventra o presente. Não é fácil governar a sua casa. A sua mão de ferro estende-se pelo casario fora, todavia é impotente perante os desvarios de Caetano.
Suspira de novo.
Maria P. fecha com força o livro de capa castanha. Abre uma gaveta e coloca-o no seu interior. Estende o braço para o lado esquerdo, abre igualmente uma gavetinha retirando um livro, desta vez almofadado, e de capa grená. Abre-o docemente. Puxa um pouco a cadeira para trás e sorrindo relê as suas últimas anotações
A sua ida a Lisboa. Ela e Caetano. Foram uns dias extraordinários. Sentem-se felizes quando estão sós sem os filhos, sem as questões menores do dia-a-dia, só os dois. Saltitando entre o teatro e as compras. O passeio na avenida, os encontros, as novidades. Vive. Ah, como ela se sente reviver. Os velhos tempos. A sua infância, a sua mocidade. Depois, depois… o amor, o desmoronar, o reconstruir, o amor… é quase feliz, quase…a família que a apagou. Já se têm cruzado. Não baixa os olhos. Nunca!
Os filhos. Deve pensar neles. Tem tempo. São ainda crianças. João tem onze quase doze. É voluntarioso, firme e duro. Não é fácil o seu primogénito. Depois Caetano nos seus dez anos, um rapaz muito sensato, muito calmo. Caetano deveria ser o mais velho. Maria da Nazaré vem a seguir, uma menina bonita mas muito solitária. Vagueia pela quinta numa ânsia de liberdade que a assusta. Não brinca como as outras meninas da sua idade. Lê, lê em excesso, mas Caetano permite-lhe as extravagâncias. Zinha preocupa-a. E o seu benjamim, o seu menino, José. O mais doce dos seus filhos. Tem só três anos mas é o seu derriço. José é o mais amado de todos eles. Tem o porte aristocrático, o olhar enorme dos olhos negros e o sol nos cabelos que lhe caem em cachos. É lindo o seu filhinho. Caetano costuma dizer-lhe que José é o seu maior rival.
Conheceram-se. Ela tinha dezasseis anos e ele vinte e três Durante sete anos amaram-se entre os vinhedos com o Sisandro a dividi-los. Até que o escândalo rebentou. Maria foi banida e Caetano aceitou-a. Tomou-a como sua legítima mulher. Afinal já o era há tanto tempo. Mas sem norma. A norma vestiu-os finalmente, todavia a fome que os devorava continuou. Há catorze anos que se amam. Loucos e vorazes. Famintos um do outro. Aquela fome que nunca se sacia. Não percebe o que os conduz, o que os envolve. Algo de inexoravelmente poderoso. Uma força, uma ânsia. Alimentam-se por momentos e logo, logo tudo volta ao principio tal como há catorze anos. Ela sabe, ele sabe, que só se completam quando mergulham um no outro, quando se sentem e respiram num só. A sua vontade, a vontade dele perdem-se algures entre o desejo e o êxtase. Os seus corpos são a matéria que os une. Os seus corpos são as conchas onde bebem o líquido da vida. São felizes. Tanto que magoa. Os outros, os outros que desconhecem o seu deslumbramento., não percebem aquela cumplicidade, aquela dependência, aquela unicidade. Acham-nos quase excêntricos. Ah! Ah! Ah! Ri Maria. A ignorância é mãe de muitas palavras.
Por vezes sente uma pequena aguilhoada estremecê-la. Os seus filhos. Os seus. Sabe que para Caetano eles existem porque saíram dela. Caetano é o amante, não o pai. Olha os filhos como ramos acidentais, consequência inevitável do amor que os absorve. Todavia, ela sabe que a seu modo os acarinha, que se sente contente por eles existirem mas não admite que os filhos interfiram na sua vida. Nas suas vidas. Na dos dois e na dele, sobretudo. Todo o resto lhe é quase indiferente. Passa pela vida aflorando os dias. Caetano é um sedutor. Seduz pelo prazer da sedução, porém logo se cansa. Apenas ela não o aborrece, antes o espicaça. Maria sabe-o e sorri. Sorri de prazer e de vitória. O seu poder de mulher fá-la desabrochar em cada verão de S. Gião.
Já em pé afasta a cortina rendada e observa os campos que se estendem à sua frente. As cores magoam os sentidos. Nem vivalma.
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23 dezembro, 2015



. .Porque vindo de não sei onde chega o cheiro de Natal, porque é tempo de corações mais de rabanadas, porque o vazio dos dias se vai aquecendo nas horas feitas de amor, porque as memórias são de canela envolta em açúcar doirado, porque nos aspargimos no calor da Boa Vontade ,porque todos somos à nossa maneira Reis Magos da Vida. Um Feliz Natal para todos vós e Um 2016 cheio de coisas boas.

08 dezembro, 2015

Poema de Natal
Vinicius de Moraes

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

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30 novembro, 2015

Quem Pensa, Ri

Quem raciocina com intensidade e violência tem que expressar com descongestionamento. Rir não é não ter razão. Não há relação entre a solenidade e a verdade. Deixemos a seriedade aos que têm ideais em que perdem tempo e jeito. Pensemos, e acabemos de pensar com uma gargalhada.
A dor do mundo é grande? Talvez seja. Como não há metro para ela, não sabemos. Mas, ainda que seja grande, curar-se-á aumentando-a com a nossa?
Pensa a sério mas não com sério. Pensa profundamente, mas não às escuras. Quer fortemente, mas não com as sobrancelhas.
Sinceros? Quantos gramas de verdade é que a vossa sinceridade pesa?
Quem pensa, ri; só não ri quem só faz cara que pensa.
Ri, bruto!

Fernando Pessoa, 'Inéditos'
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