III
Sob
as árvores, na sombra macia da tarde, os jornaleiros saboreiam a sonolência da
hora. Daqui a pouco regressam à sua labuta. Um passarito vagueia de uma árvore
para outra. -Se ficasse quedo, pensa Júlio, um dos moços da jorna, talvez ele
pregasse olho. Bem o queria. Uma noite em branco. Agora todas são assim. O
velho, o avô, passa a noite numa urticária de sons. A avó resmunga toda a noite
num ressonar de silvos depois lá pelas três da matina levanta-se, anda num
desinço de um lado para outro. Nunca percebeu porque é que aquela Santa alma
tem que começar a bulir de madrugada. A casa é vazia de quase tudo menos de
eco. No quarto o avô resfolga o calor da enxerga madrugada fora enquanto ele,
que dorme do outro lado da divisória, uma chita roçada de vermelho num azul
desbotado de luz., não consegue pregar olho. Depois logo, logo tem que se
levantar. Anda quebrado. A espiga de trigo entre os lábios fá-lo mexer os
maxilares, que comprime em fúria. Porra de vida a sua! Já vai nos quinze anos e
tratam-no como um fedelho, e no entanto trabalha que nem um homem. Senta-se de
rompante. As pernas estão flectidas e entreabertas, na mão baloiça a espiga
molhada, com a outra tira o boné e coça os cabelos empapados de suor. Olha em
frente audaz, e entre dentes jura para si: “Um dia hei-de ser rico! “ Arremessa
a haste de trigo com desdém. De um salto levanta o corpo ainda franzino de
rapaz. Uma cuspidela nas mãos em concha, uma esfregadela, um ajeitar do boné
surrado sobre os cabelos suados cuja cor é puro azeviche, um ajustar da corda
que lhe sustém as calças de cotim remendadas em mapa de azuis baços, um
arrepanhar a camisa suja que aberta, por falta de botões, deixa ver um peito
moreno e ossudo. E ei-lo em pé mastigando o desafio da sua condição.
Um
pontapé na pedra, que repousa ali à sua frente, fá-lo praguejar. A bota está
rota. Esqueceu-se. O pó que se levantou fá-lo tossicar. Olha em redor. Não vê
vivalma. Já regressaram. Lesto dirige-se para o campo do outro lado. Tem que
atravessar a ribeira. Para chegar aos campos de trigo. Hoje andam na ceifa.
Júlio estuga o passo. A jorna espera-o. Há que labutar para sobreviver. A
pobreza é a única porta da sua casa. Conhece-a desde que se enxerga. As contas
do rosário feitas do pão duro e vazio de gosto. Comer o caldo aguado que engana
o estômago, vestir os trapos de anos ou as roupas já bem usadas que a caridade
dos senhores oferece, crescer na rusticidade dos gestos e das palavras capeados
pela feiura dos traços fechados. Ser sempre o filho do Zé da Horta ou da Lela
do Carrapito. Não ser o Júlio Antunes, Rego ou algo assim. Ter o estigma da
diferença desde que a mãe ficou prenha, ser sempre o rapaz e não o menino “Ah,
mas um dia vou ser rico!”- Grunhe para si fechando os punhos –“ Vou ser rico!”
A boca enche-se de saliva quente, e num gesto altaneiro cospe-a. Comprime os
lábios trincando o desejo guloso e parte.
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Um comentário:
Caminhos insondáveis
num belo texto como sempre
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