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"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
Regresso
Emília salta da alcova. O corpo despe-se do calor morno. Os pés pendem encolhidos procurando o chão. Está fresco e húmido. A manhã despediu a noite entre lágrimas. Ergue o busto, abre os braços e sorri ao dia. Enfia os chinelos tortos e corre para a janela. Abre-a de par em par sorvendo manhã.
É hoje! É hoje!
Recorda o tempo vazio de horas, a arma disparar, o sangue jorrar, o corpo dobrar-se, caindo devagar, muito devagar. A morte a entrar.
Aflição.
Nas narinas o cheiro da pólvora, do sangue, da loucura. Uma rodilha fétida de memória. Um nauseabundo sentir que lhe espreita o vómito de raiva.
Lino e o Pai
Lino matara-lhe o pai. Viera buscar o dinheiro da venda do olival. O Lino tinha-o usado para a compra do tractor. Fora numa aflição. O pai vai daí, chamou-lhe ladrão, filho de uma cabra e outras coisas que nem quer lembrar. Disse-lhe que ele não passava de um corno. Que ele sabia do que falava. Que ele fora o primeiro.
Um nojo.
Já não bastava o que lhe fizera e que a mãe calara. Agora vomitar o gozo na cara do seu Lino. Ele não aguentou. Foi buscar a caçadeira e pronto. Disparou. O vermelho alastrou na camisa mesmo por cima do baixo-ventre. Ficou paralisada.
E o vermelho a alastrar, o velho a retorcer-se, o vermelho que começava a pingar. A cara que se torcia. Os dentes podres a luzirem., a língua enrolada a taramelar. A saliva a pingar feita baba enrolada. Os olhos enviesados sem brilho. A pele amarela. As mãos de unhas negras agora pintadas de vermelho diluído esborratado pelos dedos. A poça de sangue que lastrava no chão da cozinha. Vermelho sobre vermelho. E o Lino? Largou a arma, segurou o velho e gritou:
- Ai Jesus, o que eu fui fazer?!
Deitou as mãos à cabeça. Sacudiu os ombros, e agarrou o velho. Abanou-o. Mas nada. Ali, assim, de boca aberta e babado. O cheiro que subia, e ela colada à banca da cozinha. Os olhos pregaram-se à cena. Os olhos doíam, a boca secava. As pernas tremiam. Um frio percorreu-a. Depois foi o calvário. Tanto. Fica gelada ao recordar. Gente não presta mesmo. Gente é passagem entre o tempo.
Dez anos!
As portas fecham-se atrás si. Uma maleta vazia, uns euros no bolso, umas calças e um blusão novo., eis Lino Guerra despejado no mundo. Passa a língua pelos lábios ressequidos, coça maquinalmente a cabeça para acordar as ideias. Depois aperta os olhos para o caminho molhado de sol. Pára e despe o blusão. A T-shirt mostra-lhe um tronco robusto. Os passos percorrem o passeio, dobra a esquina, e passa sob a buganvília roxa do muro da penitenciária que se estende rua abaixo. Pensa:
-“Só depois de passar o muro é que chamo um táxi.”
Os pés entortam os passos. Há um quase claudicar. Hesita. As solas mal tocam na calçada como se receassem ocupar o destino. Lino parece forte mas lá no fundo treme, mas não pode mostrar. Parecer sem ser. Percorre o passeio. Olha o céu. Afinal é igual ao do pátio. Não é mais azul. O vento é mais livre. O som. O som é diferente. Causa-lhe entontecimento, uma surdez esparsa. A cabeça ondeia. Uma náusea. A da liberdade. Estuga o passo, está quase no fim. A buganvília ficou para trás mas agora é a tília. O cheiro forte varre-lhe os sentidos. O nariz inspira instintivamente. O cheiro penetra-lhe no cérebro. Varre-lhe as poucas ideias. Deixa-o bêbado, zonzo. Instintivamente bloqueia as narinas. Uma falsa inspiração. Agora pode vomitar todo aquele perfume que o entope. E o muro que não acaba mais as tílias. O som começa a abrir-se. É barulho.
Quer sair dali.
Do outro lado os semáforos piscam o verde. A gente cruza a passadeira e ele, rápido sem sentido aproveita a boleia. A cabeça atraiçoa-o. O olhar traça-lhe o rumo. Deixa-se levar.
Está do outro lado.
O muro da cadeia está do outro lado. Respira fundo. Está livre. Sente-se livre. As ideias clarificam-se. O azul está mais azul e o barulho já não é ruído, é a vida, o que há momentos lhe parecia confuso, aéreo, como se estivesse do outro lado, começa agora fazer sentido. Aqui nesta rua de passeios tortos e gastos, prédios desbotados e roupa nas varandas, a vida espirra. Há tantos anos que não sentia esta aflição quase a rebentar. Ele espirra também. Está aliviado. Ah!
A vida!
Poisa a mala, encosta-a a uma parede descascada de amarelo, coloca-lhe o blusão por cima. Olha os pés. Olha a calçada puída. Raspa os pés no chão. Abre os braços, e sem olhar enceta uma correria. Corre, corre. Sente o suor alagar-lhe as costas, mais o peito, mais o rosto e as mãos. Sente-se cair, sugado, envolto, tragado, mal consegue respirar, torce-se, endireita-se, não consegue. Uma força maior, brutal toma conta dele. Um nó de duas pontas.
A Vida e o Fado.
Se houvesse degraus na terra....
Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.
Herberto Helder
A JAPONESA
Haste de pessegueiro florida e vibrátil. Move-se na doçura do vento e sorri na comissura da neblina. A Japonesa. Yoko. Ondeia-lhe o corpo num movimento subtil de tempo. Parece uma pintura, porém, o agitar de ombros revela uma figura de alma e carne. Os passos breves revelam umas zôri vermelhas e pretas. O quimono é vermelho, longo, pesado, bordado em fios brancos, negros, e cinzentos. É majestoso. Demasiado, talvez, para o franzino corpo que veste. Yoko. Dezassete anos. Cinquenta de compostura, milhares de tradição. Na mão, o leque dança ao compasso do esvoaçar dos pássaros da veste. As asas batem e rebatem num adejar de penas e gestos. Lembram a ave em beiral. Criação redonda de um ninho. Sementeira minúscula de vida.
Levanta-se.
Os pássaros adejam à sua volta. Lenta e graciosamente compõe o quimono. Sorri. Duas pequenas covinhas inundam-lhe o rosto oblíquo. Os olhos amendoados, negros e líquidos perscrutam em redor. Tudo vazio. A ordem reveste o tempo.
A fotografia parou. Yoko solta com violência o pesado quimono. Agita-se, vivifica-se. A energia dos anos estala-lhe nos músculos, e rapidamente atira as zôri para um lado. Está quase nua. A elasticidade do corpo jovem vibra nos movimentos rápidos Quer fugir dali. Quer fugir do mundo desenhado que a sufoca.
Yoko menina-mulher.
Um pássaro em adejo de asas. Um corpo de mulher em casulo de criança.
O passado despido de presente. A tradição rasgada de amanhã.
Veste os jeans, enfia o camisolão. Calça as botas, atira rápida com a massa negra de longos cabelos, pega na bolsa, abre a porta, sai, passa pelo salão acena um adeus, e, de um pulo salta os degraus. Está no jardim. O oásis burilado da casa. Nada fora do sítio. O subjugar da natureza. Belo ao olhar, perfeito no gizar, tremendamente sufocante no palpitar.
Yoko não pertence à casa. Não faz parte do jardim.
Do outro lado da cidade num prédio cinzento de um apartamento descorado, uma janela entreabre-se ao bafo cansado da multidão. Nas paredes gritam as cores que os pincéis soltaram. O vermelho e o amarelo compartem o espaço com o verde e o azul. Em permeio fica o cinzento do espírito. A criação parada em dia roto de inspiração.
Ken-ichi rebola o corpo na esteira, coloca os braços sob a cabeça e fita o tecto encardido do tempo. Suspira. Maquinalmente olha as horas. São cinco da tarde. Ela sem vir. Esvaziou-se. A inspiração também. Está pardo de sentir. Precisa de luz. Precisa dela. Da garota. Da liquidez do olhar enviesado, da humidade da boca carnuda. Da agilidade infantil dos seus músculos. Parece um boneco sem corda.
O seu vício.
Amar pode ser um vício. Yoko é o seu vício. Ela sabe-o. Ela joga. Ela tem dezassete anos mas séculos de experiência. Aquela boneca de vida que o afoga e lhe extirpa o alento em cada segundo. Sem ela não é nada. Ele o grande, o primeiro Ken. Ken Shimazu. Um nome de peso, uma tradição o também.
Estende a mão e apanha o maço, puxa um cigarro que acende. Inspira aquele sabor forte que lhe entope os pulmões mas acorda o cérebro. Um estímulo. Tem que pensar. Inebria-se. Parece -lhe que o tecto girou. Talvez. A espiral de fumo desenha cavalos em fuga. A fuga que os sentidos teimam em não querer, mas que o cérebro projecta no ângulo perspectivado da lógica.
Treme agitado pela falta do vício, de Yoko. O corpo grita-lhe. Tem fome. Mais uma baforada. Semi-cerra o olho direito. O esquerdo dilata-se e depois enevoa-se. Arde-lhe.Com a mão esguia e borratada de tintas afasta os cavalos quase desfeitos. O tempo esboroa-se na tarde de Maio. A cerejeira da colina já está em flor. Ele sabe, ele viu as flores brancas esvoaçarem na neblina da manhã, das pétalas que lhe roçaram a face Sentiu-lhes a macieza quando o vento as fez dançar. Ela que não vem. Yoko.
Ken tem quarenta e cinco anos. Não são muitos. São alguns. Não aparenta., não quer aparentar. Não pode. Yoko é menina. Não, não é. É mulher, a sua fêmea. A sua musa. Sem ela não tem inspiração. Não tem alento. Deseja-a sempre, sempre mais. Consome-se nela. Na loucura do corpo, na combustão da alma. Perde-se.
Senta-se.
Está perdido. Despido. Roto de vontade.
Levanta-se.
Agita-se, ajeita-se. Olha-se. Um homem ou uma projecção? Uma figura? Uma Pessoa? Tudo e nada ou antes, nada de tudo. Ken amassa o cigarro, espreme-o no cinzeiro. Depois entreabre as palmas das mãos que desenha em leque. Deixa que o raio deslavado de luz as inunda. As suas mãos. A sua vida, a sua arte. Afaga-as e depois beija-as molhando-as da raiva que brota de si.
Passos largos encurtam o espaço. Vigoroso, pega nos pincéis, traça, cria, esparge uma sombra, aligeira um traço Está febril. Explode. Ei-la que palpitante espreita, aqui, ali, mais aqui e ali, além e mais e mais. Ah! Uns olhos que sorriem, uma boca que murmura, um rosto. Um corpo. Ela toda. Yoko. Ondula na tela. Perfeita. Musa.
Ouve-se um trinado. Uma ave. O artista pára. A sua obra. A sua obra tem alma. A sua mais bela criação tem alma. Olha. Olha. Aspira o cheiro fresco das tintas que o tornam mais pleno ainda. O seu alimento.
É noite. As sombras invadem o quarto. Levanta o olhar. Três figuras. A Arte, o Homem e a Alma.