Regresso
Emília salta da alcova. O corpo despe-se do calor morno. Os pés pendem encolhidos procurando o chão. Está fresco e húmido. A manhã despediu a noite entre lágrimas. Ergue o busto, abre os braços e sorri ao dia. Enfia os chinelos tortos e corre para a janela. Abre-a de par em par sorvendo manhã.
É hoje! É hoje!
Recorda o tempo vazio de horas, a arma disparar, o sangue jorrar, o corpo dobrar-se, caindo devagar, muito devagar. A morte a entrar.
Aflição.
Nas narinas o cheiro da pólvora, do sangue, da loucura. Uma rodilha fétida de memória. Um nauseabundo sentir que lhe espreita o vómito de raiva.
Lino e o Pai
Lino matara-lhe o pai. Viera buscar o dinheiro da venda do olival. O Lino tinha-o usado para a compra do tractor. Fora numa aflição. O pai vai daí, chamou-lhe ladrão, filho de uma cabra e outras coisas que nem quer lembrar. Disse-lhe que ele não passava de um corno. Que ele sabia do que falava. Que ele fora o primeiro.
Um nojo.
Já não bastava o que lhe fizera e que a mãe calara. Agora vomitar o gozo na cara do seu Lino. Ele não aguentou. Foi buscar a caçadeira e pronto. Disparou. O vermelho alastrou na camisa mesmo por cima do baixo-ventre. Ficou paralisada.
E o vermelho a alastrar, o velho a retorcer-se, o vermelho que começava a pingar. A cara que se torcia. Os dentes podres a luzirem., a língua enrolada a taramelar. A saliva a pingar feita baba enrolada. Os olhos enviesados sem brilho. A pele amarela. As mãos de unhas negras agora pintadas de vermelho diluído esborratado pelos dedos. A poça de sangue que lastrava no chão da cozinha. Vermelho sobre vermelho. E o Lino? Largou a arma, segurou o velho e gritou:
- Ai Jesus, o que eu fui fazer?!
Deitou as mãos à cabeça. Sacudiu os ombros, e agarrou o velho. Abanou-o. Mas nada. Ali, assim, de boca aberta e babado. O cheiro que subia, e ela colada à banca da cozinha. Os olhos pregaram-se à cena. Os olhos doíam, a boca secava. As pernas tremiam. Um frio percorreu-a. Depois foi o calvário. Tanto. Fica gelada ao recordar. Gente não presta mesmo. Gente é passagem entre o tempo.
Dez anos!
As portas fecham-se atrás si. Uma maleta vazia, uns euros no bolso, umas calças e um blusão novo., eis Lino Guerra despejado no mundo. Passa a língua pelos lábios ressequidos, coça maquinalmente a cabeça para acordar as ideias. Depois aperta os olhos para o caminho molhado de sol. Pára e despe o blusão. A T-shirt mostra-lhe um tronco robusto. Os passos percorrem o passeio, dobra a esquina, e passa sob a buganvília roxa do muro da penitenciária que se estende rua abaixo. Pensa:
-“Só depois de passar o muro é que chamo um táxi.”
Os pés entortam os passos. Há um quase claudicar. Hesita. As solas mal tocam na calçada como se receassem ocupar o destino. Lino parece forte mas lá no fundo treme, mas não pode mostrar. Parecer sem ser. Percorre o passeio. Olha o céu. Afinal é igual ao do pátio. Não é mais azul. O vento é mais livre. O som. O som é diferente. Causa-lhe entontecimento, uma surdez esparsa. A cabeça ondeia. Uma náusea. A da liberdade. Estuga o passo, está quase no fim. A buganvília ficou para trás mas agora é a tília. O cheiro forte varre-lhe os sentidos. O nariz inspira instintivamente. O cheiro penetra-lhe no cérebro. Varre-lhe as poucas ideias. Deixa-o bêbado, zonzo. Instintivamente bloqueia as narinas. Uma falsa inspiração. Agora pode vomitar todo aquele perfume que o entope. E o muro que não acaba mais as tílias. O som começa a abrir-se. É barulho.
Quer sair dali.
Do outro lado os semáforos piscam o verde. A gente cruza a passadeira e ele, rápido sem sentido aproveita a boleia. A cabeça atraiçoa-o. O olhar traça-lhe o rumo. Deixa-se levar.
Está do outro lado.
O muro da cadeia está do outro lado. Respira fundo. Está livre. Sente-se livre. As ideias clarificam-se. O azul está mais azul e o barulho já não é ruído, é a vida, o que há momentos lhe parecia confuso, aéreo, como se estivesse do outro lado, começa agora fazer sentido. Aqui nesta rua de passeios tortos e gastos, prédios desbotados e roupa nas varandas, a vida espirra. Há tantos anos que não sentia esta aflição quase a rebentar. Ele espirra também. Está aliviado. Ah!
A vida!
Poisa a mala, encosta-a a uma parede descascada de amarelo, coloca-lhe o blusão por cima. Olha os pés. Olha a calçada puída. Raspa os pés no chão. Abre os braços, e sem olhar enceta uma correria. Corre, corre. Sente o suor alagar-lhe as costas, mais o peito, mais o rosto e as mãos. Sente-se cair, sugado, envolto, tragado, mal consegue respirar, torce-se, endireita-se, não consegue. Uma força maior, brutal toma conta dele. Um nó de duas pontas.
A Vida e o Fado.
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17 comentários:
Gosto muito de como escreves e como se fica envolvido ao ler-te. Muitos beijos.
uma bela descrição!
Fantástica narrativa!
Vida, quase sempre um nó de duas pontas...
Gosto especialmente de "o barulho já não é ruído, é a vida"... Tem força.
BEIJOS DA FÃ.
Selma Barcellos
Tem um convite para você lá no blog Meus recados, Teus recados.
Espero que aceites.
Abraços
secreto segredo
Mais uma história de corpo inteiro
que nos entra adentro
com ritmo e sentido de palavras
o correr das águas
recriadas que nos prendem
até à foz
expiado
nas tuas história me envolvo, sempre!
Re-começar.
Estive "preso" nesta narrativa.
bjs
Gostei, demais!
Abraços d´ASSIMETRIA DO PERFEITO
O recomeçar a viver. Como se nascesse de novo. É bom ler-te. Sempre. **
Ouvir Paredes faz me sempre chorar...
um bjo
uma nova narrativa onde ,como habitualmente ,a vida "transpira" em cada poro
ou
uma excelente metáfora à liberdade
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um beijo
Não é toda a gente que o consegue.
Pôr-me o coração acelerado, a visão do outro lado do muro, a dor do roxo na buganvilia, a pressa, o ruído, os ruídos, a vida, a corrida.
Arfo.
Sempre hei-de regressar a este Azul. Sei quem está aqui.
Um abraço Querida
BFS
bjo
Boa
saudações amigas
Tal como diz
um nó de duas pontas
Texto excelente
na forma e conteúdo
saudações amigas
como a vingança serve.se fria ,fazes.me um favor?
vai ao canto.chão e ... ciranda ,Cirandinha!........
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um beijo
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