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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

26 janeiro, 2009

O REGRESSO



Regresso

Emília salta da alcova. O corpo despe-se do calor morno. Os pés pendem encolhidos procurando o chão. Está fresco e húmido. A manhã despediu a noite entre lágrimas. Ergue o busto, abre os braços e sorri ao dia. Enfia os chinelos tortos e corre para a janela. Abre-a de par em par sorvendo manhã.

É hoje! É hoje!

Recorda o tempo vazio de horas, a arma disparar, o sangue jorrar, o corpo dobrar-se, caindo devagar, muito devagar. A morte a entrar.

Aflição.

Nas narinas o cheiro da pólvora, do sangue, da loucura. Uma rodilha fétida de memória. Um nauseabundo sentir que lhe espreita o vómito de raiva.

Lino e o Pai

Lino matara-lhe o pai. Viera buscar o dinheiro da venda do olival. O Lino tinha-o usado para a compra do tractor. Fora numa aflição. O pai vai daí, chamou-lhe ladrão, filho de uma cabra e outras coisas que nem quer lembrar. Disse-lhe que ele não passava de um corno. Que ele sabia do que falava. Que ele fora o primeiro.

Um nojo.

Já não bastava o que lhe fizera e que a mãe calara. Agora vomitar o gozo na cara do seu Lino. Ele não aguentou. Foi buscar a caçadeira e pronto. Disparou. O vermelho alastrou na camisa mesmo por cima do baixo-ventre. Ficou paralisada.

E o vermelho a alastrar, o velho a retorcer-se, o vermelho que começava a pingar. A cara que se torcia. Os dentes podres a luzirem., a língua enrolada a taramelar. A saliva a pingar feita baba enrolada. Os olhos enviesados sem brilho. A pele amarela. As mãos de unhas negras agora pintadas de vermelho diluído esborratado pelos dedos. A poça de sangue que lastrava no chão da cozinha. Vermelho sobre vermelho. E o Lino? Largou a arma, segurou o velho e gritou:

- Ai Jesus, o que eu fui fazer?!

Deitou as mãos à cabeça. Sacudiu os ombros, e agarrou o velho. Abanou-o. Mas nada. Ali, assim, de boca aberta e babado. O cheiro que subia, e ela colada à banca da cozinha. Os olhos pregaram-se à cena. Os olhos doíam, a boca secava. As pernas tremiam. Um frio percorreu-a. Depois foi o calvário. Tanto. Fica gelada ao recordar. Gente não presta mesmo. Gente é passagem entre o tempo.

Dez anos!

As portas fecham-se atrás si. Uma maleta vazia, uns euros no bolso, umas calças e um blusão novo., eis Lino Guerra despejado no mundo. Passa a língua pelos lábios ressequidos, coça maquinalmente a cabeça para acordar as ideias. Depois aperta os olhos para o caminho molhado de sol. Pára e despe o blusão. A T-shirt mostra-lhe um tronco robusto. Os passos percorrem o passeio, dobra a esquina, e passa sob a buganvília roxa do muro da penitenciária que se estende rua abaixo. Pensa:

-“Só depois de passar o muro é que chamo um táxi.”

Os pés entortam os passos. Há um quase claudicar. Hesita. As solas mal tocam na calçada como se receassem ocupar o destino. Lino parece forte mas lá no fundo treme, mas não pode mostrar. Parecer sem ser. Percorre o passeio. Olha o céu. Afinal é igual ao do pátio. Não é mais azul. O vento é mais livre. O som. O som é diferente. Causa-lhe entontecimento, uma surdez esparsa. A cabeça ondeia. Uma náusea. A da liberdade. Estuga o passo, está quase no fim. A buganvília ficou para trás mas agora é a tília. O cheiro forte varre-lhe os sentidos. O nariz inspira instintivamente. O cheiro penetra-lhe no cérebro. Varre-lhe as poucas ideias. Deixa-o bêbado, zonzo. Instintivamente bloqueia as narinas. Uma falsa inspiração. Agora pode vomitar todo aquele perfume que o entope. E o muro que não acaba mais as tílias. O som começa a abrir-se. É barulho.

Quer sair dali.

Do outro lado os semáforos piscam o verde. A gente cruza a passadeira e ele, rápido sem sentido aproveita a boleia. A cabeça atraiçoa-o. O olhar traça-lhe o rumo. Deixa-se levar.

Está do outro lado.

O muro da cadeia está do outro lado. Respira fundo. Está livre. Sente-se livre. As ideias clarificam-se. O azul está mais azul e o barulho já não é ruído, é a vida, o que há momentos lhe parecia confuso, aéreo, como se estivesse do outro lado, começa agora fazer sentido. Aqui nesta rua de passeios tortos e gastos, prédios desbotados e roupa nas varandas, a vida espirra. Há tantos anos que não sentia esta aflição quase a rebentar. Ele espirra também. Está aliviado. Ah!

A vida!

Poisa a mala, encosta-a a uma parede descascada de amarelo, coloca-lhe o blusão por cima. Olha os pés. Olha a calçada puída. Raspa os pés no chão. Abre os braços, e sem olhar enceta uma correria. Corre, corre. Sente o suor alagar-lhe as costas, mais o peito, mais o rosto e as mãos. Sente-se cair, sugado, envolto, tragado, mal consegue respirar, torce-se, endireita-se, não consegue. Uma força maior, brutal toma conta dele. Um nó de duas pontas.

A Vida e o Fado.


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25 janeiro, 2009


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Se houvesse degraus na terra...

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

Herberto Helder

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17 janeiro, 2009

A JAPONESA

Japan in me by Zobova, Elena



A JAPONESA

Haste de pessegueiro florida e vibrátil. Move-se na doçura do vento e sorri na comissura da neblina. A Japonesa. Yoko. Ondeia-lhe o corpo num movimento subtil de tempo. Parece uma pintura, porém, o agitar de ombros revela uma figura de alma e carne. Os passos breves revelam umas zôri vermelhas e pretas. O quimono é vermelho, longo, pesado, bordado em fios brancos, negros, e cinzentos. É majestoso. Demasiado, talvez, para o franzino corpo que veste. Yoko. Dezassete anos. Cinquenta de compostura, milhares de tradição. Na mão, o leque dança ao compasso do esvoaçar dos pássaros da veste. As asas batem e rebatem num adejar de penas e gestos. Lembram a ave em beiral. Criação redonda de um ninho. Sementeira minúscula de vida.

Levanta-se.

Os pássaros adejam à sua volta. Lenta e graciosamente compõe o quimono. Sorri. Duas pequenas covinhas inundam-lhe o rosto oblíquo. Os olhos amendoados, negros e líquidos perscrutam em redor. Tudo vazio. A ordem reveste o tempo.

A fotografia parou. Yoko solta com violência o pesado quimono. Agita-se, vivifica-se. A energia dos anos estala-lhe nos músculos, e rapidamente atira as zôri para um lado. Está quase nua. A elasticidade do corpo jovem vibra nos movimentos rápidos Quer fugir dali. Quer fugir do mundo desenhado que a sufoca.

Yoko menina-mulher.

Um pássaro em adejo de asas. Um corpo de mulher em casulo de criança.

O passado despido de presente. A tradição rasgada de amanhã.

Veste os jeans, enfia o camisolão. Calça as botas, atira rápida com a massa negra de longos cabelos, pega na bolsa, abre a porta, sai, passa pelo salão acena um adeus, e, de um pulo salta os degraus. Está no jardim. O oásis burilado da casa. Nada fora do sítio. O subjugar da natureza. Belo ao olhar, perfeito no gizar, tremendamente sufocante no palpitar.

Yoko não pertence à casa. Não faz parte do jardim.

Do outro lado da cidade num prédio cinzento de um apartamento descorado, uma janela entreabre-se ao bafo cansado da multidão. Nas paredes gritam as cores que os pincéis soltaram. O vermelho e o amarelo compartem o espaço com o verde e o azul. Em permeio fica o cinzento do espírito. A criação parada em dia roto de inspiração.

Ken-ichi rebola o corpo na esteira, coloca os braços sob a cabeça e fita o tecto encardido do tempo. Suspira. Maquinalmente olha as horas. São cinco da tarde. Ela sem vir. Esvaziou-se. A inspiração também. Está pardo de sentir. Precisa de luz. Precisa dela. Da garota. Da liquidez do olhar enviesado, da humidade da boca carnuda. Da agilidade infantil dos seus músculos. Parece um boneco sem corda.

O seu vício.

Amar pode ser um vício. Yoko é o seu vício. Ela sabe-o. Ela joga. Ela tem dezassete anos mas séculos de experiência. Aquela boneca de vida que o afoga e lhe extirpa o alento em cada segundo. Sem ela não é nada. Ele o grande, o primeiro Ken. Ken Shimazu. Um nome de peso, uma tradição o também.

Estende a mão e apanha o maço, puxa um cigarro que acende. Inspira aquele sabor forte que lhe entope os pulmões mas acorda o cérebro. Um estímulo. Tem que pensar. Inebria-se. Parece -lhe que o tecto girou. Talvez. A espiral de fumo desenha cavalos em fuga. A fuga que os sentidos teimam em não querer, mas que o cérebro projecta no ângulo perspectivado da lógica.

Treme agitado pela falta do vício, de Yoko. O corpo grita-lhe. Tem fome. Mais uma baforada. Semi-cerra o olho direito. O esquerdo dilata-se e depois enevoa-se. Arde-lhe.Com a mão esguia e borratada de tintas afasta os cavalos quase desfeitos. O tempo esboroa-se na tarde de Maio. A cerejeira da colina já está em flor. Ele sabe, ele viu as flores brancas esvoaçarem na neblina da manhã, das pétalas que lhe roçaram a face Sentiu-lhes a macieza quando o vento as fez dançar. Ela que não vem. Yoko.

Ken tem quarenta e cinco anos. Não são muitos. São alguns. Não aparenta., não quer aparentar. Não pode. Yoko é menina. Não, não é. É mulher, a sua fêmea. A sua musa. Sem ela não tem inspiração. Não tem alento. Deseja-a sempre, sempre mais. Consome-se nela. Na loucura do corpo, na combustão da alma. Perde-se.

Senta-se.

Está perdido. Despido. Roto de vontade.

Levanta-se.

Agita-se, ajeita-se. Olha-se. Um homem ou uma projecção? Uma figura? Uma Pessoa? Tudo e nada ou antes, nada de tudo. Ken amassa o cigarro, espreme-o no cinzeiro. Depois entreabre as palmas das mãos que desenha em leque. Deixa que o raio deslavado de luz as inunda. As suas mãos. A sua vida, a sua arte. Afaga-as e depois beija-as molhando-as da raiva que brota de si.

Passos largos encurtam o espaço. Vigoroso, pega nos pincéis, traça, cria, esparge uma sombra, aligeira um traço Está febril. Explode. Ei-la que palpitante espreita, aqui, ali, mais aqui e ali, além e mais e mais. Ah! Uns olhos que sorriem, uma boca que murmura, um rosto. Um corpo. Ela toda. Yoko. Ondula na tela. Perfeita. Musa.

Ouve-se um trinado. Uma ave. O artista pára. A sua obra. A sua obra tem alma. A sua mais bela criação tem alma. Olha. Olha. Aspira o cheiro fresco das tintas que o tornam mais pleno ainda. O seu alimento.

É noite. As sombras invadem o quarto. Levanta o olhar. Três figuras. A Arte, o Homem e a Alma.



Japan in me by Zobova , Elena

Aurora - Vanessa Mae

16 janeiro, 2009

Miguel Torga


Ficheiro:Miguel Torga 100anos.png

12-8-1907/17-1-1995


"Ter um destino é não caber no berço onde o corpo nasceu, é transpor as fronteiras uma a uma e morrer sem nenhuma."
Miguel Torga

In Fernão de Magalhães, Antologia Poética. Lisboa: Dom Quixote, 1999.


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14 janeiro, 2009

Minucha do blog Claras Manhãs nomeou-me para este prémio que agradeço.

O prémio tem regras, iguais a todos os outros, mas.....(risos) há sempre um mas

deverá ser atribuido só a mulheres
:

- copiar o prémio e colar no seu blog
- fazer referência do meu nome e colocar o endereço do meu blog
- presentear seis Mulheres cujos blogs sejam uma inspiração para si
- deixar um comentário nesses blogs para que saibam que ganharam o prémio
Aqui vão seis, poderiam ser tantos mais, por ora serão estes...

blog Aguarelas de Turner
blog Árvore das Palavras
blog Fio de Ariadne
blog Voando Por aí
blog Repensando
blog Não há rios iguais

12 janeiro, 2009

A dança: uma expressão perpendicular de um desejo horizontal

Shaw , Bernard

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01 janeiro, 2009

PAI

Lembro-me de me dares a mão, eu pequenina na tua mão grande. Lembro-me da tua figura esguia e elegante que me passeava no parque. Lembro-me de ti vergado ao peso do teu disparate. Corriam-te as lágrimas. Lembro-me de não perceber o porquê das coisas, do momento. Lembro-me de ti sentado no sofá vermelho ouvindo a tua música. Lembro-me de ti gesticulando na onda da discussão. Vermelho, febril, peremptório. Lembro-me de ti em flashes A tua vida, a nossa vida.
Pai,
Escrevo-te porque não posso dizer-te, suspiro as palavras porque já não as posso dirigir. Neste vai e vem de sílabas não ditas, arrecadadas, sentidas, fica o tempo. Esse tempo que me cobriu de saudade e de dor fina. Aquele esguicho que corrói de mansinho, mareja os olhos e purga a alma. Aquele retrato que perpassa na moldura dos dias, cujas portadas batem sincopadas nas paredes dos sentidos. Não, não é a imagem, a sépia, que se depara ante os meus olhos, é o teu rosto móvel, sentido, a alma de ti que eu amei e recordo. Essa força, qual mola vinda das entranhas, que te fazia ora conversador apaixonado ora ensimesmado e dorido, a gema áspera da vida que te feriu e te moldou assim mesmo. No encanto de um momento, ou no espasmo gutural de um sentir. Não foste sépia, para ti escolho as cores vivas de um Matisse e as pinceladas febris de um Van Gogh, visto-te de Renoir e oiço-te em dias felizes na paleta de um Turner e nos outros sombrios e duros de Lautrec.
Pai.
Um ano, um tempo, um sentir, uma mágoa.
Na gaiola aberta do tempo roçam os sentires que tantas vezes ficaram por mostrar. Treme o corpo, humedece o rosto, e dentro, bem dentro, junto à alma fica a dor, aquela dor triste por se ter perdido o tempo de mostrar o sentir. Porque partiste, e porque o pudor dos afectos se esvaiu, agora, consigo dizer-te as palavras que não ousei e calei.
Amo-te, Pai.
Um ano, um tempo.

Partiste Pai.

Disseste um dia, ao ler as minhas palavras, que quando se escrevem têm que ser sentidas. Pai. Sinto. Sinto a tua falta. Escrevo-as e recordo-te. Assim, simplesmente nos dias bons, e nos menos bons. Como todos nós. Não foste Deus nem Diabo. Foste Humano. Foste Homem. Foste o meu Pai.
Não sei onde estás.
Acredito, porque me ensinaste a Acreditar.
Acredito porque existo, porque sou pedaço de carne e alma vinda de ti, porque sou repositório de sonhos e esperanças falhadas ou concretizadas. Porque sou um dos teus ramos. Talvez o mais descarnado. Aquele que se vergou mais ao tempo e à vida. O ramo primeiro. Aquele ramo, a quem tu ensinaste a olhar para além da forma. Usavas palavras simples mas que temperavam a minha imaginação. Não, não eram o sal do mundo. Não, eram palavras para uma criança, para mim. Memória macia da minha infância. Segredos passados no côncavo de uma mão pequenina dentro de outra mão. A tua, Pai.
Não sei precisar no verbo o tom rebuscado do sentir, porque sou tão simplesmente filha. Não sei, apenas ouso relembrar-te tal como te sinto, Pai. Não burilo na dor contornos vivos, não sei amar assim. Não possuo o arroubo da paixão nem o descrédito do desamor. Só sei que me faltas, sei que os meus dias são incompletos, sei que no cinzento das tardes estás presente, sei também que em cada alba te lembro, que o hoje não é igual ao ontem, e que o amanhã será diferente. Sei que, nas minhas mãos agora vazias pingam as palavras nunca ditas. Sei que a pátina veste o tempo, mas que a tela bordada de memórias vivas é intemporal. A tela que me deixaste é a mais doce obra de arte. Chama-se “Vida”. Coloquei-a naquele quarto onde a janela se abre para o mundo, perto das paredes da alma.
Pai.
Obrigada.







The Flower Duet - All Angels