- Agradeço a Ana Luar pela distinção ,e mais ainda pelas palavras que me dirigiu. Todos que me visitam, sabem como ajo perante estes mimos. Gosto de os partilhar convosco. Pois bem, meus amigos, uma vez mais uma pequena lembrança.
"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
20 janeiro, 2008
19 janeiro, 2008
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Tango da Vida
As paredes esquálidas sombreadas de amarelo pardo e escuro triste, o chão rangente, esfregado de humidade escorrida, aqui, e ali, já carcomido de tábua podre, a janela no meio da parede em esquadria torta, olhando parada a vida, que de igual suja os vidros já foscos de amanhã, a cadeira velha, gasta que descansa ao canto na espera de um corpo macio. Tudo é cinzento, triste e atávico no quarto da Vida.
O Cheiro, não se sabe porquê, é de suor; suor escorrido, transpirado e molhado. Eleva-se em nuvens, molha as almas e invade os corpos. O suor rebola o ar, dá-lhe o odor vivido do desejo.
A porta geme e entra o homem, gingão, moreno, franzino, maleável, permeável. A brilhantina escorre-lhe no azeviche da cabeça, o olhar corta o cheiro e embala o desejo. A música crepita nos acordes. Três, únicos, marcantes, vibrantes e dançantes. O homem gira, agacha-se, compassa. Levanta-se, e entrega-se ao som que crepita de tom, qual labareda vermelha. Estende a mãos. Ela chega, carne viva, roçada e criada de movimento. Juntos, unidos, em ritmo único abanam, baixam, cruzam, afastam, inclinam, um, dois, três, em baixo, um, dois, três, ao lado. O olhar é fixo, interior, sentido. Dobra-se, ergue-se e parte-se na entrega.Viola-se no prazer. Suspira no escutar e abandona-se no vai e vem.
Há paixão, ritmo, carne. As pernas entrecruzam-se, tocam-se, exploram-se. Há prazer. Os corpos dúcteis entrechocam-se no desejo, e o suor invade a cabeça, desliza pelos cabelos que empapados se tornam mais vivos e dançam também, colando-se tal como os corpos. Exala o suor do sentir, fétido de desejo, prenhe de paixão. E o movimento único, compassado, ao som das palhetas de bandoneón grita em raiva dolente, em escárnio cuspido, em sentir violado. Tudo salta, tudo irrompe em gestos, olhares e dança. Há fogo, há labareda. Há cinza, tristeza. Vermelho e negro. Corpo e alma. Mais um passo, mais um acorde, e ela requebra, articula a perna esquerda em movimentos fortes e vibrados. Baixam-se de novo em uníssono de movimento, alagados no fluir da música. É dança canalha, suor perlado, olhar dividido, roçares mastigados. É raiva, é dor, é asco ,é paixão. É assim que se dança Tango da Vida…
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13 janeiro, 2008
Uma Estrela e um Rebuçado.
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Uma estrela e um rebuçado
Era uma vez…
Uma menina pequenina de olhos lindos ,e caracóis escuros ,de sorriso gaiato dançando nos lábios de uma boca sempre vermelha de alegria. Os olhos brilhantes de luz interior ora se abrem deslumbrados ora sedentos de vida. Um redemoinho de gente, uma ternura vestida de quatro anos. Chama-se Joana.
Joana espevitada de palavra bem silabada impondo regras, não se deixa ficar aquém, o seu dedito espetado, sorriso franco, caracóis dançando e cinco reis de gente, fazem dela o arauto da pequenada. Joana é traquina, ladina e menina. Menina de ideias saltitantes e gestos falantes. Tão depressa é um docinho de meiguice envolvente como um diabinho de saias troante. Joana cinco reis de gente, um quinhão de alegria e um alambique de meiguice.
Ora, num destes dias, o avô de Joana foi embora. Assim de repente. Ela bem viu o pai pôr a gravata preta, andar de cara triste e olhos aguados, ela viu a mãe também estar mais calada. Pressentiu mas fingiu não perceber. Criança tem destas coisas, sabe, mas faz de conta. Lá no fundo do coraçãozinho fica assim como que tivesse um arranhão, mas o faz de conta vem, e veste o arranhão de cores do sol e a gente esquece. Por isso é que se é criança.
Houve um dia que a avó chegou a casa sozinha com o pai e a mãe. O avô não veio. Então a mãe explicou que o avô já não estava cá que tinha partido para outro lugar também lindo e bom. Joana abriu os lindos olhos, entreabriu a boquita. Ouviu a sua irmã, Maria, já uma menina de sete anos que sabe ler, escrever e desenhar e percebe muita coisa, chorar, chorar muito. Joana teve vontade também, mas porque é alambique de meiguice, estendeu, não só o dedito, mas as mãozinhas para a Maria, que desconsolada soluçava, e disse naquela vozinha doce que estremece o coração dos grandes:
-Maria, não chores. O avô, agora é uma Estrelinha!
Naturalmente que a Maria soluçou, e a avó também, o pai pigarreou e a mãe ficou com os olhos marejados. Procurou-se estabelecer a normalidade, fez-se questão. O esforço nestas alturas é colaborante entre as vontades. Veio a noite e a hora da caminha para as meninas. A Maria e a Joana despediram-se da avó e foram para o quartinho, deitaram-se, disseram boa noite e então é que foram elas. A Joana chorou tanto, e tão desconsoladamente como se o arranhão do seu coração se tivesse aberto numa ferida muito grande, daqueles dói-dóis que precisam de ir ao doutor. Chorou, chorou como se cinco reis de gente fossem, não um alambique de meiguice mas antes de tristeza.
No dia seguinte já sarada e lavada do seu arranhão- dói-dói, Joana levou o dia mais ou menos serena, coisa invulgar naquele diabrete de saias. Era sábado ou domingo, não sei, mas também não importa. Que era dia de anos, isso era. Maria, menina crescida e já com amiguinhas lá foi, Joana também, porque ao diabrete toda gente se derriça. Certamente que pularam, riram, e cantaram. É a infância. Os corações, nestes verdes anos são tão limpos, que dá para tudo, rir, cantar e chorar, tudo num dia como se fora sol, chuva e depois o arco-íris de mundo.
De olhos vivos e sorrisos abertos entraram em casa. Contar as maravilhas da tarde foi relato detalhado, porém Joana que trazia na mão um saquito de rebuçados que não largou. Depois dos beijinhos, de se despir dos casaco e demais atavios, senta-se num cantinho, despeja o saquito e muito concentrada, escolhe, mexe, remexe, escolhe, pesa e sopesa. Decide-se finalmente.
Com aquele sorriso de olhos e lábios que iluminam o rostinho moreno e abanam os caracóis, diz junto da avó:
- Avozinha, olha, toma este rebuçado para o avozinho, para quando ele vier do céu, e dá-lhe também um beijinho meu.
Claro está que a avozinha lacrimejou, claro que guardou religiosamente no seu cofre pessoal o rebuçado, qual jóia viva, claro está que contou a todos esta preciosidade de um alambique de meiguice chamado Joana, claro está, que eu, sua tia, tive também que vos contar esta doçura.
E este foi o meu conto, de uma de uma princesa linda mais de uma estrela, um rebuçado e um alambique de meiguice!
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10 janeiro, 2008
Quis
Quis um dia criar palavras,
Belas, soltas, fortes e pensadas,
Quis um dia contar,
Contos de gente, fábulas de vidas,
Sonhos desejados e lágrimas caídas.
Quis um dia chorar,
Sons magoados de sílabas lançadas,
Ao vento áspero dos afectos.
Quis um dia acreditar,
Na amizade ou amor, digam o que for,
Quis sorrir no vermelho da dor,
Por entre gotas roladas de sentir,
E tréguas de porvir.
Quis ser fraterna, amiga, companheira,
Breve e simples mensageira
Desta solta melopeia cuspida,
De andrajos vazios de afectos
E alinhavos podres de sentires.
Quis…
03 janeiro, 2008
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O tempo de um Pai
Foi ontem? Não, já não sei. O tempo correu tão voado que cheguei ao hoje sem me lembrar do ontem. Foi assim que o tempo marchou. Outrora, dizem, era sereno e límpido. Corria dolente por entre as vidas naquela remanso gordo e feliz. Hoje desliza célere como se fora águia em voo picado. Chega, mal pára, e parte. São os dias da vida, chamam-lhes modernos. Talvez.
Há poucos dias, quando ainda sabia se era ontem ou hoje, vi, na rua , o tempo despedir-se. Estava de passagem, o costume, suspirava. O tempo de ontem já não volta porque se perdeu no tempo de hoje.
Recolhido no tempo de ontem, mas olhando o de hoje, sem olhos de ver, Jacinto tamborila os dedos na mesa de tampo de vidro como que marcando o compasso da vida. Pende-lhe a cabeça, porque o peso do tempo corre-lhe na memória. O olhar prende-se no minúsculo espaço frontal que as pupilas habitam. Está velho e engelhado. Está gasto do tempo sem tempo de amanhã. Também não quer.
Jacinto parou no tempo das memórias. Daquelas que de vívidas passam a enroladas de murchas. Parou naquele momento, em que se despediu do amanhã, porque a vontade se largou, numa viagem por sítios estranhos. O ontem tornou-se o horizonte, o hoje é porta que não transpõe, o amanhã é viagem esperada.
Os dias embrulham-se no tempo cinzento de um roupão vestido por cima de um pijama cinzento de anos vividos. Já não veste a camisa, nem põe gravata. As calças, sempre tão alinhadas, jazem sentadas no cadeirão, á espera de um tempo que não mais chegará. Jacinto veste o tempo de partida. Esperou-o e não teve peito para o sacudir. Não teve vontade, por ter vivido demais, cansou-se dele. Jacinto tem muitos anos e está cansado, cansado de si, da sua forma de gente. Despede-se dos seus, sorrindo de longe, porque de perto não tem força. Sente que vai partir, sente que a vida está de braço dado com o tempo que começa a girar para outro sítio. E o tempo ronda, ronda. Ora abranda, ora aperta. Parece um assobio silvando a vida. É triste, muito. Dói. Jacinto é homem, é pai. Gente que vê o vento soprar assim de levante sente um arrepio na alma e no sangue. Gente que é filho e ama o pai. Jacinto vai partir no tempo do vento. O tempo de vida cessa, e Jacinto- pai, parte. Uma brecha de si, dedilha palavras tentando enganar o tempo, tentando recordar, tentando racionalizar o que já é racional. O tempo de partida.
Jacinto que não é Jacinto, é pai. É o meu pai. É ele que parte, desprendendo-se no tempo e das amarras. Solta-se assim de leve, assim de breve. Fica a imagem, o sorriso, ficam as palavras e como ele embalava as palavras no ócio rico do pensamento. Pai, meu pai, porque parte? Eu sei que o tempo o embala, que o tempo o espera. Eu sei que o corpo está exaurido, eu sei. Eu sei que está exausto, eu sei. Eu sei tanta coisa, pai, mas eu não sei nada, meu pai, quando o vejo de partida. Oh. Como detesto o tempo!
Pai, meu Pai amo-o sempre, para sempre. Digo adeus, deixo um beijo. Para sempre. Recordo-o.
Uma lágrima, um beijo, um pai, uma filha.
01 janeiro, 2008
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?)
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Carlos Drummond de Andrade