VI
No velho pátio que adorna a cozinha,
Berta pára de cegar as couves. Sentada no banco tem no regaço vestido de
cinzento, o velho alguidar de barro. As pernas cansadas e balofas estão abertas
para fazer o colo ao vaso O rosto redondo descansa num olhar cansado de lides.
As mãos gretadas de unhas quebradas, arroxeadas do sabão e das águas dançam
lestas o bailado do vai e vem. Uma volta redonda, e mais outra, e outra ainda.
Uma dança simples, leve, contudo precisa no seu traçado. Os fios verdes caem no
vidrado do barro e cheiro a couve fresca enrola-se nas narinas. Endireita
ascostas, olha em frente, murmura algo inteligível e recomeça o seu baile de
mãos.
Serve naquela casa já vai para um ror de
anos. Não sabe quantos anos tem, dizia-lhe a mãe que nascera no ano da grande
festa em Lisboa. Berta cresceu, começou a trabalhar ainda bem pequena. Depois
viu os meninos crescerem, partirem, casarem. Viu tanta coisa. S. Gião faz parte
dos seus ossos. Noutros tempos era uma casa de risos. Não havia silêncios. Os
senhores iam e vinham entre a capital e a casa. As crianças por ali ficavam,
pulando os dias. Hoje, Berta abana a cabeça, as sombras tomaram conta do lugar.
Dona Mathilde é uma tristeza. O Senhor sempre vermelho de ira. Brada com todos.
Anda sempre num desatino. O menino com quem ela andou ao colo perdeu-se entre o
Sisandro e o Carvalho. Talvez ao descer a encosta ou ao subi-la. Quem diria que
aquele jovem tão alegre, tão amigo das suas gentes se tornaria naquele homem
amargo? Quem pensaria que o jovem arroubado de encanto por Dona Mathilde viria
a desprezá-la? Aquela casa perdera o sino do bom senso, oh se perdera! Quem o
dizia era ela. Os seus olhos já tinham visto muito. Oh se tinham.
Os anos não tinham sido doces para a casa
nem para as gentes. Havia um quase prenúncio de desgraça. Ela, Berta de Jesus,
sentia-o no ranger dos ossos. A maldita dor que lhe tolhia os gestos. As cruzes
que a faziam entortarem de dia para dia. Um calvário constante que a massacrava
não só no corpo como na alma. Eram as dores da velhice, diziam, porém Berta
sabia que era o sofrimento dos tempos que vivia.
Berta casara com Julião. Casara, não,
juntara-se. Que mais dava? O padre também
não lhes dera a bênção. Fizeram o mesmo do que os outros. Tiveram filhos
e baptizaram-nos. Fora a única vez que o padre torcera o nariz, mas a Senhora
pusera os seus bons ofícios a correr e o Padre Inácio lá botara a água benta na
moleirinha dos ganapos. Cresceram, fizeram-se gente, arranjaram bons homens e
mulheres, trabalhadoras como companheiros e partiram. Todos, menos a Rosa. Fora
a mais fraquinha, doentinha, assim quase meia atoleimada. Uns dias estava com o
prumo certo, noutros, Jesus, a coisa andava num desinço que até fervia a alma.
Muitos cuidados lhe dera a rapariga. Sempre assim num ora que vai, ora que vem.
Apareceu-lhe prenha, ainda hoje não sabe quem foi o estafermo. Mas Santo Deus,
o que é que se esperava. Coisas da vida. A Rosa também tinha as suas quenturas
e prontos. Nasceu Julião. O rapaz não saíra à mãe, na Senhor. Era fino como um
raio e de resposta afiada. Devia ter puxado ao tratante do pai. E não é que até
lia? Ela nem gostava que os outros soubessem. Havia coisas que a gente não
devia dizer. Podiam trazer desgraça. Berta tinha visto e ouvido tanto, que o
melhor era mesmo ouvir e calar, pois que se Deus Nosso Senhor tinha dado dois
ouvidos e só uma boca, Ele na sua sabedoria lá sabia o que fazia. Mas o seu
Julião, afinal era quase seu, fora ela que lhe limpara os cueiros e o criara.
Coitada da sua Rosa que à medida que o rapaz se fazia gente, atoleimava-secada
vez mais. Quanto ao Julião andava meio enviesado. Não falava, mastigava as
respostas, cuspia palavrões, trincava o sorriso e bolçava rancor. Não sabia o
que se passava. Dera em sair à noite. O rapaz ainda ia nos quinze anos,
espigados, era verdade, porém já se julgava um homem. Berta já antevia
sarilhos. Cheirava-os, pressentia-os. Chiavam-lhe nos ossos. O seu Julião ia
arranjá-los, uma certeza que lhe roía o corpo.
Poisa o alguidar no chão deitando o olhar
para o vazio do pátio. As sombras da noite já dançam por entre as vinhas do
outro lado. Chegam-lhe aos ouvidos sons de vozes. Não consegue distinguir o que
dizem. Os anos roubaram-lhe o ouvido. Espreita por entre as telhas do beiral e
apercebe-se da hora. Daqui a um bocado é hora da ceia. Vêem dos campos. São as
vozes que caminham para ali. Há que despachar.
VII
Maria da Nazareth olha espantada para
aquela coisa que está ali nas mãos da ama. Mexe-se e grita. Guincha. Dizem-lhe
que é a irmã. Que tem uma irmã. Não acha lá muita graça. Mas Zinha não
pergunta, para quê? Já sabe de antemão que vão entretê-la com parvoíces. Como
se ela acreditasse nas coisas que lhe impingem. Basta olhar em redor, para a
gente da casa, para quem gira por dentro e, quem anda por fora, para aprender
muita coisa, aquilo que não se fala.
Olha para o embrulho de lã que baixam à
sua altura. Vê uma coisa vermelha de punhos fechados. Olha-a bem e ,de repente
o embrulho esboça um trejeito, chamam-lhe sorriso naquela boca escancarada de
dentes.. A velha ama fica estarrecida e titubeia:
-Ai menina, ai minha rica menina, que
esta criaturinha está a rir para si!
A ama, rapidamente, voltou a tapar o
novelo e recolheu-se ao quarto.
Zinha dá meia volta, olha o para os pés
unindo simultaneamente as pontas dos sapatos num triângulo e, depois com um
salto bate-os um contra o outro. Fica direita, estática. Rebola a cabeça num
carrossel de ideias, ergue os braços para um sítio que só ela sabe. Toma a
direcção da cozinha., contudo já a meio, dá meia volta e corre para o outro
lado da casa, cruzando a sala e o corredor numa correria ruidosa. Pára ofegante
na porta alta de madeira creme no fim do corredor. Bate timidamente. Nada. Bate
de novo.
Escuta a voz melodiosa da mãe:
- Entre.
Estremece.Está zangada. Sente-se roubada.
Tem vontade de dar meia volta e fugir dali. Rosada de rebeldia, abre a porta
entrando no quarto. Na cama, semi-deitada, está a mãe. Os longos cabelos cor de
avelã chispam as centelhas da tarde. Branca, e com um ar cansada mas sempre
sorridente, a mãe olha-a. Sente-se mais pequena ainda. O olhar da mãe sempre a
perturbou. Lia-a em todas as linhas do seu livro de vida. Não valia a pena
rasurar ou apagar A mãe já tinha lido. E uma vez mais a mãe lera.
-Sim, Zinha é a tua irmã. Não é perfeita?
Pareces tu. Eras assim.
- Eu?
Sim minha querida, também já foste assim.
Olha, senta-te aqui ao pé de mim.
O convite inundou-a. Tanto que,
delicadamente aproximou-se e sentou-se devagarinho encostando-se ao corpo
macio. Estava ali o seu princípio. Sentiu. A fúria soltou-se, evaporou-se.
Não falou, não se mexeu. Deixou-se
embalar pelo cheiro da mãe, pelo calor do corpo, pela penumbra do quarto, pelo
momento.
Não sabe quanto tempo esteve ali.
Sobressaltou-se com a voz do pai que perguntava:
- O que faz a pequena aqui? Onde está a
Berta. Que venha buscá-la.Minha querida tem que descansar. Está com um ar
cansado. Tantos pequenos por aqui. Vá menina levante-se, deixe a sua mãe.
Espera um pouco. O calor percorre-a. O
instante foi-se. Levanta-se.
O pai está de pé junto da cama. Pega nas
mãos brancas e leves da mãe. Olham-se. Ela sai. Não se aperceberam. O mundo
deteve-se ali. O deles.
Uma sensação esquisita inunda-a. Sente-se
a mais. Como se fora uma haste fora do sitio do tronco que são os pais.
Mergulhada nestes pensamentos, encosta-se a uma parede do corredor, deixando-se
escorregar até ficar de cócoras. Ali fica. Não se ouve vivalma. Parece-lhe que
o mundo parou. Está do outro lado, onde o nada é o todo.
As paredes brancas
reflectem o amarelo do sol. Na mesa a toalha alva adorna-se de pratos e copos.
Há flores nas jarras. As pratas reluzem. A grande sala de tábuas corridas e
janelas levantadas enche-se de sorrisos e conversas ligeiras. Gestos doces de
uma manhã de baptizado. Maria de Santo António já é uma alma cristã.
O cheiro a canja, misto
de gordura quente e carne, espalha-se pela sala à medida que as terrinas
chegam.
Maria de Santo António
faz a sua entrada triunfal. Nos braços da velha Berta bem engomada e brunida.
No alto do carrapito cinzento e branco a touca dança-lhe ao sabor dos passos
seguros.
-A nossa menina!
Rápida D. Luísa, a
madrinha, ergue-se e toma-a entre os seus braços. Embala-a suavemente. Olha-a.
Um botão de rosa feito gente. É isso. A menina é perfeita e linda. – Maria esta
criança é linda! -diz
- Obrigada, minha amiga.
Dona Luísa percorre o
espaço da mesa para a janela. Afasta o xaile e Maria de Santo António resplende
no seu branco. Um botão-flor. A luz de Setembro inunda-lhe as feições, um
instante glorioso de luz e vida. Dona Luísa profetiza:
-Vais ser uma beleza.
Ao som das palavras a
pequena esboça um trejeito, um quase sorriso que lhe levanta deliciosamente as
comissuras dos lábios.
-Oh, oh, Santo Deus, a
menina está a sorrir.
Dona Luísa fica
perplexa. Olha-a, ergue-a, avalia-a e rende-se ao encanto daqueles dez vinténs
de gente. Momentos liquefeitos de amor.
Depois recompõe-se Olha
em redor. Chama a velha Berta com um simples olhar e entrega a preciosa carga.
Suspira.
A tarde diluiu-se entre
o assado, o arroz-doce, o vinho, as castas de entre vinhas sempre apaladaram as
conversas e amaciaram as vontades entorpecendo os sentidos.
O entardecer chegou.
Logo se acenaram as despedidas, os beijos, os obrigados e os convites para
próximas soirées. O deleite da companhia no encanto daquela família.
Quando o último partiu,
Caetano cambaleando sentou-se descaído no velho canapé de palhinha, desapertou
o colarinho engomado, desabotoou o colete.
O remanso da noite e da
casa envolveram-no. No pensamento meio enublado de cansaço e vapores etílicos,
o mau estar que o vem tomando fá-lo fechar os olhos, e deixar-se ficar naquela
modorra que rapidamente o conduz ao sono. Queda-se ali Uma mão engelhada
cobre-o de uma manta, ajeita-lhe a cabeça sobre uma travesseira doce e sai de
mansinho tal como de mansinho entrara e se ajoelhara.
Do outro lado, na dobra
do corredor, a cozinha ainda respira os cheiros do dia. Sentadas em redor da
mesa, Berta, Lela e Rosa conversam o dia. Os vestidos das senhoras, os sorrisos
malandros dos senhores, as correrias dos rebentos. O baptizado, enfim. Um dia
para recordar. Naquele dia a alegria tinha dançado na casa.
Os homens vestidos nos
seus jalecos domingueiros continuam de copito na mão num jogo entaramelado de
vozes, a recordar uma melopeia de agudos e graves em carrossel de feira.
Alguns levantam-se
cambaleantes dizendo:
- Uma última saúde á
menina!
Os caixotes arrastam-se
na medida perfeita das botas. De novo os copos mascaram-se de tinto e
levantam-se unidos.
-Á saúde! - Exclamam
O silêncio vai-se
deitando com a noite já quase abotoada no lençol das estrelas.
Amanhã será outro dia.
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