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18 abril, 2009

GAIVOTA






Gaivota

No corpo seco a camisa de quadrados adeja em balão. As calças voejam quais velas ao vento. O casaco castanho abre-se de par em par lembrando as portadas de uma janela. Os parcos cabelos cinzentos esvoaçam em desalinho. O rosto fino de traços gastos perscruta o penhasco. Pisa a terra húmida sulcada de veios salgados.

E o mar ruge a sua canção de memórias. O olhar esquadrinha aqueloutro verde que se enrola e ulula em lamento Sente a alma expandir-se. O desassossego surdo do seu sentir transborda. A espuma ligeira espraia-se na praia deserta. Está só. Ele e as gaivotas que desfloram as ondas e depois vêm dançar sobre a sua cabeça grasnando a vitória da vida.

Aspira a humidade marítima. Afila o pensamento e cruza os braços sobre o peito. A memória varre-o acutilante. Dói o recordar, soluça o tempo. Uma gaivota plana de asas abertas Segue-a com o olhar. Entreabre os lábios ao movimento posterior do pescoço. Um reflexo. O vento açoita-o. Aperta o casaco contra si e caminha.

A gaivota imita-o. Desce e poisa na areia molhada. De costas para as ondas. Não a seu lado., mas atrás. Ligeira e breve meneia-se debicando o ar. Os passos do homem são as suas pegadas. Traços triangulares na areia embebida de sal e espuma.

O vento sopra rude no rosto do homem. Fustiga-lhe os olhos que lacrimejantes enrolam o sal do dia. Na gaivota, o vento, penteia-lhe o branco das penas.

E o mar escancarado rebola-se em fúria. Ondas verdes, crispadas entrechocam-se e rebentam estrondosas no areal frio. O eco irado do mundo. A consciência aquosa do Ser. O deslizar por entre os altos e baixos da vida e o eclodir final das tensões. Tão simplesmente, ali em toda a geografia líquida. Vogar por entre as águas num ribombar de emoções, rebentar em ondas fortes e possantes ali mesmo na praia deserta. Recolher de novo e recomeçar. De mansinho, serenamente e, engrossando, engrossando até que a explosão vem de novo vomitar o areal. Assim sempre, imutável e perene.

O mar.

A gaivota olha o Homem. Minúsculos botões negros inquisitivos. A consciência do momento. Não lhe responde. À liberdade não se responde, segue-se.

De repente param. Perscrutam-se, avaliando-se. Medem-se.

Ela ladeia o pescoço enrolando a cabeça, o bico movimenta-se como se murmurasse o chamamento, e ei-la a esvoaçar. Plana em linha recta no areal. Grasna o seu cantarolar vivo. Assim repetidas vezes, até que o homem larga o seu mutismo, deslaça os braços e, compondo os óculos que teimam em descair-lhe, grita:

-Julgas que é fácil seguir o vento, julgas? Julgas que não queria ser pássaro e partir? Julgas? Julgas que não sei que a raiva me consome? Julgas que não cuspo o silêncio? Tudo é fácil para ti. Tudo. Não tens lutas, não tens que sobreviver. Não tens! Ah como agonio em cada manhã, quando tenho que olhar a gente, quando tenho que compor a figura e disfarçar-me de Homem. Eu sou um lobo, um solitário, preso na alcateia do mundo. Desprezo-a e amo-a. Pertenço-lhe e ela pertence-me. Ah! Rasgo-me em cada noite ao ouvir os uivos vazios dos lobos meus irmãos, quando lhes saboreio a hipocrisia dos actos e sorrio ao embuste .Ah, o orgulho impede-me de rasgar a mentira. E pactuo. E de novo em cada madrugada a raiva irrompe qual nascente, cresce num novelo duro de arame que me segura e dilacera. A chaga do sentir. Não suporto a contradição. Sou Lobo. Sou solitário. A alma não me transmuta. O corpo é a minha caverna. O meu sentir é a minha essência, a minha razão é o crivo dos meus dias. Latejam-me as têmporas, dói-me o pensamento e salgam-se-me os sentidos. Deixa-me, deixa-me. Sabes? Não tenho asas, não tenho ousadia, não te esqueças que sou lobo. A minha alcateia espera-me!

E a gaivota num grasnar ensurdecedor planou para o mar desflorando onda que a tomou.



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Love On The Rocks - Neil Diamond.
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