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"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
18 julho, 2010
04 julho, 2010
Alice
Alice
Alice crua de sonhos vagueia na rua dos sentidos. Percorre-a sem olhar. Sente. Sente apenas. Sente o enrolar das tripas. Sente o fardo das pernas. Sente o suor gotejante. Sente o bafo quente da tarde a enrolar-lhe os sentidos. E o suor que a empapa e, o trago amargo da fome a vomitar-lhe a boca. E a tarde a secar.
A rua, a casa. Traves e tijolos, pó e calçada. Tudo gira. Uma neblina tolda-lhe os olhos. Esfrega-os. O suor teima em cair. As costas das mãos estão molhadas. Passa-as pelos lábios. Sabem a sal. Tem sede.
A língua, a ponta humedece os lábios secos tal como a boca. Só o corpo está húmido. Húmido e melado. Respira com força. Mais um passo aqui, ali, em frente, em frente. O caminho de sempre.
O ar escoa-se por entre as varandas vestidas de roupa. Há sons que se diluem no vento morno. São vagos. Cheiram a dor. Sabem a amargo. Os sons desnudaram-se. A tristeza vestiu-se.
O tempo parou na calçada crua. Alice caminha. Detém-se na porta semi-aberta. Empurra-a. A escuridão de bafo quente envolve-a. Uma voz perdida pergunta:
-Quem é?
-Sou eu, a Alice.
-Estava à tua espera.
-Eu sei, eu vim. Sem nada, mas vim.
-Ah! Para quê, então?
-Trouxe-lhe uma côdea do ontem.
-Ah!
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24 maio, 2010
Maio
Maio
Senta-se diante da tília que se agita suavemente na noite doce de Maio. No ar vibra aquele odor suave das rosas a desenrolarem-se em saias novas. Maio. Um suspiro.
João velho respira o Maio novo. Tremor e brisa. João e Maio. Gente e Tempo. João respira devagar deglutindo o ar doce que a Tília lhe oferece. Sorri fechando os olhos já cansados. O tempo desprende-se. A Tília envolve-o no seu odor. João deixa-se embalar. Suave, suavemente. Chamam-no. É o tempo. O seu que terminou. O de Maio que vibra. João entreabre os lábios e engole o perfume. Olha em frente, para além da Tília, na curva do tempo onde o mundo nasce de um lado, e morre do outro. É ali que tudo acaba. Sem alarde, embrulhado na doçura de Maio, João parte. Assim serenamente.
Alguém que passou reparou numa tília que chorava ao lado de um velho que olhava sem ver.
Achou estranho mas não parou.
Amanhã era Junho.
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23 maio, 2010
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Eugénio de Andrade
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16 maio, 2010
Ma bohème
Je m'en allais, les poings dans mes poches crevées ;
Mon paletot aussi devenait idéal ;
J'allais sous le ciel, Muse ! et j'étais ton féal ;
Oh ! là ! là ! que d'amours splendides j'ai rêvées !
Mon unique culotte avait un large trou.
- Petit-Poucet rêveur, j'égrenais dans ma course
Des rimes. Mon auberge était à la Grande-Ourse.
- Mes étoiles au ciel avaient un doux frou-frou
Et je les écoutais, assis au bord des routes,
Ces bons soirs de septembre où je sentais des gouttes
De rosée à mon front, comme un vin de vigueur ;
Où, rimant au milieu des ombres fantastiques,
Comme des lyres, je tirais les élastiques
De mes souliers blessés, un pied près de mon coeur !
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06 maio, 2010
O Crepúsculo dos Deuses |
Há torrentes de sangue, hecatombes supremas,
Heróis rojando ao chão, troféus ardendo em pira,
Ilíadas, bulcões de gládios e díademas,
Ossa e Pélio tombando, e Zeus em raios de ira,
E Acrópoles em fogo, e Homero erguendo a lira
Em reverberações de batalhas e poemas...
Mas o vento, embocando as bramidoras trompas,
Clangora. Rolam no ar, de roldão, num tumulto,
Os numes e os titãs, varridos à rajada:
E ódio, furor, tropel, fastígio, glória, pompas,
Chamas, o Olimpo, - tudo esbate-se, sepulto
Em cinza, em crepe, em fumo, em sonho, em noite, em nada.
Olavo Bilac
24 abril, 2010
T o u r a d a
...Não importa sol ou sombra
camarotes ou barreiras
toureamos ombro a ombro
as feras.
Ninguém nos leva ao engano
toureamos mano a mano
só nos podem causar dano
espera.
Entram guizos chocas e capotes
e mantilhas pretas
entram espadas chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos cravos e dichotes
porque tudo o mais
são tretas.
Entram vacas depois dos forcados
que não pegam nada.
Soam brados e olés dos nabos
que não pagam nada
e só ficam os peões de brega
cuja profissão
não pega.
Com bandarilhas de esperança
afugentamos a fera
estamos na praça
da Primavera.
Nós vamos pegar o mundo
pelos cornos da desgraça
e fazermos da tristeza
graça.
Entram velhas doidas e turistas
entram excursões
entram benefícios e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas e coristas
entram galifões
de crista.
Entram cavaleiros à garupa
do seu heroísmo
entra aquela música maluca
do passodoblismo
entra a aficionada e a caduca
mais o snobismo
e cismo...
Entram empresários moralistas
entram frustrações
entram antiquários e fadistas
e contradições
e entra muito dólar muita gente
que dá lucro as milhões.
E diz o inteligente
que acabaram asa canções.
ARY DOS SANTOS
Soneto- Ary dos Santos
Fecham-se os dedos donde corre a esperança,
Toldam-se os olhos donde corre a vida.
Porquê esperar, porquê, se não se alcança
Mais do que a angústia que nos é devida?
Antes aproveitar a nossa herança
De intenções e palavras proibidas.
Antes rirmos do anjo, cuja lança
Nos expulsa da terra prometida.
Antes sofrer a raiva e o sarcasmo,
Antes o olhar que peca, a mão que rouba,
O gesto que estrangula, a voz que grita.
Antes viver do que morrer no pasmo
Do nada que nos surge e nos devora,
Do monstro que inventámos e nos fita.
03 abril, 2010
Poema da flor proibida Por detrás de cada flor há um homem de chapéu de coco e sobrolho carregado. Podia estar à frente ou estar ao lado, mas não, está colocado exactamente por detrás da flor. Também não está escondido nem dissimulado, está dignamente especado por detrás da flor. Abro as narinas para respirar o perfume da flor, não de repente (é claro) mas devagar, a pouco e pouco, com os olhos postos no chapéu de coco. Ele ama-me. Defende-me com os seus carinhos, protege-me com o seu amor. Ele sabe que a flor pode ter espinhos, ou tem mesmo, ou já teve, ou pode vir a ter, e fica triste se me vê sofrer. Transmito um pensamento à flor sem mover a cabeça e sem a olhar. De repente, como um cão cínico arreganho o dente e engulo-a sem mastigar. António Gedeão |
Desejo a todos uma Feliz Páscoa |
15 março, 2010
Se houvesse degraus na terra...
Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.
Herberto Helder
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09 março, 2010
21 fevereiro, 2010
12 fevereiro, 2010
— inacabada seda viva —
tuas antenas — fios soltos
da trama de que eras tecida,
e teus olhos, dois grãos da noite
de onde o teu mistério surgia,
como caíste sobre o mundo
inábil, na manhã tão clara,
sem mãe, sem guia, sem conselho,
e rolavas por uma escada
como papel, penugem, poeira,
com mais sonho e silêncio que asas,
minha mão tosca te agarrou
com uma dura, inocente culpa,
e é cinza de lua teu corpo,
meus dedos, sua sepultura.
Já desfeita e ainda palpitante,
expiras sem noção nenhuma.
Ó bordado do véu do dia,
transparente anémona aérea!
não leves meu rosto contigo:
leva o pranto que te celebra,
no olho precário em que te acabas,
meu remorso ajoelhado leva!
Choro a tua forma violada,
miraculosa, alva, divina,
criatura de pólen, de aragem,
diáfana pétala da vida!
Choro ter pesado em teu corpo
que no estame não pesaria.
Choro esta humana insuficiência:
— a confusão dos nossos olhos
— o selvagem peso do gesto,
— cegueira — ignorância — remotos
instintos súbitos — violências
que o sonho e a graça prostram mortos
Pudesse a etéreos paraísos
ascender teu leve fantasma,
e meu coração penitente
ser a rosa desabrochada
para servir-te mel e aroma,
por toda a eternidade escrava!
E as lágrimas que por ti choro
fossem o orvalho desses campos,
— os espelhos que reflectissem
— vôo e silêncio — os teus encantos,
com a ternura humilde e o remorso
dos meus desacertos humanos!
Cecília Meireles
31 janeiro, 2010
Sal da Língua
Escuta, escuta: tenho ainda
Não é importante, eu sei, não vai
Eugénio de Andradesalvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.
27 janeiro, 2010
é doutro e mesmo,é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás,que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos,dedos ,sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes,fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar.
Pedro Tamen
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12 janeiro, 2010
07 janeiro, 2010
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Era uma vez
Uma fábula famosa,
Alimentícia
E moralizadora,
Que, em verso e prosa,
Toda gente
Inteligente,
Prudente
E sabedora
Repetia
Aos filhos,
Aos netos
E aos bisnetos.
À base duns insectos,
De que não vale a pena fixar o nome,
A fábula garantia
Que quem cantava
Morria
De fome.
E realmente...
Simplesmente,
Enquanto a fábula contava,
Um demónio secreto segredava
Ao ouvido secreto
De cada criatura
Que quem não cantava
Morria de fartura.
Miguel Torga
01 janeiro, 2010
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
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Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,
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Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,
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Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen.
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