Quem sou eu

Minha foto
Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

23 agosto, 2009






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Liberdade

– Liberdade, que estais no céu…
Rezava o padre nosso que sabia
A pedir-te, humildemente,
O pão de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.

– Liberdade, que estais na terra…
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
– Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.


Miguel Torga

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No Entardecer dos Dias de Verão

No entardecer dos dias de Verão, às vezes,
Ainda que não haja brisa nenhuma, parece
Que passa, um momento, uma leve brisa...
Mas as árvores permanecem imóveis
Em todas as folhas das suas folhas
E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,
Tiveram a ilusão do que lhes agradaria...
Ah, os sentidos, os doentes que vêem e ouvem!
Fôssemos nós como devíamos ser
E não haveria em nós necessidade de ilusão ...
Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida
E nem repararmos para que há sentidos ...
Mas graças a Deus que há imperfeição no Mundo
Porque a imperfeição é uma cousa,
E haver gente que erra é original,
E haver gente doente torna o Mundo engraçado.
Se não houvesse imperfeição, havia uma cousa a menos,
E deve haver muita cousa
Para termos muito que ver e ouvir ...

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XLI"

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Summer - Vivaldi
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20 agosto, 2009




"Apenas se vê bem com o coração, pois nas horas graves os olhos ficam cegos."

Antoine de Saint -Exupéry


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19 agosto, 2009





"
... Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos, porque o mais, por estar realizado, pertence ao mundo..."
Fernando Pessoa in Livro
do Desassossego
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Madame Butterfly, Puccini

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15 agosto, 2009

Cutest Teddy Bear por fcphoto.

O Ursinho que veio da Irlanda.

Chama-se Fingal. É peludo, cor de mel e roliço. Os olhinhos, duas castanhas daquelas bem polidinhas e brilhantes. As orelhitas espevitadas, à procura de uma palavrinha, só uma, que percebesse. Nada. Senta-se muito direitinho dentro do saco com laçarote, e por ali se deixa ficar, engolindo, de vez em quando, um suspiro. Mas nada de muito alto para que não dessem por ele.

Fingal veio da Irlanda. E sente-se sozinho dentro daquele saco. Faltam-lhe as irmãs e a mamã ursa. Tinham ficado sentadas na prateleira vermelha, na lojinha de persianas verdes da cor do trevo.

Entreabre a boquita cor-de-rosa, e devagarinho molha os lábios cor de cereja. Tem sede e fome. O seu pelo, cor de mel, está a ficar amarrotado de estar dentro do saco. Uma tristeza.

Mas porque que é que aquele rapaz-homem entrou na loja, olhou em redor, espetou o dedo e mandou embrulhá-lo. Nem tempo tivera para se despedir da mamã ursa e das suas manas. Ainda lhe doíam as lágrimas do susto. E agora está por ali, metido num saco, meio às escuras, cheiinho de medo. Bah! Se um dia pudesse castigar o rapaz homem!

Numa casa de janelas grandes e muitas flores, ouve-se o barulho líquido da água que vai correndo. O rumorejar da Ribeira da Aldeia trás uma música e encanto ao lugar. Aí vive uma menina ladina que faz anos. Chama-se Marta. Martinha dos Caracóis. Ter seis anos é ser gente, quase, quase grande. Não muito, só um bocadinho assim, assim como metade de um dedo indicador de seis anos.

Martinha andava assim meio assustada. Coisas. Crescer era tão difícil. Crescer em duas casas é muito mais difícil. Martinha sabia como era triste. O coração, da Menina dos Caracóis escuros, andava naqueles dias meio apertadinho. De vez em quando deixava pingar uma gotinha de saudade por outros tempos, quando vivia só numa casa, junto do pai e da mãe.

Martinha fazia anos. Teve uma festinha com meninos e meninas, teve o pai e a mãe, teve brinquedos. Um dia feliz. Mas… o dia estava quase, quase a acabar. Martinha teria que se despedir do pai ou da mãe, conforme tivesse calhado, e ir para a sua caminha só com um beijinho de boa noite. E ela que gostava tanto de ter dois beijinhos. Ah, estes crescidos são mesmo complicados.

E assim foi:

O pai da Martinha levou-a para a casa dele, que antes fora dos quatro, porque a Martinha tinha uma irmã. Era mais velha, e mais triste, muito caladinha. Não fazia piruetas de estragos, nem corria de braços abertos. Era uma menina crescida de olhos magoados. Dizia sempre: Ah está bem, Ah, obrigada. Chamava-se Ana.

Martinha. Não era assim. Um reboliço de vida. Estava sempre descontente. Não sabia bem porquê. Parecia-lhe sempre que, o depois era diferente do antes, que faltava qualquer coisa. Nem ela sabia bem, por isso resmungava, e refilava, e chorava, e fungava. Só sabia que tinha que respirar com barulho, muito, para que a ouvissem. Sentia-se, então, mais aliviada.

Pegou no grande saco das prendas e despejou-o no quarto. Ana zangou-se, mas não lhe ligou. Estava outra vez infeliz. Foi pegando ora brinquedos, ora nos livros, e pondo-os assim sem interesse em cima da cama ou espantalhados pelo chão. Estava naquela tira -que- põe, quando deitou os grandes olhos para o cantinho do junto à janela, e viu um saco branco, grande, com umas grandes letras verdes. Olhou. Levantou-se e foi buscá-lo. Arrastou-o até à pilha que estava no chão. Espreitou. Um ursinho! Com aqueles gestos rápidos e nervosos puxou-o cá para fora. Foi um amor à primeira vista. Tão macio, tão quentinho, tão docinho. Tão lindo, tão, tão…

-Ana, Ana olha, olha um ursinho lindo!

-Ah pois é. Gostas, dele, gostas? Que bom. É a prenda do Miguel, o primo-grande. O pai pô-lo aqui. Ficou esquecido. Deixa-me ver. Tão fofinho! Tem uns olhinhos tão meiguinhos. É mesmo um amor. Que bom Martinha! Olha, olha ele tem nome… chama-se, deixa-me ler é Fin…Fing…Fingal. É Fingal, Fingal, é isso. Esquisito!

-Ah….Pestaneja rápida como se o torvelinho de ideias dançasse muito depressa na cabeça de caracóis… Ah, eu… eu…olha, eu gosto! Responde Martinha -É isso, vai ser Fingalo.

-Não é Fingalo Martinha, é Fingal… Não percebes nada.

-Oh isso é que percebo, e depois ele é meu, e vai ser Fingalo. Pronto. Sou eu que mando! Já está!

-Tá bem tá bem, não te chateies… eu só estava a ajudar…diz-lhe Ana.

Fingalo respira fundo. Não percebeu nada, mas está feliz por estar entre as duas meninas e fora do saco. Já pode respirar. Gosta daquela boneca-menina de caracóis que o aperta muito, e lhe vai dando beijinhos. Sente-se quentinho, já tinha saudades de um miminho. Já tinha, já. Ai! Ai! A sua mamã… uma lagrimazita assoma ao canto do olho cor de avelã, mas depressa esconde o focinhito entre o peito de Martinha deixando-se cavalgar nos gestos doces da menina. Depois de muitos pinotes, suspiros e brincadeiras, Martinha está deitada na sua caminha branca de lençóis de aventuras. A seu lado, bem juntinho está Fingalo. Um bracito roliço aperta-o. Esta menina é mesmo uma coisinha fofa. Ele sente-se tão bem.

A noite vestiu já o seu pijama de estrelinhas e meia-lua quando Martinha ouve:

-Ó menina dos caracóis, eu gosto muito de ti, sabes?

Meia ensonada Martinha lá responde:

-Deixa-me lá dormir, estou tão cansadinha…

-Eu só queria conversar um bocadinho contigo assim enroscadinho. Sabes? Eu estou muito sózinho, estou longe da minha mamã… aiiiiiiiiiiii tenho tantas saudades, até me dói o coraçãozinho…se dói!

-Hummmm…

-Sabes Menina dos Caracóis lá na minha terra temos coisas muito lindas, temos fadas mágicas, e duendes, e potes de ouro, sabes? É tão linda a minha terra! Ai que saudades.

-Ó ursinho cala-te, eu quero dormir…

-Está bem. Boaa noiiiteee!

Fechou os olhinhos, meteu a línguita rosada de fora, enrugou o narizito de azeitona e deitou as mãozinhas bem papudinhas às pontas do laçarote de quadradinhos verdes que lhe pendiam sobre o peito cor de mel, enrolando-as à laia de caracol. Bocejou, revirou os olhos de avelãs, e pronto, adormeceu.

E os dias foram passando. Fingalo andava numa sarabanda nas mãos de Martinha. Mas à noite, quando ambos se deitavam, então as histórias dos duendes saltavam para os lençóis cor de sonho e aventuras.

Martinha habituou-se às conversas do seu amigo. Não estranhou que ele falasse, não estranhou que, ele se sentisse assim como ela, meio sózinho, meio perdido.

Ora um dia, melhor uma noite, daquelas em que as estrelas têm a triste ideia de irem namorar para trás da lua, Fingalo estava muito infeliz, encostadinho a Martinha suspirava, suspirava.

- O que tens Fingalo? Perguntou-lhe a menina, muito baixinho quase um cochicho., porque Ana já andava a contar que, ela falava de noite na cama, e se ria, e que a acordava quase todas as noites.

A mãe, por essa altura estava em casa da mãe, perguntou-lhe o que se passava, ao que ela respondeu com aquele brilhozinho nos olhos e voz meiguinha:

-Nada mãezinha, eu cá não me lembro de nada. Nem sabia que falava. Se calhar a Ana anda a sonhar.

As coisas que uma cabecinha de caracóis pensa para esconder o seu segredo. E naquela noite, escura e ventosa, Fingalo contou-lhe esta história:

Um dia Mayo, o duende estava sentado no seu banquinho cozendo os sapatinhos de Fang, a rainha das fadas, zangado e resmungão como era seu costume, deitando palavras azedas para o ar. Tanto rezingou e fungou que as palavras já cansadas de serem cuspidas para o ar de modo violento, acharam por bem espalharem-se pelo chão. Era uma coisa feia de ver, porque eram ásperas e magoadas. Não sorriam. Eram todas cinzentas, castanhas e pretas. Uma tristeza. Depois assim deitadas em reboliço davam um ar de desalinho. Mayo, continuava na sua resmunguice e nem reparava no que ía pelo chão da sua loja.

Quando acabou de cozer os sapatinhos lindos de Fang, levantou-se, desatou o avental e a rezingar deu um passo em frente e zás tropeçou numa coisa áspera que o aleijou. Praguejou ainda mais. E sem olhar para o chão deu um passo, tropeçou e pumba estatelou-se no chão, espetando o nariz bem afiado contra a sovela, que por ali se entretinha. As palavras que se embrulhavam sonolentas no chão, despertaram todas ao som do trambolhão e, ao verem a cena desataram todas a rir. Pasme-se. Começaram a ficar todas rosadas, amarelinhas e brilhantes. Num impulso levantaram-se, bateram as palmas e felizes começaram a dançar à volta de Mayo que continuava estatelado no chão com a ponta do nariz feita numa bola vermelha de inchada.

Irado que estava, nem a dor sentia. E aquelas coisas que lhe zumbiam à volta do rosto nem ele sabia bem o que eram, pareciam-lhe palavras que esquisitas que eram! Todas escuras de um lado e com cor do outro. Só lhe faltava a ele, o duende, ter que suportar as palavras a dançar. Pensou, mas à cautela não disse. Porque Mayo era esperto e já estava a adivinhar de onde é que elas tinham vindo.

Devagarinho, olhando-as de soslaio, lá se foi levantando. Já em pé, deitou a mão ao narigão vermelho, ajeitou as suas calças bem verdinhas, compôs a sua casaca de botões de latão bem amarelos, alisou os cabelos de prata, e todo afeitado inclinou-se, estendendo a mão para o chão, que rápida recolheu duas palavras. “Não quero”, baixou-se de novo e apanhou mais três.”Idiotas”, “estou farto”.

O duende sentou-se pasmado. Olhou para todas e começou a ler:” raios partam,” “estúpido”, “não faço”, “vão passear”, “tenho mais que fazer”” c’um caneco”, etc., etc.

Tudo o que ía dizendo, enquanto trabalhava, estava ali no chão da sua loja. A sua resmunguice e aleivosia.

Rápido pegou na vassoura de giesta para as varrer. Porém, quanto mais varria, mais elas cresciam, cresciam. Estavam já com metade da sua altura. Refilou de novo, e outras pequeninas apareceram. Parou. O que fazer? O que dizer? Dizer? Nada, nada, senão… Só pensar, mas alto aí, pensamentos bons não fosse o caso de começarem a nascer também …. De boca fechada, apertando bem os lábios finos, para não sair mesmo nada, começou a ajeitar as palavras num montinho, assim bem redondinho. Viu que quando as tratava com meiguice elas ficavam moles, moles e, entorpeciam. E até se tinham tornado bonitas, tão brilhantes, com um sorriso nas faces., as suas palavras. Devagarinho, bem devagarinho com uma pontinha de meiguice colocou-as num cestinho bem redondinho. Não ía ali, deixá-las assim. Dormiam profundamente. Decidiu-se: Foi até ao seu quintalzinho de trevos onde os narcisos sorriam. Num cantinho bem debaixo da macieira florida, abriu uma cova que forrou de flores e folhas. Cheirava tão bem. Uma a uma deitou as suas palavras adormecidas. Tapou-as com mais flores e folhas. Deixou-as assim aconchegadinhas na terra.

Os dias passaram, e as palavras não acordaram. Continuavam sorrindo rosadinhas no seu soninho.

Mayo, por esta altura já assobiava enquanto cosia os sapatinhos das fadas. A sua loja que anteriormente era escura e triste, tinha gora todo o santo dia o sol a bater-lhe, até tornando-se muito mais quentinha. Até o pintassilgo vinha trinar-lhe os bons-dias. Os outros duendes paravam, espreitavam e saudavam-no. Mayo respondia sempre:

- Um Feliz dia, meu Amigo!

E os outros respondiam-lhe sorrindo: - Para ti também, Mayo.

Entretanto começou a crescer na cabeça de Mayo uma ideia. Iria fazer um belo chàrn.

No domingo seguinte, quando o sol espreitou entre a bruma líquida, Mayo levantou-se, vestiu-se, e dirigiu-se para o seu quintalzinho. Estava todo em flor. As letras continuavam adormecidas e rosadas. Debaixo da macieira de flores brancas. Voltou a fazer-lhes a cama, desta vez de flores rosadas de pessegueiro, alguns lírios amarelos e muitas folhinhas de quatro trevos. Estavam lindas. Depois foi até ao rio e tirou os seixos mais perfeitos, brancos e rosados. Foi e veio muitas vezes até ter um pilha cor-de-rosa e branquinha. Depois começou a tapar a caminha das letras. Uma aqui, outra ali até estar um montinho bem redondinho. E assim foi, dia após dia, acrescentava uma pedra cada vez mais linda à sua chàrn.

Martinha puxou-lhe pela bochecha, numa vozinha muito doce, perguntou:

- Ó Fingalo diz-me lá, o que é uma chàrn? Eu nunca ouvi.

-Pois é … é… é… olha, pergunta à tua mamã amanhã… tá bem?

-Tá bem eu pergunto, continua lá com a tua história linda…

Dizia eu, que Mayo o duende, todos os dias trazia uma pedra cada vez mais bonita do que a do dia anterior. E o montinho ía crescendo, crescendo. Era lindo, tão lindo. Quando o sol lhe batia soltavam-se estrelinhas de luz e, à noite, quando a lua se vinha sentar lá no alto, mesmo por cima das pedrinhas, as estrelinhas formavam letras que dançavam. Ouvia-se uma música suave que encantava o lugar. Era a magia. Mas o que era espantoso, mais espantoso de tudo era que Mayo estava cada vez mais contente, mais jovial. Da sua boca soltavam-se apenas palavras doces, mágicas e sorridentes. Por aqueles dias tornou-se num duende gentil e muito educado. Passou a ser o duende mais folgazão da Irlanda.

Foi assim que a primeiro chàrn nasceu, foi assim que as palavras feias adormeceram, foi assim que Mayo duende mais feliz de toda a Irlanda.

- Fingalo, a história já acabou?

- Já, Menina dos Caracóis.

Martinha deu um beijinho no seu ursinho, fechou as persianas do olhar e pôs-se a pensar com os seus botões: “Pois, eu também sou resmungona, fico triste e tenho assim uma onda quente que rebenta. Se me acontece o mesmo que ao duende? Se começo a cuspir palavras feias? Ai que feio! Depois ainda me gozam. Não, não pode ser assim. Tenho que me emendar, ai se tenho, tenho…

Amanhã pergunto à mamã o que é um chàrn, é isso…é…, agora estou com muito soninho...Aahaha…

No dia seguinte bem de manhãzinha levantou-se, arranjou-se e foi sentar-se à mesa do pequeno-almoço na cozinha muito caladinha, com um sorriso de orelha a orelha. A mamã que não estava muito habituada aquela Martinha tão bem disposta, olhou-a uma vez, duas vezes e pensou lá para ela “ deve estar a rebentar alguma coisa… deve, deve.

Ouviu-se, então, uma vozinha muito meiguinha saída de uma boquita, que o leite com chocolate tornava ainda mais doce, a pergunta:

- Mamã o que é um chàrn?

A mamã enrugou a testa e engasgou-se. Olhou-a muito fixamente e perguntou-lhe:

- Onde é que ouviste isso Martinha?

-Ah mamã foi, foi … na Escola.

- E não te explicaram?

- Eu não ouvi. Mas o que é mamã?

- Olha Martinha é uma palavra celta muito antiga e quer dizer Mamoa.

- Mamoa? Mamoa, …Mamoa como a de Sta Eufémia? Aquela que fomos quando ainda estávamos todos juntos, o pai, tu e nós? Aquele passeio na serra?

- Isso, Martinha.

-Ah, já percebi!

Desde então, a Menina dos Caracóis guarda num cantinho do jardim pedrinhas brancas que vai apanhando. São as palavras zangadas, que de vez em quando se escapulem. Martinha é já uma menina muito alegre, chispando alegria nos olhos brilhantes, nas covinhas das faces rosadas, ou no sorriso ladino de uns lábios de cereja.

E para acabar esta história, digo-vos que Fingalo continua fofo e cor de mel, dormindo entre os lençóis de aventura, Martinha a menina dos caracóis permanece um derriço de meiguice a seu lado, e que as histórias de lendas e duendes continuam a fazer os seus caracóis dançarem no vento da imaginação.

-Aahaha já é tarde. Boa noite meus meninos!


Barcarolle - Peter Ilyich Tchaikowsky

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30 julho, 2009

LIszt

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"Fragmentosdanoitecomflores. " escolheu este trecho para acompanhar as suas respostas a um meme. Porque o acho lindissímo aqui o deixo.A beleza e a serenidade vestem o tempo.
Até Breve.
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29 julho, 2009

28 julho, 2009

O MAR




Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.

E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.

Sophia de Mello Breyner Andresen


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27 julho, 2009

Mercier (Merce) Philip Cunningham (16 de Abril, 1919 – 26 Julho, 2009) um dos mais influentes coreógrafos do século XX e símbolo da avant-garde americana durante mais de 50 anos. Merce Cunningham foi também considerado um dos maiores bailarinos americanos.




16 julho, 2009

O Relógio



O Relógio

Redondo de ponteiros lisos, simples. Os traços das horas sobressaem metálicos. A caixa é de prata trabalhada em baixo relevo. Um homem lança as sementes à terra. Em redor uma árvore dobra-se pejada de frutos cuja sombra é trabalhada por riscos mais escuros na prata. A corrente de aros bem encadeados e pesados oscila entre a mão e o bolso.

Na cozinha escura, avô e neta sopesam o compasso do tempo.

Três horas da tarde.

Ela no seu bibe azul e tranças negras, olhar imenso de veludo escuro e luz de porvir, ele já de barbas brancas, figura quase redonda se bem que ainda ligeira, colete bem-posto, camisa alva e laço negro. Aquele seu jeito de artista, mais a palhinha que o acompanha por todo o lado. O chapéu de palha, a palhinha, assim carinhosamente chamado e aconchegado.

Teresinha num jeitinho de menina ainda pequenina, toca suavemente com as pontas dos dedos na tampa. O frio do metal espanta-a. O relógio do avô. A magia que sempre sonhou. Ali sob a ponta dos seus dedinhos. Uma trança descai-lhe, para o peitilho do bibe azul. Um laçarote branco segura-lhe as pontas. Atira-a para trás zangada. A trança fê-la empurrar a tampa e fechar o relógio. O tic-tac é agora mais longe, a magia fugiu.

O avô Manuel sorri e puxa a corrente. Coloca o relógio no bolso. Levanta-se do cadeirão que chia nas molas cansadas. Teresinha olha-o nas suas calças e colete, na camisa branca e no laço, no Palhinhas queimado do sol com a sua fita de seda azul já ruça, na barba e no bigode cor de neve em triângulo que ele tanto gosta de dedilhar enquanto olha, pensa ou simplesmente fala, Teresinha sente a figura do avô encher-lhe a imaginação. O avô Manuel, o avô pintor, cantor, o avô das histórias, o avô.

A pequenita suspira. O momento do encanto acabou, e tudo por causa da trança. Ah, se pudesse, cortava-as. Gostava de ter a cabeça livre, de puder mexê-la sem peso. Mas a mãe, sempre com as tranças, os laços, os bibes, as gomas, a ordem.

Olha o avô Manuel, entre um sorriso e uma bolha de lágrima.

Displicente, ele, amacia-lhe o rostinho num gesto meigo. E entre dentes murmura:

-“ Logo conto-te uma história, agora vai. Vai ter com as tuas irmãs.”

Cruza os bracitos sobre o bibe azul e olha o avô com aqueles olhos de veludos escuro. Tão macios e pensativos. Murmura:

-Logo? Oh avô, só logo? Porque não conta agora, que estou aqui?

-Vai, vai...

Ela baixa os olhos para o redondo dos sapatos azuis, deita um suspiro, deixa pender os braços em baloiço e move-se contrafeita para a porta. Dali para o quintal. Dali para a criançada. Os risos e as correrias apanham-na. Lá vai ela de bibe azul e tranças ao vento. As horas são outras.

As ameixas já espirram. O sol ilumina a idade. São cinco da tarde.

……..

Um arrepio fê-la estremecer. Aperta o casaco de malha fluida, ajeita o caracol revolto e olha o céu negro. A borrasca vem aí. Poisa a caneta. Hoje a alma não escreve. As palavras baralham-se entre si, pesadas de sentido. Hoje nada flui. As horas do tempo. Olha o relógio deitado na mesa. A tampa deixa ver uns ponteiros metálicos tal como outrora. Seis horas. O sol a cobrir a idade.

Já vão quarenta e muitos anos, desde daquela tarde em que o avô lhe abrira a tampa do relógio. O tempo soltara-se e vestira-a. A magia da caixinha tinha-a sempre envolvido no seu caminhar por entre os anos. Abre a porta de vidro. A seus pés, o campo lamuria-se. Imperceptivelmente treme, e aperta mais ainda, o casaco. Olha em frente de olhos bem abertos. O veludo está lá, mais escondido, mas ainda tecido. Desce o degrau. Sente a erva fria mordendo o peito do pé.

Divaga por entre os torrões secos da terra, bordejados aqui e ali de pedras que lhe vão moendo os passos. O carreiro estende-se num tropeço de vento de vontade. Subindo, subindo, monte acima, Teresa deixa que os pensamentos se divertem no azul quase escuro, que vem tapar o dia. Há naquele capote da noite, uma tal sensação de celsitude que a alaga.

Mangas de monja, quando cruzadas transpiram o sossego.

A saia de folhos dança em voo lateral, ao correr do vento, que assobia a melodia do Outono. Teresa torna a apertar o casaco de lã como se simplesmente aconchegasse a si as horas da vida. O trejeito maquinal de conforto, coberto da memória dos anos. Apertar o casaco contra si, cruzar dos braços sobre o peito, gestos de um corpo sozinho.

A solidão e as horas.

Foi sempre assim. O tempo liquefez-se entre os dedos, as mãos, os braços, o corpo e o pensamento. Foi o tempo que a fez crescer mulher, foi o tempo que lhe deu e roubou os afectos, foi ainda o tempo que acerejou as suas palavras. A sua safra de amor.

No corredor frio da velha casa as portadas fecharam-se ao dia. O casarão retomou a sua letargia. Sentada na velha saleta, onde o puído dos cadeirões abraça a poalha do tempo, Teresa inspira o olhar no rectângulo da janela que espreita o rio. Quase aos pés da casa, daquele lado, o Douro estende as águas após um andarilhar por entre as retortas dos montes. A noite também lhe traz o descanso. Naquele sincopar de águas lentas e escuras ,o espírito do campo desce às entranhas húmido de líquido. E o vento assobia a canção das horas. Nove horas.

Na escrivaninha os papéis espargem as palavras riscadas. A toada do pensamento quebra-se entre imagens. Dói por demais. Difusas as horas do tempo encorparam as personagens do seu mundo. Gente que foi, que está, e que vai. A corda redonda da vida. Os seus personagens meros retratos. Por mais que se esforce a vida não entra nas palavras, a expressão é sempre despojada de luz. Apenas quando a alma dói as palavras traduzem melhor, porém quando ri, o fluir do brilho deslava-se nas sílabas. Lenta e sedento teclado desenha a história, uma história como outras, no entanto esta história tem tempo.

O tempo roubado. Dez horas

O tempo da memória. Meia-noite.

………………………..

Naquela tarde de Novembro a chuva lavava o asfalto em bátegas fortes, dentro da livraria o calor amarelo das luzes aquecia o ambiente. Na mesa redonda um casal. Uma mulher jovem de boca em riso e olhar fulgente. Ele maduro, clássico, com um ar tremendamente blasé. Um olhar ausente e presente. Não está ali, estando. Como se o momento já tivesse existido. Manuseiam dois livros. Iguais. As capas são os espelhos. Há curiosidade, voracidade e displicência. A leitura é rápida. Um livro dela. Um pedaço de tempo. Do tempo deles, também.

Em cima da mesa redonda, as chávenas de café, mortas de líquido jazem desalinhadas nos pires que as servem, vazias de horas, todavia mesmo por debaixo do tampo , naquele redondo côncavo, umas pernas esguias traçam-se e destraçam-se. O sapato de salto afilado descai. Na ponta, o pé dança o ritmo da leitura. Lenta e suavemente. Pára. A perna destraça-se de novo. Olha o relógio. Três da tarde.

Tempo de acontecer..








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O tempo é mais de lazer do que de criar. Uma pausa. Através da música recordemos velhas glórias da sétima arte.Boa noite e divirtam-se, sonhando noite dentro...


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08 julho, 2009



Auto-retrato

Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.

Natália Correia


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01 julho, 2009

Carlota




Carlota

O dia tinha fechado a janela. Na cozinha o tacho fervilhava sobre o lume espevitado. A tampa dançava sob a quentura da água vestida de arroz, espirrando espuma branca. O vapor de água pintava de gotículas o vidro da janela. No intervalo da cortina, Carlota via o azul meio escuro borrar a tela por de cima. Pegou na colher de pau, levantou a tampa e mexeu a água, sentiu os bagos inchados e moles. Estavam já cozidos. Colocou a tampa de esguelha para que o líquido não subisse mais, baixou o lume, e abriu a porta da cozinha para o jardim.

Sentou-se no banquinho de madeira esbatido de verniz e de tom. Olhou em redor aspirando o aroma das rosas que se abriam. Era o seu tempo preferido. Aquele interlúdio do dia quando as cores se adensam e os sons se esbatem. Podia ouvir-se, ouvindo tudo em redor. Mentalmente fazia o epitáfio das horas.

Um rodar de pneus mais uma buzinadela, um abrir de portão, eis que, a vida a clamava de volta. Carlota olhou, esboçou aquele seu sorriso meigo, levantou-se, e calmamente dirigiu-se para a cozinha. Estava na hora de retomar outras lides. Era tempo de família.

Todos os dias a cena repetia-se. O marido e os filhos chegavam a casa depois dela. Ele apanhava-os. Ela já chegara, e tinha o jantar quase pronto. Breve segmento do dia em que o barulho sobrepunha o conteúdo. Os garotos corriam direitos para os seus interesses: Pedro para a saleta onde rápido ligava a televisão, Inês direita que nem uma flecha para o quarto, vá lá saber fazer o quê. Claro que sabia, mas preferia fazer que não.

Francisco, o marido entrava na cozinha, dizia aquele olá franco, colocava o braço sobre o ombro, dava-lhe aquele beijo trivial e dizia: “-Novidades? O dia como foi?”

Invariavelmente a resposta ouvia-se: “-”Foi. Estou cansada. Tudo igual, sempre.

Ele retorquia: “-Ainda falta tanto para as férias”. Depois seguia-se: “- O que é o jantar?”

Dada a resposta girava sobre si acrescentando: “-Vou ver os miúdos. E dar-lhe uma mãozinha nos trabalhos.”

Pronto. Estava de novo sozinha. Andava rápida no seu vai e vem. Tacho aqui, panela ali, escorre daqui, mexe acolá. E o cheiro borbulhava pelas paredes da cozinha amornando o ambiente. Carlota continuou mexendo, remexendo, verificando até que os tachos descansaram, o lume dormitou e o avental voou para trás a porta.

Era a hora de jantar.

Chamou pelos filhos. Respondeu o marido.

Em tropel naquele empurra que empurra, “está quieto”, “ó mãe é sempre assim”,” estou farta deste miúdo”, “calados meninos,” a mesa sentou-se de rostos. O silêncio caiu mal as bocas se entreabriram. Os dentes eclodiram ao compasso do movimento E na toalha verde de raminhos vermelhos e amarelos, os pratos mais os talheres dançaram o jantar.

Carlota suspirou.

Mais um dia. A rotina inundou-a.

Fechou o rosto. Suspirou-lhe a alma.

Subiu as escadas, entrou no quarto. Olhou para a cama mexida de lençóis enrolados. Francisco dormia, melhor ressonava naquele andamento de fanfarra entupida. Olhou-o, antes de se olhar. Não sorriu. Olhou somente.

Depois entrou na casa de banho, despiu-se, meteu-se na banheira e distendeu-se. Avaliou-se aí. Também não sorriu.

Limpa de cansaço e fresca de amanhã entrou na cama. Não se encostou. Espraiou-se, esticou as pernas bem até ao fundo, cruzou os braços no ventre liso, fechou os olhos e deixou-se tomar pela sonolência.

Amava de sobremaneira esta neblina que a envolvia. Era por essa altura que os sonhos se dilatavam de tal forma que quase se tornavam reais. O seu tempo de ócio, vazio de solicitações e cheio de languidez de fêmea. Naquele meio-tom, o sonho cavalgou-a de tal forma que deu por si enroscada na perna musculada de alguém cujo bafo a acalentava em sincopadas estrofes de amor. Deixou-se cavalgar, deixou-se voar. Rodou-se-lhe a cabeça, mais o corpo e o pensamento. Uma roda sem vintém de sentido batendo os acordes dos segundos. Ouvia ao longe um badalar, qual som brônzeo de uma moral que teimava em querer despertá-la. Grávida de sensações deixou-se tomar cada vez mais e mais. Um fio, pérola aguada de sal molhou-lhe o rosto, pingou no seio esquerdo escorrendo lenta para o ventre, e daí para a foz do corpo.

Carlota sorria. Sorriso saciado.

No lado da cama a fanfarra entupiu. Parou. Rumorejou, voltou-se. Abriu os olhos.

Esticou o braço. Ali, mesmo ao jeito da mão palpitou uma coxa morna e túrgida.

Acordou de vez.

Enovelou-se devagarinho, assim a modo de pedido e premência. Em feição de quem tem sem ter, mas tem na certeza, a vitória do ter.

Carlota moveu o pescoço. Carlota não quis acordar.

A perna teimosa sussurrava, roçava, premia. A perna encalhou. Carlota acordou.

Estremunhada.

Voltou-se na almofada que não no corpo. A premência mais o sonho sacudiam-lhe o torpor Encostou-se e bebeu o calor morno, mais o gesto, mais a vontade, mais o gosto.

Acabou.

Está desperta. Acordada. Sem sonho.

Volta-se e mentalmente pensa no dia seguinte.

Cerra as pálpebras, estende a mão por cima do corpo, ensaia uma carícia breve no dorso de Francisco. Recolhe-se

O sentir sentou-se no vão da madrugada da ilusão. Treme, não sabe se de solidão, se de tempo. Treme na madrugada do dia que veio depois.




Memory - Pan Flute