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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

29 fevereiro, 2016

Mulheres com Rosto



Mulheres com Rosto
I
Maria da Nazareth senta-se na velha poltrona. Silenciosamente move os olhos para a janela. O olhar esbarra nas cortinas que volteiam docemente. Meia janela aberta. Uma brisa, um sopro de vento inunda-lhe o rosto. A velha senhora remexe-se, perscruta o exterior, encosta a cabeça na orelha na poltrona, fecha os olhos e deixa-se transportar pelo tempo murmurando:
-Tanta vida, tanto tempo, tanta dor.
…………………….
O sumo da maçã escorre-lhe pelas comissuras enquanto trinca metodicamente. Levanta a mão esquerda, e com as costas, limpa os lábios. Na direita, a maçã vermelha presa entre o indicador e o polegar, brilha branca e suculenta. Tem nove anos. Verdes e frescos como o vestidinho de nervuras que lhe cobre o corpito roliço.
No olhar verde-água há determinação. Uma centelha de fulgor. Rebola a cabeça na direção da brisa. A cada trinca o sumo escorre pelo queixo. Boa maçã. Ácida e carnuda. No peitilho de vestido, o verde das nervuras orvalha-se. Saliva e sumo. Hábil revira a maçã, outra trincadela, uma mastigadela e um suspiro. Os caracóis loiros dançam no movimento dos maxilares. Maria e a maçã. Atira o caroço pelos ares. Depois espreita faceira, se alguém viu, ou melhor, se alguém levou com o objecto, e não ouvindo resmungos entra em casa.
A penumbra cobre o corredor de paredes altas. O soalho de tábuas já gastas mas bem polidas chia no cheiro de cera. Não se ouve vivalma. Devem estar a dormir. São três da tarde. O dia é de calor. Agosto. A casa grande descansa. Aborrecida salta de tábua em tábua num pé-coxinho de menina. Um, dois, três e quatro. Um e dois, três e quatro. Assim até á porta que dá para o salão. Estaca à entrada e franze o nariz num trejeito muito seu. Aquele quadro mesmo em cima do cadeirão de palhinha irrita-a. Diz a mãe que é de sua Alteza Real, o príncipe D. Luís, pois será mas tem cara de emproado. Claro que não o diz em voz alta, aliás cá em casa não se diz nada em voz alta, pelo menos as crianças. E ela é uma delas. Uma irmã, mais três irmãos. Maria Nazareth, Zinha para todos, nem é a mais nova, nem a mais velha, nem a do meio em cinco. É a terceira. Um lugar distraído numa família numerosa. Entre três rapazes ela é a menina. Mas não possui o encanto das primas, e muito menos a sua doçura. Zinha é diferente.
Habituara-se a deslizar, a passar despercebida, a não falar muito e a acenar mais. É bom ser a terceira em tudo. Não tem que manter a compostura forçada de João, o mais velho, nem ter a ponderação trabalhada de Caetano, nem muito menos esconder a estouvadice de José. Zinha, a terceira é simplesmente o vento da casa. Vai e vem.
Gosta daquelas tardes nuas de vozes e vestidas e silêncio. Sente-se crescer porque se ouve. Os seus pensamentos disparam em todos os sentidos. O seu mundo gira por entre os muros altos da quinta, os casais em redor, a quinta dos pavões, a vila ao fundo da estrada no virar choupos, a praia para lá dos vinhedos de S. Gião e as duas vezes que foi à capital.
Maria, a terceira, pára um momento. Recorda a cidade grande. A mãe cheia de sorrisos, de gestos, de braço dado com o pai e em franca tagarelice com a madrinha. Estava feliz, a mãe e como era bela, muito. Demasiado. A mãe que ela adora mas que a faz sentir sempre insignificante, e o pai que a confunde. Há nele o misto de presença ausente. Sente que ele é um pedaço do seu vento. Sempre que pensa nele, estremece. Não sabe porquê. É algo que a percorre como um arrepio. E no entanto, ele afaga-a sorrindo, numa distracção feita de ternura perdida. Um ritual feito de sopros. Gestos conluiados de afecto e pudor. O pai que os olha aos quatro como se penitenciasse, mergulhando de imediato o olhar no lago profundo da mãe. Por vezes pensa que eles não são dois, mas um. Sempre juntos, sempre rindo entre eles, sempre partindo e chegando. Não sabe onde vão e porque vão. Mas também não se importa, o seu mundo está do outro lado da porta. Quando desce os degraus e pisa a terra abrindo os braços ou simplesmente baloiçando as saias sob o bibe, sente a brisa vinda do mar e o calor dos campos.
II
A porta do varandim que dá sobre o lado sul do jardim mantém-se fechada., os cortinados porém estão ligeiramente afastados. No recanto, entre a penumbra da parede e a luz da janela, senta-se uma mulher. Na escrivaninha pequenos papéis, que ela, deliberadamente, vai debitando no livro de capa castanha. Figura fremente de contornos graciosos, a mulher nos seus trinta e picos anos revela -se num rosto de linhas macias e púberes. O olhar fixa-se algures entre as páginas e o espaço mais além. Lentamente, passa os dedos esguios pelos cabelos de avelã enrolados numa magnífica trança ao alto. Quem a vê de costas hipnotiza-se pela linha altiva do pescoço, pelos ombros direitos porém graciosos. O tronco reflecte-se. O pescoço inclina-se para o lado direito num movimento que a mão estabelece ao escrever. Pára por momentos. Relê o que escrevera. Suspira.
Sopra suavemente, depois assenta o mata-borrão rosa. Levanta-o cuidadosamente. Na página, a letra dançante aponta, inexorável, as despesas. Olha os algarismos, mira-os com a dureza de quem lhe desventra o presente. Não é fácil governar a sua casa. A sua mão de ferro estende-se pelo casario fora, todavia é impotente perante os desvarios de Caetano.
Suspira de novo.
Maria P. fecha com força o livro de capa castanha. Abre uma gaveta e coloca-o no seu interior. Estende o braço para o lado esquerdo, abre igualmente uma gavetinha retirando um livro, desta vez almofadado, e de capa grená. Abre-o docemente. Puxa um pouco a cadeira para trás e sorrindo relê as suas últimas anotações
A sua ida a Lisboa. Ela e Caetano. Foram uns dias extraordinários. Sentem-se felizes quando estão sós sem os filhos, sem as questões menores do dia-a-dia, só os dois. Saltitando entre o teatro e as compras. O passeio na avenida, os encontros, as novidades. Vive. Ah, como ela se sente reviver. Os velhos tempos. A sua infância, a sua mocidade. Depois, depois… o amor, o desmoronar, o reconstruir, o amor… é quase feliz, quase…a família que a apagou. Já se têm cruzado. Não baixa os olhos. Nunca!
Os filhos. Deve pensar neles. Tem tempo. São ainda crianças. João tem onze quase doze. É voluntarioso, firme e duro. Não é fácil o seu primogénito. Depois Caetano nos seus dez anos, um rapaz muito sensato, muito calmo. Caetano deveria ser o mais velho. Maria da Nazaré vem a seguir, uma menina bonita mas muito solitária. Vagueia pela quinta numa ânsia de liberdade que a assusta. Não brinca como as outras meninas da sua idade. Lê, lê em excesso, mas Caetano permite-lhe as extravagâncias. Zinha preocupa-a. E o seu benjamim, o seu menino, José. O mais doce dos seus filhos. Tem só três anos mas é o seu derriço. José é o mais amado de todos eles. Tem o porte aristocrático, o olhar enorme dos olhos negros e o sol nos cabelos que lhe caem em cachos. É lindo o seu filhinho. Caetano costuma dizer-lhe que José é o seu maior rival.
Conheceram-se. Ela tinha dezasseis anos e ele vinte e três Durante sete anos amaram-se entre os vinhedos com o Sisandro a dividi-los. Até que o escândalo rebentou. Maria foi banida e Caetano aceitou-a. Tomou-a como sua legítima mulher. Afinal já o era há tanto tempo. Mas sem norma. A norma vestiu-os finalmente, todavia a fome que os devorava continuou. Há catorze anos que se amam. Loucos e vorazes. Famintos um do outro. Aquela fome que nunca se sacia. Não percebe o que os conduz, o que os envolve. Algo de inexoravelmente poderoso. Uma força, uma ânsia. Alimentam-se por momentos e logo, logo tudo volta ao principio tal como há catorze anos. Ela sabe, ele sabe, que só se completam quando mergulham um no outro, quando se sentem e respiram num só. A sua vontade, a vontade dele perdem-se algures entre o desejo e o êxtase. Os seus corpos são a matéria que os une. Os seus corpos são as conchas onde bebem o líquido da vida. São felizes. Tanto que magoa. Os outros, os outros que desconhecem o seu deslumbramento., não percebem aquela cumplicidade, aquela dependência, aquela unicidade. Acham-nos quase excêntricos. Ah! Ah! Ah! Ri Maria. A ignorância é mãe de muitas palavras.
Por vezes sente uma pequena aguilhoada estremecê-la. Os seus filhos. Os seus. Sabe que para Caetano eles existem porque saíram dela. Caetano é o amante, não o pai. Olha os filhos como ramos acidentais, consequência inevitável do amor que os absorve. Todavia, ela sabe que a seu modo os acarinha, que se sente contente por eles existirem mas não admite que os filhos interfiram na sua vida. Nas suas vidas. Na dos dois e na dele, sobretudo. Todo o resto lhe é quase indiferente. Passa pela vida aflorando os dias. Caetano é um sedutor. Seduz pelo prazer da sedução, porém logo se cansa. Apenas ela não o aborrece, antes o espicaça. Maria sabe-o e sorri. Sorri de prazer e de vitória. O seu poder de mulher fá-la desabrochar em cada verão de S. Gião.
Já em pé afasta a cortina rendada e observa os campos que se estendem à sua frente. As cores magoam os sentidos. Nem vivalma.
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23 dezembro, 2015



. .Porque vindo de não sei onde chega o cheiro de Natal, porque é tempo de corações mais de rabanadas, porque o vazio dos dias se vai aquecendo nas horas feitas de amor, porque as memórias são de canela envolta em açúcar doirado, porque nos aspargimos no calor da Boa Vontade ,porque todos somos à nossa maneira Reis Magos da Vida. Um Feliz Natal para todos vós e Um 2016 cheio de coisas boas.

08 dezembro, 2015

Poema de Natal
Vinicius de Moraes

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

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30 novembro, 2015

Quem Pensa, Ri

Quem raciocina com intensidade e violência tem que expressar com descongestionamento. Rir não é não ter razão. Não há relação entre a solenidade e a verdade. Deixemos a seriedade aos que têm ideais em que perdem tempo e jeito. Pensemos, e acabemos de pensar com uma gargalhada.
A dor do mundo é grande? Talvez seja. Como não há metro para ela, não sabemos. Mas, ainda que seja grande, curar-se-á aumentando-a com a nossa?
Pensa a sério mas não com sério. Pensa profundamente, mas não às escuras. Quer fortemente, mas não com as sobrancelhas.
Sinceros? Quantos gramas de verdade é que a vossa sinceridade pesa?
Quem pensa, ri; só não ri quem só faz cara que pensa.
Ri, bruto!

Fernando Pessoa, 'Inéditos'
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#WHYSYRIA A crise da Síria bem contada em 10 minutos e 15 mapas



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Ode à Paz

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
                               deixa passar a Vida!

Natália Correia, in "Inéditos (1985/1990)"
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25 outubro, 2015

Oa anos da Vida.

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Nos encontramos em um momento no qual nos permitimos crescer e curar aquelas feridas e questões que haviam ficado sem resolver na primeira metade da nossa vida.
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Quantos anos tenho?
Tenho a idade em que as coisas são vistas com mais calma, mas com o interesse de seguir crescendo.
Tenho os anos em que os sonhos começam a acariciar com os dedos e as ilusões se convertem em esperança.
Tenho os anos em que o amor, às vezes, é uma chama intensa, ansiosa por consumir-se no fogo de uma paixão desejada.
E outras vezes é uma ressaca de paz, como o entardecer em uma praia.
Quantos anos tenho?
Não preciso de um número para marcar, pois meus anseios alcançados, as lágrimas que derramei pelo caminho ao ver minhas ilusões despedaçadas…
Valem muito mais que isso
O que importa se faço vinte, quarenta ou sessenta?!
O que importa é a idade que sinto.
Tenho os anos que necessito para viver livre e sem medos.
Para seguir sem temor pela trilha, pois levo comigo a experiência adquirida e a força de meus anseios.
Quantos anos tenho? Isso a quem importa?
Tenho os anos necessários para perder o medo e fazer o que quero e o que sinto.
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José Saramago
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O poema

As árvores têm o nome de árvores
e a pedra é pedra. Mas a mulher é árvore
e no pátio um sopro: uma lagartixa sem nome.
A mão desliza nos caminhos minúsculos.
A caneta escreve com a saliva das lâmpadas.
Alegria do sono numa virilha obscura.
Alguém escreve na erva e a erva é a sua camisa.
Tudo se traduz: músculos, nervos, papeis.
Come-se a epiderme frágil de um fantasma.
Quem ouve agora a voz cheia de areia?
As palavras agitam-se entre silhuetas esguias.
Dedos acariciam pedras e folhas, ventres.
Fibras e tendões produzem suor e tinta.
O alento das árvores invade os pequenos vocábulos.
Sem língua e sem dedos o poema caminha
num verde corredor para um arbusto de água. 


António Ramos Rosa

11 setembro, 2015

A Idade não nos Torna mais Sábios

As pessoas imaginam que precisamos de chegar a velhos para ficarmos sábios, mas, na verdade, à medida que os anos avançam, é difícil mantermo-nos tão sábios como éramos. De facto, o homem torna-se um ser distinto em diferentes etapas da vida. Mas ele não pode dizer que se tornou melhor, e, em alguns aspectos, é igualmente provável que ele esteja certo aos vinte ou aos sessenta. Vemos o mundo de um modo a partir da planície, de outro a partir do topo de uma escarpa, e de outro ainda dos flancos de uma cordilheira. De alguns desses pontos podemos ver uma porção maior do mundo que de outros, mas isso é tudo. Não se pode dizer que vemos de modo mais verdadeiro de um desses pontos que dos restantes.


Johann Wolfgang von Goethe, in "Conversações com Johann Peter Eckermann"



   


24 agosto, 2015

A Forma Justa

Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas". .

08 agosto, 2015

O Actor
O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor pôe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.

O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.

Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.

O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.

Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas -
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.

Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.

O actor em estado geral de graça.. .

Herberto Helder

28 julho, 2015

Solidariedade




Hoje ao ouvir o Secretário de Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, Sérgio Monteiro sobre a privatização da REFER tive, mais do que nunca, a noção exata de que o estado social desapareceu, caducou, pereceu e jaz enterrado, algures no cemitério, não dos Prazeres, mas sim da Solidariedade.
O cavalheiro, gestor de formação académica, tornou claro que o lucro é a parte necessária e primordial na existência de qualquer empresa, seja ela mesmo de interesse da coisa comum, isto é do Estado. Presentemente vivemos no primado do lucro. Sejam hospitais, escolas, transportes públicos e a fins. Tudo tem que ser lucrativo sob a pena de ter que ser privatizado rapidamente, para que o Estado não seja onerado, e assim o coletivo nacional usufrua de uma estabilidade económica que lhe permitira viver qual Pais das Maravilhas sem Alice.
Ora e segundo a minha perspectiva pessoal, existem vários bens perecíveis neste Estado, os quais continuam, sine die, a delapidar o erário público sem quaisquer benefícios para o coletivo português. Como exemplo aponto os preclaríssimos deputados da nação, que não só estiolam tempo como muito do nosso dinheiro, em nome da democracia, ou então, quando esta não é suficiente, em oratórias egocêntricas cujo conteúdo bajula as mentes políticas dos seus pretores, que diga-se em abono da verdade, há já muito estão desligados da justiça e seus critérios. Para estes não existe o alerta vermelho do lucro ou da contenção, a razão ou não razão desta ausência espanta-me.
Outras pequenas grandes picardias económicas que os sucessivos governos têm feito, gasto, delapidado, vendilhado mais do que vendido e doado é quase uma outra estória infantil. Dar-lhe-ia os títulos de “Ali Babá e os quarenta Ladrões” , “O Lobo e o Cordeiro” e “Pinóquio”. Abstenho-me do final moral das mesmas. Por demais óbvio.
Pois estes senhores que se sentam em estofadas cadeiras na casa da democracia usurpam muito dos nossos míseros euros, passeiam-se nos degraus do poder, saltam as escadas da importância e sorriem descaradamente quando interpelados sobre as suas pluriatividades. Na verdade escolhidos a dedo, os lugares de magistrados da nação não têm que dar lucro e assim sendo, estes são não clientes da casada democracia em oposição ao comum do cidadão que quando vai tratar a sua saúde é um cliente contributivo obrigatório da casa da saúde.
Contrassensos de uma sociedade per si antinómica, onde o pensamento e as palavras esvaziadas são passiveis de benesses conquanto o bem-estar social se tornou-se um ação económica.
Mas todo este estado não é apenas causativo de mal-estar lusitano. Espalha-se também por outros países e, sobretudo, por alguns cidadãos da velha Europa cuja faixa etária é dita como sénior. Nascidos nos idos de 50 e 60 têm ainda incrustado na pele a noção de ser solidário, de bem comum. O Estado Social foi intuito que levou uns tantos “visionários”, à luz do presente, a sonhar por uma Europa comum. Robert Schumann certamente que deve revolver-se lá no sitio onde está, ao ver os caminhos tortuosos da velha Europa. Naturalmente que ser solidário, não é, nem será, dar subsídios a rodos sem sequer, na maioria das vezes, os mesmos serem fiscalizados na sua consecução, nem muito menos viver em estado de parasitismo coletivo. Porque os mais ricos têm que dar aos mais pobres. Isso não é ser solidário isso é ser quase “Zé do Telhado” e a conjuntura socioeconómica, pese todos os quid pro quota melhorou abissalmente, logo a solidariedade passa por um bem social que seja extensível a todos dependendo naturalmente do grau das suas carências, sejam económicas, sociais ou afetivas. Fala-se, hoje em dia, muito em solidariedade mediática. O mediatismo parece ser a panaceia que limpa as consciências. Tudo o que se viu, lavou-se. Sorri-se e fica-se feliz. O todo que subsiste por detrás não é visível, logo não mediático, consequentemente desconhecido é de relativa importância. Assim se faz, assim se vive.
Que a economia gere o mundo até o mais incauto o sabe, mas daí a fazer do ser humano clientes da sua própria sociedade, do seu bem-estar, dos seus afetos quiçá dos seus sonhos, isso cavalheiros ainda não foi escrito e, penso que jamais o será, Robert Schumann disse no dia nove de Maio de 1950 o seguinte: «A Europa não se fará de uma só vez, nem de acordo com um plano único. Far-se-á através de realizações concretas que criarão, antes de mais, uma solidariedade de facto.»
Meditemos, pois.
Maria Teresa Soares.
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