Quem sou eu

Minha foto
Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

02 julho, 2015

Kyrie (O Senhor)

Em nome dos que choram,
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E falam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e os destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói
Em nome dos que dormem ao relento

Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!

Ary dos Santos
Vinte anos de poesia
. .

21 junho, 2015

A Mulher Mais Bonita do Mundo

estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.

entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.

entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.

há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.

estás tão bonita hoje.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.

José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"
. .

13 junho, 2015


Somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos.
Eduardo Galeano. .

07 junho, 2015

Amar



AMAR

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

de, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,

Que pode o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos Drummond de Andrade

. .

17 maio, 2015


A Tirania do Medo

O nosso mundo vive demasiado sob a tirania do medo e insistir em mostrar-lhe os perigos que o ameaçam só pode conduzi-lo à apatia da desesperança. O contrário é que é preciso: criar motivos racionais de esperança, razões positivas de viver. Precisamos mais de sentimentos afirmativos do que de negativos. Se os afirmativos tomarem toda a amplitude que justifique um exame estritamente objectivo da nossa situação, os negativos desagregar-se-ão, perdendo a sua razão de ser. Mas se insistirmos em demasia nos negativos, nunca sairemos do desespero.

Bertrand Russell, in 'A Última Oportunidade do Homem'

15 maio, 2015

Não sei...



Não sei…
Não sei…
Se é a vida, se é o tempo, que me traz assim…
Inquieta no desassossego das horas,
Asfixiada na brevidade dos passos,
Perdida nos sentidos do corpo,
Não sei…
Se é a vida, se o tempo que me dói assim…
Se é a borrasca dos desenganos, se dos prantos possuídos
Se das mágoas acantonadas, se dos sulcos cravados
Na estatuária ainda quente de um corpo nu de utopias,
Não sei…
Se é o vento enrolado que me varre assim,
Que me crispa a alma, que me vidra os olhos, que me saliva o hálito
Escarrando-se em ululos de riso,

Perverso andante!
Não sei…
Se é o que de mim vem, vai ou foi,
Se sou apenas eu, somente eu, que não sei
Respirar, tragar, mastigar e amassar
O espírito levedado dos anos,

Não sei…
Se vivo na esquina das horas,
Essas que são sombreadas de dias quentes
Ou se respiro nas outras
Nas sombrias de minutos ocultos.
Não sei…Sei sim que vivo aqui, deste lado
Onde a imaginação voa e a verdade vai nascer… um dia!
. .

11 maio, 2015

O Homem Cruel


. .

O Homem Cruel
Quando o rico ti­ra um pertence ao pobre (por exemplo, um príncipe que tira a amante ao plebeu), então gera-se um erro no pobre; este acha que aquele tem de ser absoluta­mente infame, para lhe tirar o pouco que ele tem. Mas aquele não sente de modo algum tão profunda­mente o valor de um único pertence, porque está ha­bituado a ter muitos: portanto, não se pode trans­por para o espírito do pobre e não comete tal uma injustiça tão grande como este julga. Ambos têm um do outro uma concepção errada. A injustiça do poderoso, a que mais indigna na História, não é as­sim tão grande como parece. O mero sentimento hereditário de ser um ser superior, com direitos su­periores, torna uma pessoa bastante fria e deixa-lhe a consciência tranquila: até todos nós, se a distância entre nós e um outro ente for muito grande, já não sentimos absolutamente nada de injusto e matamos um mosquito, por exemplo, sem qualquer remorso.
Assim, não é sinal de maldade em Xerxes (a quem mesmo todos os Gregos descrevem como eminente­mente nobre) quando ele tira a um pai o seu filho e o manda esquartejar, porque este havia manifestado uma inquieta e ominosa desconfiança em relação a toda a expedição militar: neste caso, o indivíduo é eliminado como um insecto desagradável, ele está demasiado baixo para poder provocar por mais tempo sentimentos importunos num soberano uni­vsal. Sim, nenhum homem cruel é cruel na medi­da em que o maltratado julga; a sua noção da dor não é a mesma que o sofrimento deste. Passa-se o mesmo com o juiz injusto, com o jornalista que, com pequenas desonestidades, desorienta a opinião pública. Causa e efeito estão, em todos estes casos, rodeados por grupos de sentimentos e de pensamen­tos diferentes; enquanto que, involuntariamente, se pressupõe que réu e queixoso pensam e sentem da mesma maneira e, em conformidade com esse pres­suposto, se mede a culpa de um pelo sofrimento do outro.

Friedrich Nietzsche, in 'Humano, Demasiado Humano'