Quem sou eu

Minha foto
Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

04 agosto, 2010

O combóio

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjl13sfC8eTpeXs8D9k7ATwLmsdez8OsLeVsS26HPNaPz4T1fdltlf_JFNWldBb220vyExQ21t5IiA2H5deNTRPvvonqNQDswz2KLR0Aj3m5lBbSuODVg4yhM5baXRD3HmXECjY5e7izY1C/s1600/Yury+Tyapina+%27s+memories+by+Nadezda+Koldysheva_ficheiros.jpg



O combóio

Com as mãos trémulas e engelhadas abre o jornal. Na página três. Metodicamente percorre as linhas das colunas. O rosto vai-se contraindo, à medida, que mastiga o conteúdo. O olhar salta para a imagem. Lá estão eles sentados no semi-círculo do Teatro Português. As deixas, essas pobres nem rir fazem., são farrapos de ideias com tempo cronometrado. Não são espontâneas. A Infernal Comédia dos Dias. Suspira. Folheia a página seguinte. Nada de novo. A ladainha das palavras repete-se. Cruza a perna magra que se ajusta perfeita no contorno dos ossos. O tecido das calças baloiça na largura. São castanhas da cor do Outono. Olha de soslaio o relógio da estação. Falta ainda quase meia hora. Veio cedo. Fernando chega sempre cedo e parte a tempo. Gosta de sentir as horas a escorrerem.

O casaco de quadrados afaga-o. O vento resolveu soprar. As páginas do jornal agitam-se, mais do que as notícias. Os ponteiros continuam a deslizar de mansinho na manhã de neblina. Ouve o apito do combóio. É o das dez.

O combóio pára. Descem dois passageiros e ninguém sobe. O combóio chega. O combóio parte.

Aquele ranger de ferros, o restolhar do silvo, o chiar e o silêncio. Ajeita o nó da gravata. É verde. Verde. Ele gosta de verde, sempre gostou. Combina com a cor dos campos, da bandeira, e vá lá uma pontinha de vaidade, com a cor dos seus olhos. Estão gastos mas ainda têm um pouco de brilho das folhas macias. É a cor da esperança. Idiota. A esperança não tem cor. Tem luz. Isso, só luz.

Fernando fecha o jornal. Dobra-o cuidadosamente. Alinhado. Baloiça o pé direito calçado no sapato inglês. Castanho. Castanho e verde, as cores da sua idade. A idade, pensa Fernando tem cores. É branca quando nasce, rosada quando cresce, cobre-se de azulão, vermelho e laranja na juventude, aperalta-se de todas as cores quando madura, na descida adoça-se de ocres e verdes, e no fim tapa-se de cinzentos gélidos e brancos tristes.

Fernando olha, uma vez mais, o relógio. Ainda faltam dez minutos. Tem tempo de ir à casa de banho. Na sua idade tudo tem que ser acautelado. Sorri. Recorda outros dias quando de um salto apanhava o combóio. Numa mão o saco, na outra, o movimento do corpo, o gesto dos anos. As horas esperavam-no e, ele trocava-lhes os minutos. Hoje, ele espera as horas, e os minutos fogem-lhe. Levanta-se. Lentamente dirige-se à casa de banho. O cheiro dos urinóis invade-lhe as narinas. Sempre há coisas que não mudam.

Está de pé defronte do pequeno jardim de buxos verdes. Sabe que a carruagem número dois vai parar ali. Já conhece tudo. Já não precisa de saltar. O combóio surge na esquina ao fundo. Ajeita o casaco, coloca o jornal sob o braço direito, apalpa rapidamente o bolso onde está a carteira e espera. O combóio entra na estação suavemente. Sem grande alarde, pára mesmo diante de si. Um só passo e ei-lo que sobe os dois degraus. Empurra a porta e rápido, tanto quanto as suas velhas pernas lhe permitem, senta-se junto à janela. Olha para o exterior e ,só depois para o interior. Já conhece os rostos tal como as suas memórias. Catálogos de imagens

Soa o apito, o combóio mexe-se. Lenta e timidamente. Depois, já longe da estação e, dos múltiplos carris, sózinho, desperta e ei-lo a correr agilmente.

Fernando respira fundo. A viagem de combóio traz-lhe sossego. Gosta daquele correr de paisagem. Lembra-lhe a sua vida. O tal catálogo de rostos. Gosta de os ver assim a correr, a misturarem-se numa amálgama de traços e cores. Folhas da vida que se debulham rápidas e soltas. Passam num arrepio de tempo. O rosto da mãe está junto do canto da janela, sorri-lhe, o do pai cujo dedo em riste o faz suster a respiração, não se lembra já do que fizera. Ele deitado, saciado, no areal morno. Um rosto sorridente divide o sentir. Luísa. Recorda-a. Sorri abertamente. Agora são crianças, crianças que o olham temerosas. Rostos pálidos. Camas. O hospital. Fogem também, ficam para trás. Uma bata branca, murmúrios, luzes, rostos e mais rostos, Silêncio. Uma mesa, adornada de gente com olhos a rir, enche ao vidro da janela. Ele está lá. Mariana de olhos profundos ri, ri e junta as mãos naquele jeito de criança. Mariana a sua mulher. Outra imagem que rebola no vidro e foge rápida. Mariana, fria, a doença levou-a. Não corre, demora-se a visão. Abraços apertados, lágrimas que não saíram. Solidão. Vê-se sentado, as mãos escondem o rosto. As crianças a seu lado seis. Cabeças em movimento, rostinhos de amanhã, olhares doces. Agora em slow-motion uma estrada, solitária, franjada de belos plátanos cujas folhas caem em dança de outono, uma casa ao fundo, bem lá no fundo. Outra imagem, um recanto de flores .Maduras. Serenas. As imagens diluem-se Embrulham-se nos seus traços de carvão. O livro fecha-se.

Cerra os olhos e olha o vidro. Vazio. Lá fora, os campos estremecem com o passar do combóio mas logo serenam. As recordações são humanas, somente humanas, muito humanas. São pedaços de vida gravados na carne da memória.

O combóio respira ruidoso na curva que antecede a estação. Em seguida desliza tranquilo. Pára num suspiro de vida. Fernando desce. É ali o seu destino. Olha em redor, traga a neblina, aperta o jornal, estuga o passo e recomeça o seu caminho. O silêncio empurra-o.

No fim está ainda o presente e, amanhã o combóio também virá.

Posted by Picasa

18 julho, 2010


O sorriso

Creio que foi o sorriso,

sorriso foi quem abriu a porta.

Era um sorriso com muita luz

lá dentro, apetecia

entrar nele, tirar a roupa, ficar

nu dentro daquele sorriso.

Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

Eugénio de Andrade

..
Posted by Picasa

Words

Words


Words are deeds. The words we hear
May revolutionize or rear
A mighty state. The words we read
May be a spiritual deed
Excelling any fleshly one,
As much as the celestial sun
Transcends a bonfire, made to throw
A light upon some raree-show.
A simple proverb tagged with rhyme
May colour half the course of time;
The pregnant saying of a sage
May influence every coming age;
A song in its effects may be
More glorious than Thermopylae,
And many a lay that schoolboys scan
A nobler feat than Inkerman.

William Charles Wentworth


..
Posted by Picasa

"
As pessoas afivelam uma máscara, e ao cabo de alguns anos acreditam piamente que é ela o seu verdadeiro rosto. E quando a gente lha arranca, ficam em carne viva, doridas e desesperadas, incapazes de compreender que o gesto violento foi a melhor prova de respeito que poderíamos dar."




(Miguel Torga)
Posted by Picasa

04 julho, 2010

Alice



Alice

Alice crua de sonhos vagueia na rua dos sentidos. Percorre-a sem olhar. Sente. Sente apenas. Sente o enrolar das tripas. Sente o fardo das pernas. Sente o suor gotejante. Sente o bafo quente da tarde a enrolar-lhe os sentidos. E o suor que a empapa e, o trago amargo da fome a vomitar-lhe a boca. E a tarde a secar.

A rua, a casa. Traves e tijolos, pó e calçada. Tudo gira. Uma neblina tolda-lhe os olhos. Esfrega-os. O suor teima em cair. As costas das mãos estão molhadas. Passa-as pelos lábios. Sabem a sal. Tem sede.

A língua, a ponta humedece os lábios secos tal como a boca. Só o corpo está húmido. Húmido e melado. Respira com força. Mais um passo aqui, ali, em frente, em frente. O caminho de sempre.

O ar escoa-se por entre as varandas vestidas de roupa. Há sons que se diluem no vento morno. São vagos. Cheiram a dor. Sabem a amargo. Os sons desnudaram-se. A tristeza vestiu-se.

O tempo parou na calçada crua. Alice caminha. Detém-se na porta semi-aberta. Empurra-a. A escuridão de bafo quente envolve-a. Uma voz perdida pergunta:

-Quem é?

-Sou eu, a Alice.

-Estava à tua espera.

-Eu sei, eu vim. Sem nada, mas vim.

-Ah! Para quê, então?

-Trouxe-lhe uma côdea do ontem.

-Ah!


..
Posted by Picasa

25 junho, 2010


Somos mais pais do nosso futuro do que filhos do nosso passado.

(Miguel de Unamuno)

..


..
Posted by Picasa

24 maio, 2010

Maio

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiTKsaoiplr_i-i91sqpBeEAQlzaspkom-UYJSOHJ-JPo-7yDOP9mgp0-xVh6zgmLRPliaMcL9sKMCCaOc0sal0wMhmcIPsyXs0WyT-m0Kd6MJ81AfZlqKC9n3nxi2lNDB0DkYe2LOwFgQb/s1600/576974_76.jpg


Maio

Senta-se diante da tília que se agita suavemente na noite doce de Maio. No ar vibra aquele odor suave das rosas a desenrolarem-se em saias novas. Maio. Um suspiro.

João velho respira o Maio novo. Tremor e brisa. João e Maio. Gente e Tempo. João respira devagar deglutindo o ar doce que a Tília lhe oferece. Sorri fechando os olhos já cansados. O tempo desprende-se. A Tília envolve-o no seu odor. João deixa-se embalar. Suave, suavemente. Chamam-no. É o tempo. O seu que terminou. O de Maio que vibra. João entreabre os lábios e engole o perfume. Olha em frente, para além da Tília, na curva do tempo onde o mundo nasce de um lado, e morre do outro. É ali que tudo acaba. Sem alarde, embrulhado na doçura de Maio, João parte. Assim serenamente.

Alguém que passou reparou numa tília que chorava ao lado de um velho que olhava sem ver.

Achou estranho mas não parou.

Amanhã era Junho.


..
Posted by Picasa

23 maio, 2010



As palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?


Eugénio de Andrade

..

16 maio, 2010

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiV2WFIJFIfDQeoOuLewZK_gDlboIx70ty1nUsbIH-k8Itzr_lj3xz4n-Ai6jLV79lsHm9VjOHz_5eqwTzoqrH2OInnjn15-NlpmEESKY37xFF5CsTK9SDIm4lwgtU_UEStA2d3Z63Ufu5N/s1600/3841_70.jpg



Ma bohème

Je m'en allais, les poings dans mes poches crevées ;
Mon paletot aussi devenait idéal ;
J'allais sous le ciel, Muse ! et j'étais ton féal ;
Oh ! là ! là ! que d'amours splendides j'ai rêvées !

Mon unique culotte avait un large trou.
- Petit-Poucet rêveur, j'égrenais dans ma course
Des rimes. Mon auberge était à la Grande-Ourse.
- Mes étoiles au ciel avaient un doux frou-frou

Et je les écoutais, assis au bord des routes,
Ces bons soirs de septembre où je sentais des gouttes
De rosée à mon front, comme un vin de vigueur ;

Où, rimant au milieu des ombres fantastiques,
Comme des lyres, je tirais les élastiques
De mes souliers blessés, un pied près de mon coeur !

Arthur RIMBAUD (1854-1891)


..
Posted by Picasa

06 maio, 2010

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgyhG_9yCWjwf70Y2ctr5jhwuIHrtYaDnDTQiRP5w9qk98bVDGwS9-WcPHaGm2oca6Esr4rmsJsJnhBZKDjqJSH45J1XpnuwC1AObUUneI3l0vpbozbY4ckGI9uHIlepHkMYVslYfvzxJby/s1600/548264_68.jpg


O Crepúsculo dos Deuses

Fulge em nuvens, no poente, o Olimpo. O céu delira.
Os deuses rugem. Entre incêndios de ouro e gemas,
Há torrentes de sangue, hecatombes supremas,
Heróis rojando ao chão, troféus ardendo em pira,

Ilíadas, bulcões de gládios e díademas,

Ossa e Pélio tombando, e Zeus em raios de ira,
E Acrópoles em fogo, e Homero erguendo a lira
Em reverberações de batalhas e poemas...

Mas o vento, embocando as bramidoras trompas,

Clangora. Rolam no ar, de roldão, num tumulto,
Os numes e os titãs, varridos à rajada:

E ódio, furor, tropel, fastígio, glória, pompas,

Chamas, o Olimpo, - tudo esbate-se, sepulto
Em cinza, em crepe, em fumo, em sonho, em noite, em nada.
Olavo Bilac

24 abril, 2010



T o u r a d a

...Não importa sol ou sombra
camarotes ou barreiras
toureamos ombro a ombro
as feras.
Ninguém nos leva ao engano
toureamos mano a mano
só nos podem causar dano
espera.

Entram guizos chocas e capotes

e mantilhas pretas
entram espadas chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos cravos e dichotes
porque tudo o mais
são tretas.

Entram vacas depois dos forcados

que não pegam nada.
Soam brados e olés dos nabos
que não pagam nada
e só ficam os peões de brega
cuja profissão
não pega.

Com bandarilhas de esperança

afugentamos a fera
estamos na praça
da Primavera.

Nós vamos pegar o mundo

pelos cornos da desgraça
e fazermos da tristeza
graça.

Entram velhas doidas e turistas

entram excursões
entram benefícios e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas e coristas
entram galifões
de crista.

Entram cavaleiros à garupa

do seu heroísmo
entra aquela música maluca
do passodoblismo
entra a aficionada e a caduca
mais o snobismo
e cismo...

Entram empresários moralistas

entram frustrações
entram antiquários e fadistas
e contradições
e entra muito dólar muita gente
que dá lucro as milhões.

E diz o inteligente

que acabaram asa canções.

ARY DOS SANTOS

Soneto- Ary dos Santos









Soneto
Fecham-se os dedos donde corre a esperança,
Toldam-se os olhos donde corre a vida.
Porquê esperar, porquê, se não se alcança
Mais do que a angústia que nos é devida?

Antes aproveitar a nossa herança
De intenções e palavras proibidas.
Antes rirmos do anjo, cuja lança
Nos expulsa da terra prometida.

Antes sofrer a raiva e o sarcasmo,
Antes o olhar que peca, a mão que rouba,
O gesto que estrangula, a voz que grita.

Antes viver do que morrer no pasmo
Do nada que nos surge e nos devora,
Do monstro que inventámos e nos fita.
João Carlos Ary dos Santos

17 abril, 2010

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjItFBP1dHxasSutDnIBNBpMvJ-uXJkvL9QDMe2isyM_nX5ijxvcOAhgrF6aQHpiw4wsECQ0jlhTqe3XZ-rWqfw1CZ5YbkYg0B9jkksFJ_JwHI0465xpOMEGGQsz0NrfnkE43KA13-vJZ5f/s1600/96583_39.jpg



"Quando trabalhamos só com mira nos bens materiais, construímos nós próprios a nossa prisão. Encarceramo-nos, sozinhos com as nossas moedas de cinza, que não compram nada que valha a pena viver."
(Saint-Exupéry, Terra dos Homens)
.Posted by Picasa