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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

01 julho, 2009

Carlota




Carlota

O dia tinha fechado a janela. Na cozinha o tacho fervilhava sobre o lume espevitado. A tampa dançava sob a quentura da água vestida de arroz, espirrando espuma branca. O vapor de água pintava de gotículas o vidro da janela. No intervalo da cortina, Carlota via o azul meio escuro borrar a tela por de cima. Pegou na colher de pau, levantou a tampa e mexeu a água, sentiu os bagos inchados e moles. Estavam já cozidos. Colocou a tampa de esguelha para que o líquido não subisse mais, baixou o lume, e abriu a porta da cozinha para o jardim.

Sentou-se no banquinho de madeira esbatido de verniz e de tom. Olhou em redor aspirando o aroma das rosas que se abriam. Era o seu tempo preferido. Aquele interlúdio do dia quando as cores se adensam e os sons se esbatem. Podia ouvir-se, ouvindo tudo em redor. Mentalmente fazia o epitáfio das horas.

Um rodar de pneus mais uma buzinadela, um abrir de portão, eis que, a vida a clamava de volta. Carlota olhou, esboçou aquele seu sorriso meigo, levantou-se, e calmamente dirigiu-se para a cozinha. Estava na hora de retomar outras lides. Era tempo de família.

Todos os dias a cena repetia-se. O marido e os filhos chegavam a casa depois dela. Ele apanhava-os. Ela já chegara, e tinha o jantar quase pronto. Breve segmento do dia em que o barulho sobrepunha o conteúdo. Os garotos corriam direitos para os seus interesses: Pedro para a saleta onde rápido ligava a televisão, Inês direita que nem uma flecha para o quarto, vá lá saber fazer o quê. Claro que sabia, mas preferia fazer que não.

Francisco, o marido entrava na cozinha, dizia aquele olá franco, colocava o braço sobre o ombro, dava-lhe aquele beijo trivial e dizia: “-Novidades? O dia como foi?”

Invariavelmente a resposta ouvia-se: “-”Foi. Estou cansada. Tudo igual, sempre.

Ele retorquia: “-Ainda falta tanto para as férias”. Depois seguia-se: “- O que é o jantar?”

Dada a resposta girava sobre si acrescentando: “-Vou ver os miúdos. E dar-lhe uma mãozinha nos trabalhos.”

Pronto. Estava de novo sozinha. Andava rápida no seu vai e vem. Tacho aqui, panela ali, escorre daqui, mexe acolá. E o cheiro borbulhava pelas paredes da cozinha amornando o ambiente. Carlota continuou mexendo, remexendo, verificando até que os tachos descansaram, o lume dormitou e o avental voou para trás a porta.

Era a hora de jantar.

Chamou pelos filhos. Respondeu o marido.

Em tropel naquele empurra que empurra, “está quieto”, “ó mãe é sempre assim”,” estou farta deste miúdo”, “calados meninos,” a mesa sentou-se de rostos. O silêncio caiu mal as bocas se entreabriram. Os dentes eclodiram ao compasso do movimento E na toalha verde de raminhos vermelhos e amarelos, os pratos mais os talheres dançaram o jantar.

Carlota suspirou.

Mais um dia. A rotina inundou-a.

Fechou o rosto. Suspirou-lhe a alma.

Subiu as escadas, entrou no quarto. Olhou para a cama mexida de lençóis enrolados. Francisco dormia, melhor ressonava naquele andamento de fanfarra entupida. Olhou-o, antes de se olhar. Não sorriu. Olhou somente.

Depois entrou na casa de banho, despiu-se, meteu-se na banheira e distendeu-se. Avaliou-se aí. Também não sorriu.

Limpa de cansaço e fresca de amanhã entrou na cama. Não se encostou. Espraiou-se, esticou as pernas bem até ao fundo, cruzou os braços no ventre liso, fechou os olhos e deixou-se tomar pela sonolência.

Amava de sobremaneira esta neblina que a envolvia. Era por essa altura que os sonhos se dilatavam de tal forma que quase se tornavam reais. O seu tempo de ócio, vazio de solicitações e cheio de languidez de fêmea. Naquele meio-tom, o sonho cavalgou-a de tal forma que deu por si enroscada na perna musculada de alguém cujo bafo a acalentava em sincopadas estrofes de amor. Deixou-se cavalgar, deixou-se voar. Rodou-se-lhe a cabeça, mais o corpo e o pensamento. Uma roda sem vintém de sentido batendo os acordes dos segundos. Ouvia ao longe um badalar, qual som brônzeo de uma moral que teimava em querer despertá-la. Grávida de sensações deixou-se tomar cada vez mais e mais. Um fio, pérola aguada de sal molhou-lhe o rosto, pingou no seio esquerdo escorrendo lenta para o ventre, e daí para a foz do corpo.

Carlota sorria. Sorriso saciado.

No lado da cama a fanfarra entupiu. Parou. Rumorejou, voltou-se. Abriu os olhos.

Esticou o braço. Ali, mesmo ao jeito da mão palpitou uma coxa morna e túrgida.

Acordou de vez.

Enovelou-se devagarinho, assim a modo de pedido e premência. Em feição de quem tem sem ter, mas tem na certeza, a vitória do ter.

Carlota moveu o pescoço. Carlota não quis acordar.

A perna teimosa sussurrava, roçava, premia. A perna encalhou. Carlota acordou.

Estremunhada.

Voltou-se na almofada que não no corpo. A premência mais o sonho sacudiam-lhe o torpor Encostou-se e bebeu o calor morno, mais o gesto, mais a vontade, mais o gosto.

Acabou.

Está desperta. Acordada. Sem sonho.

Volta-se e mentalmente pensa no dia seguinte.

Cerra as pálpebras, estende a mão por cima do corpo, ensaia uma carícia breve no dorso de Francisco. Recolhe-se

O sentir sentou-se no vão da madrugada da ilusão. Treme, não sabe se de solidão, se de tempo. Treme na madrugada do dia que veio depois.




Memory - Pan Flute



Vale a pena escutar, se vale. Um espanto!

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29 junho, 2009

Embora o prémio seja talvez excessivo para a qualidade deste blog no qual tento simplesmente mostrar uma ínfima parte do belo que o mundo e a vida também contêm ,passando tantas vezes ao lado, ,seja por distracção, enfado ou simplesmente cansaço, mas como dizia fico sensibilizada com a atenção, a qual agradeço.





Os blogues Fio de Ariadne , Sistema Vascular e Photomaton atribuiram o prémio Lemniscata ao blogue aArtmus





“O selo deste prémio foi criado a pensar nos blogs que demonstram talento, seja nas artes, nas letras, nas ciências, na poesia ou em qualquer outra área e que, com isso, enriquecem a blogosfera e a vida dos seus leitores."

Sobre o significado de LEMNISCATA: “curva geométrica com forma semelhante à de um 8; lugar geométrico dos pontos tais que o produto das distâncias a dois pontos fixos é constante.” Lemniscato: ornado de fitas; Do grego Lemniskos, do latim, Lemniscu: fita que pendia das coroas de louro destinadas aos vencedores (In Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora).

Acrescento que o símbolo do infinito é um 8 deitado, em tudo semelhante a esta fita, que não tem interior nem exterior, tal como no anel de Möbius, que se percorre infinitamente.
Texto da editora de “Pérola da cultura”.

Partilho este prémio com todos os visitantes e comentadores deste espaço. E passo-o, agora, a 7 outros blogues, a seguir indicados sem qualquer hierarquia definida:

Voando por aí

Passages

Arvore de Palavras

Blog da Tia Selma

Photomaton

Cidade Sitiada II

Novo Mundo

deveria acrescentar mais sete, e outros sete,porém para todos que me visitam e encontram prazer no azul, aceitem a nomeação sincera.
Obrigada.





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27 junho, 2009

"Mãe Negra" Salazar by ARTExplorer.


Lágrima de Preta
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de Sódio.



António Gedeão











Gustave Klimt "Sea Serpents I,II"


.Poema Melancólico a não sei que Mulher

Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...

Miguel Torga, in 'Diário VII'
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17 junho, 2009

Pauta de sílabas

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Pauta de sílabas

Sou o vento das palavras, o método do pensamento, a riqueza da frase qualificada. Sou tudo isso na ordem simples e complexa do escrever, dizer, ou apenas construir, sempre que o sentir explode no bico redondo de um lápis ou de uma caneta. É a minha pauta, ou antes a consciência das letras. A minha pauta não é um pentagrama, não possui clave de sol, nem de fá. É uma simples linha branca que se tinge de maiúsculas ou minúsculas, qual fileira de bonecos de papel. Sou ainda e sempre ,a alma do pensamento. Cosem-me em mil regras morfológicas, sintácticas, semânticas e sei lá que mais. Sou despida, avaliada, pesada, medida, catalogada e arrumada As sílabas que assobiam, trincam, cantam ou suspiram fazem o meu tecto. As sílabas são os braços e as pernas do meu mundo. Juntas formam as palavras. As palavras derivadas, aglutinadas e justapostas tal como as vidas que vão definindo. As palavras que riem esticando as letras. Umas ficam longas, outras curtas, e outras rebentam. Explodem em rictus de dor, e aí há lágrimas, esgares e sofreres que se transformam em palavras-sombra, as que perseguem o caminho da vida. Há ainda as palavras-carrossel. “Mais uma volta, mais uma”, e as palavras riem em cima, em baixo, sob a música do gargalhar feliz. São as que alegram a vida. Há também as palavras-insípidas, aquelas que nascem, crescem e morrem sem deixarem recordações porque são soturnas e cinzentas. Palavras-vento são as que varrem os instantes e fogem correndo. Depois há ainda as palavras-vaidosas., as tais, as que são ditas com um rolar redondo de língua reproduzindo o tortumelo interior, são palavras escolhidas, quais canteiros formais de um jardim gizado em quadriculas de faz-de-conta. Em contraponto escondem-se as palavras-ascetas, aquelas despidas, fortes, mas puras .Às palavras ,vestimo-las todas ,desde as bonitas às cruéis, porque o mundo é porta escancarada de sentires complexos. As palavras-sábias, essas, coitadas, deitaram-se na letargia dos tempos e quando surgem apenas pontilham pequenos chapéus de pensamento.

Harpeja o vento sob o arco dolente , no ar, no redondo do mundo elástico e breve, o cordão de sílabas desenha-se.

A palavra nasceu. Chamaram-lhe arte.




Adagio in G Minor.mp3 - Albinoni

02 junho, 2009

Memeando


Memeando


Foi Selma Barcellos do " tia Selma "que me deixou entrar na roda e brincar ao Meme. Memear quer dizer repetir algo, seguir um modelo.

Regras da brincadeira: escolher um(a) cantor(a) ou um grupo; para cada pergunta, dar como resposta um título ou um trecho de suas músicas; repassar para outros blogs.

Porém dado que o Meme já atravessou o Atlântico optei pelos poetas em vez de um cantor(es).

Escolham pois. Miguel Torga teve a primazia, porém outros se seguiram... Agora é a vossa vez.





És homem ou mulher?

És homem, não te esqueças! /Só é tua a loucura/ Onde,com lucidez, te reconheças...(Miguel Torga in Sísifo)

Descreve-te:
Quero ser um bom menino/ E guardar/Este segredo comigo E depois ter um amigo/ Que faça o pino/A voar...( Miguel Torga in Segredo)

O que as pessoas acham de ti:
Aberta a porta selada/Sou pensada já não penso/ Se a Musa fica calada/ Como dizer o silêncio?
Natália Correia in Como dizer o Silêncio

Como descreves teu último relacionamento?

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio /E suportar é o tempo mais comprido
(Sophia de Mello Breyner)

Descreve o momento atual de tua relação:

No mistério do sem-fim equilibra-se um planeta. E no planeta um jardim e no jardim um canteiro no canteiro uma violeta e sobre ela o dia inteiro entre o planeta e o sem-fim a asa de uma borboleta.

Cecília Meireles


Onde querias estar agora?

Mundo à nossa medida/Redondo como os olhos, E como eles, também, A receber de fora/ A luz e a sombra consoante a hora.
Miguel Torga in Cântico

O que pensas a respeito do amor?

Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?

Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura.

O que é a tua vida?

Vou fazendo horas - metade da vida é uma perdulária expectativa. E tonta. E ansiosa. E inútil. Como quem se sentou numa gare de caminho-de-ferro, à espera de um comboio que não se sabe quando passará e qual o seu destino. Certeza, e relativa, está apenas no local de espera. E às vezes na própria espera. Se chegamos a concretizar a viagem, o lugar aonde o comboio nos levou, desilude-nos. Isso, porém, não impede que tudo venha a repetir-se. Desperdiça-se o instante real e concreto, mas que, como areia, se nos escapa das mãos, em favor de uma ilusória vez seguinte.

Fernando Namora, in 'Jornal sem Data'


O que pedirias se pudesses ter só um desejo?

O que é bonito neste mundo, e anima, /É ver que na vindima/ De cada sonho/ Fica a cepa a sonhar outra aventura/ Que não se prova / Se transfigura/ Numa doçura / Muito mais pura/ E muito mais nova...

Miguel Torga in Confiança







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01 junho, 2009

AMOR







AMOR

Olhos abertos. Olhos bebidos. Olhos vividos. Olhos cansados. Olhos.

Mãos descarnadas, longas, engelhadas, manchadas. Mãos de suor. Mãos de luta. Mãos de amor.

Mulher.

Senta-se no canto do escano. Saia enrolada e blusa folgada. Avental a jeito bem enovelado. Lá escondem-se as mãos. Cansadas. Gretadas de amor.

O rosto é um pêssego seco de maduro. A boca morde-se por entre os dentes. Emoldura-lhe o traço aquele azeviche ponteado aqui e ali de riscos brancos, que teima em dançar sob o lenço de papoilas de sangue. A sua garridice. Nas orelhas, pendem lassos, os brincos enfiados nuns lóbulos já frouxos, há muito, do peso. Os ombros vestidos de chita cinzenta atraiçoam uns ossos escalavrados de fadiga. Vinca-se pelo meio, pela cintura ainda viva. Lá reside o laçarote do avental cinzento e riscado. Assim curvada espreita os chinelos. Estica o dedão, depois o outro, e o outro ainda, assim, num leque de dedos inchados.

Suspira.

E as mãos continuam arrecadadas dentro do avental enovelado, naperão da saia escura, que lhe veste as pernas magras.

As mãos.

Esfrega-as rolando-as entre si. Lenta e sofridamente. Sente-lhes as gretas ásperas. Liberta-as do avental, e poisa-as no regaço. Olha-as. E, então, suavemente, como se fossem pétalas acaricia-as. As mãos inchadas e gretadas a beberem carícias.

Sincopadamente rola os dedos. Tal como fizera com o dedão. Um leque de dó, ré, mi, fá, sol, lá si. E os dedos giram em pauta. Assim repetidas vezes. Quase um piano de contas balbuciadas. Aquietam-se sobre o riscado do avental. Olha-as. Uma lágrima. Redonda, doce, trémula quase, quase um pingo de beiral cai-lhe na palma da mão direita. Ergue o rosto e pisca os olhos aguados de lembranças.

Mãos macias de meninice, mãos doces embalando, mãos suaves mitigando, mãos férteis criando, mãos de trabalho semeando, mãos calejadas mondando, mãos amigas amparando, mãos de amor labutando, mãos felizes amando, mãos velhas acariciando. Sempre as mãos. As suas. A vida. A sua.

Mãos e vida. Mãos e olhar.

Benedita

Cruza os pés nos chinelos cambados. Olha o vazio da cozinha. O castanho da íris repousa. Um barulho lá fora fá-la pestanejar. Breve entrechocar de seda negra. Os músculos jazem inertes no rosto imóvel. Permanece solitária dentro de si. Nada a perturba. Depois as mãos movem-se descaindo do regaço. Caem laterais, desalentadas. Rolam pelo corpo como berlindes partidos. Impeçam na cadeira e ali ficam. Tremula o olhar em fugaz faísca. Um estilhaço de vidro frio calça-lhe o castanho da íris.

Benedita foi-se.

Benedita de mãos ásperas-doces e olhos rotos de amor.

Benedita passou por aqui.



Ave Maria (Violin Duet from La Corda dOro) - Schubert