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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

03 março, 2009

Cadeirões




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CADEIRÕES

Três cadeirões. Três. Três madeiras diferentes. Três estofos distintos. Três estilos. Nogueira, Carvalho e Faia. Algodão, Cabedal e Courtisane. Sentam-se desencontrados. As pernas revelam-se, escondem-se, ou ignoram-se consoante o design. A postura é altaneira. Estão irrepreensíveis. Têm o ar da compostura necessária à hierarquia que sentam. O padrão resvala do florido pastel, para o branco intemporal, mas frio. Em permeio fica o castanho robusto da pele. Gretas de idade assomam-lhe nas esquinas. São peças diferentes sentadas no soalho polido de uma sala, algures, numa casa sem paredes.

A de Nogueira, mais antiga, sólida, de recorte elegante e traço simples, revela os nós do tempo no pedaço redondo de madeira polido que lhe serve de braço, e, nas pernas recurvadas que poisam no soalho. O vigor senta-se em ângulos quase redondos, devassando a amenidade dos anos. Tem história esta cadeira, tem experiência, tem alma. Ao lado, mas numa posição quase de costas, senta-se a de couro. É a maior, a mais imponente. Não necessita de grandes adjectivos, a sua solidez fala por si. Pode ter um pouco de sebo, frestas e manchas. Pode ter tudo isso, mas é o cadeirão. É o género.

No outro lado, à direita, fremente nas linhas minimalistas, pese a solidez da forma, senta-se a Faia vestida de Courtisane branco. Quem entra, vê-a primeiro. A sua luminosidade cativa. O ranger melodioso das suas molas conta poucos anos. O uso ainda não a adoçou.

Três cadeiras. Três estilos.

Cabedal, Courtisane e Algodão.

Três formas, três padrões. Três estofos. Um trio dissidente na percepção estética. Um arranhar de policromia, mais, um risco fundo na harmonia da sala sem paredes. Um feixe de luz atravessa a janela e vem adormecer no soalho frio, espevitando as cadeiras que silenciosas carpiam os seus pensamentos ou entretinham as suas estratégias.

O cadeirão de algodão florido, aquele, o mais idoso e macio, suspirou, afastou as pregas da sua saia, que lhe tapavam as pernas, e murmurou:

- Amanhã vai chover, sinto-o nas molas!

-Pois é, os anos, os anos, não perdoam… já são muitos, responde-lhe o cadeirão de cabedal, acrescentando um meio-sorriso às palavras que veste sempre de ironia.

-Pois será.

O silêncio desce de novo. No entardecer dolente ,o cadeirão de nogueira florida semi-cerra as flores ,e recolhe-se ao seu silêncio. O cadeirão de cabedal permanece alerta, mas revestido da sua bonomia de macho. Relança um olhar, e, contente de si, semicerra, também, as pálpebras. Uma modorra prazenteira senta-o descansadamente. A certeza do aleatório crepita no recôndito das entranhas. Gosta de vestir a sua importância ,pese a insegurança ,que o envolve. Uma capa que lhe cobre as entranhas dando-lhe um ar que não possui. A forma em contradição com a essência. A estruturação do desestruturado.

Fremente nos raios finais de luz, a Faia lança um gargalhar nervoso, talvez para se acordar, talvez para recordar a sua presença, talvez, quem sabe, para quebrar a melopeia das ideias caladas. Ambos cadeirões soerguem-se, endireitando as costas e olham-na inquisitivos. O que será agora?

Rapidamente num esgar de tempo, a Faia desfia um rosário de considerandos ao tempo, ao dia, à vida. Quase um muro de reclamações na primeira pessoa. Depois recolhe-se, de novo, na importância do seu estofo de Courtisane. Fervilham-lhe as ideias que pensa serem únicas, acertadas, maduras. A sua sabedoria carece de anos, tal como o seu estofo carece de uso.

O silêncio desce dando as mãos à penumbra. Vão sentar-se nos cadeirões mais velhos.

Logo a noite cairá ,e os fantasmas do ontem, das palavras por dizer, se aninharão por entre os espaços soltos. Depois o vento virá deitar-se nos estofos ciciando a história inerte dos dias. Tudo acabará por adormecer na paz doente do tempo.

Outrora, aquele espaço possuiu paredes, janelas e risos. Resmungos, arquejos, choros e silêncios. Outrora fora casa. Casa de argamassa, alvenaria e alma. Uma casa igual a tantas outras ,perdida numa cidade ,algures no mundo. Os inquilinos tinham sido gente. Gente viva e não esquissos retocados em poses de bem-estar.

Porém, um dia a casa fechou. Despiu-se.

Os anos comeram-lhe as entranhas. As raízes invadiram os vidros, engoliram-nos e avançaram. Avançaram.

A casa pereceu e o seu espírito também. Apenas restaram os cadeirões. Epitáfios perdidos de outras vidas, consciências escondidas da verdade. No seu recôndito guardaram as memórias dos tempos felizes.

Quando eram sentados, amassados ou repuxados sob o peso dos corpos que os sentavam. Quando no trejeito das palavras ouviam a história da vida que por ali corria. Era, então, o tempo do semear. Semeava-se o sorriso por entre os sulcos do sentir. Era assim naqueles dias.

Chorava-se quando morria alguém ,ou simplesmente ,quando um cisco de dor magoava as pupilas. Quando as crianças se arranhavam, zangavam ou gritavam, o ar compunha-se em chuvadas de palavras. Era assim o tempo de então.

Depois, depois ,as vozes foram amaciando ou engrossando. Foram partindo. Partindo.

Os cadeirões descansaram. O piano calou-se. As conversas fugiram.

O silêncio tal como o vento tomaram conta da casa. Mais tarde ,foi tempo da tristeza , das caixas pesadas, dos olhares sem luz, das olheiras roxas. O adeus.

E a casa ficou mais vazia.

E os cadeirões foram ficando. Imutáveis na forma, carpindo o tempo, procurando um lugar na ribalta dos dias. A dança da vida parou, calou-se. O espaço é agora total, o desígnio inexistente.

E o estribilho do vento, qual melodia inacabada do tempo sibila por entre os espaços vazios de memória. A crueza do vazio, a falácia da harmonia numa sala vazia de paredes.



O Mio Babbino Caro From "Gianni Schicci" - Jeanne Newhall.
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01 março, 2009

25 fevereiro, 2009

LAGASH


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Lagash

Deitada no beliche do seu camarote, Lagash embala-se no som do vento, que lá fora abocanha o estribilho do tempo. A oscilação do navio torna-a sonolenta. As águas do oceano cinzentas de tédio cospem a sua saliva no vidro da vigia. A agonia, que a veste por dentro, contrasta soberbamente com o seu aspecto. Para trás ficaram as ruínas do seu mundo imersas no soberano desdém dos interesses.

Pela retina dos seus olhos cansados passam, em câmara lenta, as imagens dos últimos dias, quando os ares cuspiam o fogo do ódio. Ódio feito em ambição de irmãos.

Lagash soergue-se, passa os dedos pela massa pendente de cabelos negros espalhados em seu redor, e, pestaneja à visão dilacerada, que teima em permanecer dentro de si. Aquele vulto abocanhando a terra de pernas retorcidas e mãos enclavinhadas no ar que lhe acabou, o outro de olhos vítreos e rosto retorcido, um outro encolhido pela dor da bala recolhida na sua carne, aqueloutro de boca escancarada, olhar perdido no amanhã que não veio. O vermelho do sangue empapando o cinzento do quadro. A cor que escorre da tela por excesso. As cores da sua terra, todas em excesso de vermelho, cinzento, negro e raiva.

O crivo das paredes, os esqueletos de ferro retorcidos, o pó, a cal, a argamassa esboroada, o cheiro de pólvora, o suor liquefeito em rancor, os olhares baixos, cravados na terra árida de vontade e amor. O vento quente que crepita nas ruas faz crer que a vida se esconde por ali, algures. Na esquina perdida de um pneu, no olhar ferido da criança, na burka negra que corre ziguezagueando na busca do alimento ou talvez, quem sabe do corpo caído no asfalto estilhaçado.

E a memória pulula, gira, envolve, amarga, fervilha.

As mãos que se enclavinham, as unhas que rasgam, a dor que mitiga a memória.

Lagash rebola o corpo no beliche, puxa da almofada e esconde o rosto. A memória recrudesce em tons mais ácidos. O marido e a filha mortos. Cá fora perto da palmeira do quintal. Um míssil. Uma explosão. Fumo e cheiro de carne queimada, sangue. Pedaços da sua carne espalhados aqui e além. O horror, a ânsia, a dor. Sentir que as suas entranhas foram rasgadas, sentir, que a sua alma foi roubada, sentir, o nojo, o vómito de estar viva, sentir, o quebrar da vontade, o uivar da mente. Tudo isso. Ajoelhada na terra, bebe o pó enxofrado da morte, grita o horror da insídia dos homens, daqueles que se alvitram seus irmãos. Um irmão não mata, não rouba, não rasga. Um irmão ampara.

Sacode-se. Toda.

Não sorri. Levanta-se e maquinalmente puxa pelo xaile e cobre os ombros magros. Encosta-se à vigia e contempla o mar. Na vasteza do horizonte os seus fantasmas diluem-se. O azul cinzento mergulhado lá ao longe por entre uns raios desmaiados de sol acordam-na para a sua situação real.

É uma refugiada. Política, assim definida.

Lagash.

O nome, a terra, o rio, o Tigre, leito do mundo e cópula da humanidade. Aos milénios de vida sobrepõem-se, agora, os segundos de morte. A sua terra de onde lhe vem o nome. O seu destino parou aqui. O resto, o resto é a sombra de si, da sua alma partida.

………………………………………….

Londres

O ritmo alucinante do jornal torna-os quase histéricas de prazer. As notícias que povoam os teclados e monitores, os telefones que ressoam ininterruptos, conferem aquele ar desarrumado mas fervilhante. No seu gabinete envidraçado, James deita o olhar sobre a redacção. Conhece-os a todos. Os bons, os aspirantes e os trepadores. Cada um a seu género. Mas no final a equipa é soberba.

Aqui conta-se o mundo, jogam-se os destinos, constroem-se os mitos e arrasam-se os conceitos. Todavia, momentos há, em que também se edificam as boas vontades e se vendem as histórias de vida, mas pouco. O bom não é vendável, a miséria é ávida em pormenores, qual fiel de tempos e vidas em desequilíbrio.

Hoje, ele, James Previl, tem uma reportagem fabulosa. Uma sobrevivente, uma mulher. Lagash Mashhadani, a irmã de Tayseer al Mashhadani, a líder dos sunitas feita refém, e posteriormente libertada. Lagash é notícia. Tem a equipa de reportagem pronta para recebê-la em Heathrow, depois de amanhã.

Lagash será a protagonista de uma série de crónicas sobre a verdade do Iraque. James, pese os seus sessenta anos sente-se ligeiramente excitado pelo impacto que prevê ir alcançar, e, sobretudo pelo aumento previsível de vendas Uma mais -valia.

Não é implacável nem desumano. Não fora ele, outro, seria. O clima de luta pelos objectivos lucrativos torna as pessoas metodicamente especulativas. Ele não é diferente, tem um lugar cobiçado a defender.

Esfrega as mãos e levanta-se. Cá em baixo em Fleet street a vida move-se inexorável. O corrupio das horas, dos passos, dos olhares, esgares e sorrisos dão o tom à sua cidade. Londres merece o esforço, merece a notícia.

Dois dias. As folhas riscadas de negro serão manuseados por milhares. A vaidade fá-lo opado. O rosado da face balofa rebrilha a par do cinzento dos olhos. Um fulgor de vitória que trinca antecipadamente.

Senta-se na sua cadeira, gira embalando-se, um sorriso de beatitude cai-lhe do rosto. Fecha as pálpebras, cruza os braços unidos as pontas dos dedos. O sono doce alastra-o. E ela vem, o seu rosto, a sua mágoa, a sua história. A pessoa. Ela que lhe crava o dedo na carne, dilacerando-o. Aquele olhar de censura e ódio também. Acorda. Volve o olhar pelo cubículo. Ninguém, não podia ser. Mais uma comédia de enganos vestida de Morfeu. Puro engano!

James Previl predador de desgraças, gente do mundo encolhe os ombros e esfrega as mãos.

Somente dois dias. Uma pequena espera.

…………………………………….

Lagash.

Novo agitar, outra sacudidela, outro frémito expandido.

Abre a porta e sobe até ao deck. O vento fustiga-lhe o rosto e o corpo. O mar revolto ondula em vagas que a fazem baloiçar. Enfrenta-o. Crepita de fúria. As vagas criam berços cobertos de lençóis de espuma. A chuva batida, vinda sabe-se lá de onde ensopa-a. Agarra-se. Bebe a água, e o sal, e o vento, e o dia.

Bebe. Bebe fundo, bem fundo. Como se lhe purificasse as entranhas em chaga. Sente um ardume, uma dor fina que se alastra que a envolve. Está viva! A sua maldição.

Esperam-na do outro lado. Sabe que a esperam. Sabe as regras do jogo que vai jogar. Sabe que tem a vida por um fio. Sabe o risco. Valerá a pena? Não teme porque nada tem. É livre de razão e coração.

Fica ali, parada em silhueta ondulante ao sabor do mar. A noite cai. O negro cobre-a. Mais um véu, de tantos que a vida a macerou. Porém, este agiganta-se na sua vontade, envolve-a no precipício do tempo. Um gesto, só um. Ei-la. Ali, vogando entre o céu e o mar, no rasto da liberdade, no amanhã renascido.



les feuilles mortes - nana mouskouri
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22 fevereiro, 2009





A vida é uma tragédia quando vista de perto, mas uma comédia quando vista de longe.

(Charlie Chaplin)

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19 fevereiro, 2009




Porque os outros se mascaram mas tu não

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen
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15 fevereiro, 2009

13 fevereiro, 2009





Acreditar em algo e não o viver é desonesto.

(Gandhi)

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07 fevereiro, 2009

O TENENTE

Resposta ao repto da Maria Gabriela

Respondendo ao repto que me foi lançado pela Maria Gabriela do blogue "CANTOCHÃO" transcrevo a 6ª linha, na página 161, de um romance de Gunter Grass "O Gato e o Rato", escrever algo é quase impossivel, todavia...

mas antes, remeto o convite para esta ciranda a Selma Barcellos ,a Addigram, a Minucha e a Menina Marota, leiam ,por favor ,a 6ª linha da página 161 do livro que estiver mais próximo de vós, transcrevam-na e… escrevam.


"...parar-lhe aquelas comidas de dieta sem sal que o tornavam tão afeiçoado a ela?..."

Na verdade o pobre do tenente, rapaz pálido, esquálido e triste, pouco mais poderia apreciar senão um repasto sensaborão, escorrido e insonso como o seu ar e vida. Pobre alma. Não fora o sinalzinho redondo e vermelhinho que lhe pespontava por entre os imberbes pelos de uma barba por vir, o rosto quase seria uma máscara de cera, daquelas que se colocam nas capelas de orações, juntamente com as demais partes do corpo, consoante o sitio do pedido ao Divino. Os olhos grandes, redondos, quase de peixe, azuis esverdeados, a puxar para o sulfato de zinco, que lhe davam uma certa cor, pese a mesma se desvanecer acima do uniforme cinzento, mais do ar merencórico com que vestia o semblante.

Ora um tal personagem só podia degustar comida cozida sem sal, daquela onde as couves aguadas abundam. Nem cenoura, nem tomate, nem pimento, cores conspícuas, doces, ácidas e puxadas que fazem libertar suspiros e outros quereres, sabores pecaminosos de vida. Não, o nosso tenente desmaiava pela vida sob a tutela de Fraulein Petra von Goetlib, fêmea amarela de ares, seca de carnes, de carrapito bem repuxado sentado no cocuruto da cabeça, assim de pequenino dado a escassez da lã capilar, parecia antes, um pequeno rolo de sabe-se lá o quê, não só pela sua forma, mas também pela sua cor. Amarela acastanhada. Mas continuando, Fraulein Petra possuía uns olhinhos coscurantes e lúbricos daqueles que vêm tudo, e desejam ainda mais.

Saíra-lhe a sorte grande quando o tenente Hans Stwiller lhe alugara aquele quartinho há já tanto tempo a pedir gente. Um quartinho asseado, confortável e triste de acordo com o pulsar da casa e da dona. Até tinha uma porta de comunicação. Bem, estava tapada pelo damasco azul da cortina, mas era sempre uma salvação. Saber que paredes meias dormia um homem e ainda por cima militar. Como ela gostava do seu hóspede! Enchia-lhe a casa, os dias e até o espirito naqueles dias mais cinzentões. Fraulein sentiu que a linfa do seu corpo esguio despido de curvas e de saliências lhe aquecia os pés sempre enregelados, que alguns rubores lhe assomavam ao espírito. Sempre que pensava em Hans ficava cheia de calores. Algo que a fazia sair fora de si. Uma tremedeira. Abanou o carrapito, encolheu os ombros e, pasme-se, levou a mão descarnada ao peito num suspiro de desejo vão. Mas logo se agitou, resmungou, afastou os pensamentos condimentados, regressando ao estado cataléptico de sabores.

Hans entrementes sentado na borda da cama calçava as botas negras e polidas. Sempre ascético nada nele estava fora do sítio, desde as calças tufadas à camisa escrupulosamente engomada. O dólmen necessitava apenas de ser apertado. Calçou-se. Levantou-se, bateu os pés no tapete de rosas puídas, fechou o dólmen que repuxou, pegou no boné e desceu à copa. Aquele cheiro a sabão, sabão sem perfume, apenas a lavado deixava antever um homem sem chama. Um ser esmaecido.

Fraulein Petra já se estava à mesa junto à janela redonda revestida de um tecido leve, deixando ver o Fevereiro cinzento que se sentara do lado de fora. O cenário perfeito para o repasto sensaborão de todas as manhãs.

Hans sentava-se defronte. As suas botas pisavam inadvertidamente os pés de Petra que os recolhia num impulso, mas logo os voltava a recolocar. Olhavam-se e esboçavam um esgar qual folha amarela. Murmuravam um desculpe meio enrolado, meio aguado. Retomavam a mastigação. Metódica. O silêncio cobreia a mesa, Hans levantava-se, arrumava a cadeira, batia os tacões e pegava no boné que o coloca vasob o braço. Petra sorria-lhe translúcida. Um até logo despedia o tempo.

Maio de 1939 o jasmim já floresce na parede da velha casa e o azul do céu ainda é azul…

Petra, veste-se de azul claro em tecido leve, empoeirou o rosto de rosa leve e um pouco de carmim nos lábios alegram-lhe os olhos aguados de azul. Espera sentada na salinha. O silêncio come o ar, a respiração é imperceptível. De quando em onde o relógio da parede suspira as horas. Ouve-se uma chave na porta. Depois o ranger da madeira velha, entreouvem-se os passos na rua. Bate a porta. Uns passos calcam os degraus cansados.

Hans dá as boas noites. Pede uns minutos e sobe ao quarto. Desce mais fresco e húmido. O cabelo todo penteado para trás negro e luzidio. O uniforme deu lugar a umas calças amplas e a um casacão de malha. Senta-se em frente, no outro sofazinho. Pega no jornal e folheia-o. Nada que ele já não tivesse visto ou lido. Apenas o hábito de enviesar as letras na retina da mente. Meticulosamente dobra as folhas e levanta-se.

Uma vela bruxuleia, ali na mesa.

Uma nota solta.

Um desatino.

Petra chega de terrina na mão que coloca na mesa de dois. Sentam-se. O ruído dos movimentos é retraído. Um sussurrar de músculos no ar.

O pé que volta a tocar no outro pé.

O imediato recolher.

O pedido de desculpa.

O silêncio.

E o assado que chega. Tem cor. Tem aroma. Tem sal. Tem desejo. Convida.

Suspira-se. Saliva-se.

E o pé que resvala no outro pé. A perna que se alonga, a boca que se movimenta mais rápida., o pestanejar oblíquo, o movimento mais lasso do talher, o descair do corpo, o calor que regurgita do contacto.

E a vela que bruxuleia.

Ela, sempre ela, olha-o bem nos olhos. Mergulha sem hesitação. Ele deixa, segue-a. As mãos, as mãos entrelaçam-se.

Hans e Petra. Fêmea e macho. Sede e Fome. Corpos marmóreos, linhas em esquisso que se dobram na plástica dos músculos em cópula, os sentidos que explodem em vai e vem, o vocalizar dos sons guturais que se rebentam nas gargantas. A premência do orgasmo. O raiar da satisfação. O deslassar dos corpos. O estalar do riso, forte, brutal, carnal. Olham-se cúmplices e de novo se entrelaçam em renda de desejo. A redescoberta. Mais lenta, mais segura, porém mais voraz. Sem hiatos. Sem rebuços. Livres Ardentes Plenos na carne e na alma.

Tão simplesmente.

Na cozinha embrulhada em poalha de luz débil, Hans leva a chávena de café quente aos lábios. Trinca uma fatia de pão. Está em pé. Coloca a chávena na pia, já gasta, onde a torneira teima em pingar. Dirige-se para a velha chaminé e procura o saleiro. Retira algo.

Pega na mala castanha de fechos de metal já picados, coloca o boné na cabeça e desce as escadas que rangem.

Na mão livre segura um pequeno cofre e, dentro, a sua flor de sal.


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Lili Marleen In German - Marlene Dietrich