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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

27 julho, 2008

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Urze e Giesta

(…) X


É no vento que sopra por entre os montes, é no ar fresco bebido de neblina, que Isabel repousa a cabeça. Pedro já partiu. Está sozinha. Vinte anos depois está sozinha. Tem os filhos, é verdade, mas são eles que repousam a cabeça no seu ombro e não ela. Não tem onde descansar a cabeça. Pedro sempre esteve lá, foi o companheiro, o amante, o amigo, o marido, o pai. E agora? A raiva invade-a. Não sabe contra quem lutar. Sim, porque uma luta tem sempre dois rostos. Onde está o outro? A ausência do nada é pior que o excesso do todo. Como retomar uma vida onde o princípio se desfez? Ah! Que raiva, que dor, que esgar. Tinha que fugir, fugir. Fugiu da lógica e veio refugiar-se no seio da vida, onde os vagidos ainda ecoam e as vontades são dobradas. As suas raízes são estas, o seu mundo é este. Lento, rude, talhado por entre gumes de rocha cinzenta, dura, árida, erguida em pique contra o céu. Neste mundo, sem redondos nem subtilezas, está a sua alma. Mas onde pára? Onde dorme? Algures, na planura do vale pespontado de amarelo e verde, ou mais além, no sorriso cerrado dos montes, naquele declive rosado, não, talvez mais além ainda, naquele punho fechado de pedra agreste desafiando o céu mesmo por cima. Estará mesmo por ali? Se no seu vaguear perdido de anos, se no seu adejar contínuo, se na sua busca de sentido humano tivesse crescido para além das grades da forma, se tivesse distanciado, e liberta lhe gargalhasse rouca e profundamente, ofendendo-lhe os tímpanos, profanando-lhe os sentidos. Era o que sentia. A revolta. A alma reencontrara-a ou ela reencontrara-se. Tudo jorrava, agora, numa vaga surda, que se formava no estômago e lhe rebentava em explosão no cérebro. A lógica perdia-se. A infelicidade tomava-a num jacto amarelo de enjoo que a entumecia causando-lhe arrepios. Agoniada, cambaleava, mas logo em seguida, endireitava-se em ímpeto de garra, e num frenesim de segundos, disparava mentalmente contra tudo e todos. As pernas acompanhavam os disparos mentais. Os passos estugavam-se como se fugisse de uma horda em tumulto. Caminhava. Mentalmente látegos de vitupério formavam-se na língua prontos a serem expulsos. Mas não os vomitava. Com raiva e dor, engolia-os. Lentamente o cansaço invadia-a num ofegar de calor e suor. Empapada, vermelha e cansada, acalmava, então.

Isabel engalfinha as mãos. São esguias e tratadas. São mãos de cidade. Não possuem o sabor áspero da terra, apenas o dedilhar do saber mental. Baixa o braço, e de mão aberta apanha uma espiga madura. Sem ver, tacteando abre-a, esfarelando as flores sésseis já cheias, depois deixa-as cair, e de novo outra flor, e mais outra, ao longo dos seus passos. Caem abertas ao vento, as mãos. Estão vazias. Ergue os braços e em concha aberta, dirige-as para o zéfiro e grita. Porquê? Porquê? Deixa-se cair, lentamente, O ar assobia-lhe. Enfrenta-o ajoelhada. Não grita nem gesticula, apenas se deixa desabar perdida no tapete de erva macia e húmida. Ali fica imóvel de olhos perdidos no azul mosqueado de pedaços pastosos de branco. O mundo gravita à sua volta. Fecha os olhos. Entreabre os lábios que humedece com a ponta da língua. Instintivamente ajeita os cabelos que se emaranham com o vento. Deixa-se ficar queda e leve aspirando a brisa que abraça o fim do dia.

O dia começa a esconder-se por entre os cabeços dos montes. O azul tinge-se de amarelo e violeta, depois paulatinamente lança a rede das estrelas. Isabel levanta-se, sacode-se, articula-se e caminha.

Na velha casa vestida de granito e madeira, a luz já aquece a noite. Isabel empurra a porta pesada que chia nos gonzos meio ferrugentos e entra na cozinha onde Adelaide, a mãe, faz o caldo pra janta. Olha-a como se a visse pela primeira vez. E compreende então. Compreende o que sempre a magoou. Compreende o desamor, a amargura e aquela rudeza magoada. Então, como se fora ainda menina , sorri à Mãe com a alma nos lábios.

Silk Road - Kitaro


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22 julho, 2008

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Descendo o Tempo.

Entra, puxa a porta de ferro forjado, de folhas hirtas, que ao dobrar se animam em laços de toucado. Encosta-se à parede. Estica o braço, e com o indicador em riste onde a unha vermelha sorri, prime o botão. Rés-do-chão. Um ligeiro solavanco faz deslizar os cabos já cansados de sobe e desce. Ela, figura solitária olha-se no espelho que engalana o cubículo forrado a vermelho de veludo já esgaçado. Devolve com trejeito, o olhar. A boca, carnuda e húmida de polpa carmim, deslaça um sorriso que restitui à imagem. Os caracóis sedosos escapulem-se do petit-chapeau que lhe cobre o lado direito. A minúscula rede enevoa-lhe as pupilas, que se percebem aquosas, cor de mar. Figura gentil, coquette.Gira sobre si num trejeito de momice. Depois recosta-se ao veludo da parede. Lento num estrebuchar de idade, o elevador desce no tempo. O chiar monótono alinha-se com as memórias. O tempo vivido aqui e ali. O zurzir dos gritos interiores, prontamente alinhavados em súplicas ou sorrisos de promessas. Foi hoje, lá quarto andar onde vive, mora, se melhor pensar. Lá, onde o seu quotidiano vazio se prende às paredes profusas de cores e penumbras. É no terceiro andar da sua vida, que abre o álbum dos retratos por definir. É por aí, que puxa a porta adereçada e toma a descida. O hoje, já ficou para cima, na caixa escura, onde circula. Agora, começa o ontem, quase fresco de imagens e parábolas de quotidiano. Gerardo, o seu amante, o seu homem de sempre. Viril, canalha e lascivo. A sua sorte, o seu vício e o seu prazer. Ora uma eira de sentidos, ora uma campa de camarço. Não fazia sentido viver sem ele. Mesmo no desventrar do seu corpo, no repúdio do sentir, mesmo quando as entranhas se contraíam em vómitos e o sangue borbulhava de rancor, Gerardo era a seiva do seu Ser. Todo ele. A sua figura morena esquiva, lúbrica, brilhante e autoritária. O seu olhar cruel, profundo, desdenhoso, devasso e amante. Tudo nele tresandava a vida. Amava-o humilhando-se. A sua memória sabia-o, mas a sua carne era um animal esfomeado, necessitava da saciedade tal como o espírito se alimentava da raiva subcutânea fermentada nos poros, e que eclodia naquela dualidade de amor-ódio, trave mestra do seu quotidiano. Os dias do seu terceiro andar. O elevador desce inexorável. Ouvem-se esbatidos, saídos de uma grafonola, a voz gasta de Piaff e”La vie en Rose”. Um calafrio perpassa-a. Sacode-se como que extirpasse algo impalpável todavia objectivo, algo pegajoso e indesejado, a memória da verdade. O elevador desce. Segundo andar. O Pai. O corpo fica convulso. As unhas vermelhas cravam-se na carne. A pele láctea tinge-se de violeta. O seu Estigma. Revê o olhar negro, encovado, roxo, bruto. Aquele hálito de surro que embebedava o próprio ar. Aquelas mãos grandes, suadas que lhe procuravam o corpo nas noites geladas. Era ele, o homem que lhe aquecia a cama, lhe violava o ventre e roubava a alma. Era aquele monte de desejo putrefacto que se servia dela. E a mandava calar quando gritava. Era o caniço que o dominava e nela se satisfazia. Na filha. E fugiu, fugiu da podridão, fugiu da servidão, do ódio, da convulsão. Veio para o mundo. Que mais poderia fazer, se outra coisa, não sabia. A sua sina fora aberta no dia em que o pai dela se servira. Menina ainda. Depois fora o hábito, depois a perícia e agora a arte. Sim, arte, em tudo há arte. As imagens esbatem-se lentas mas fortes. Abalam. O negro, o escuro e o vermelho. Tingem a alma. O elevador continua a sua descida. Está a uma nesga do primeiro. A Mãe? Não se lembra. Fugiu. Sabe que fugiu com outro. As feições? Dizem que ela, Lisete, é-lhe parecida. Talvez.

Primeiro andar. O elevador pára, sacudindo-se como se os cabos mais não aguentassem. No baloiçar, a memória sorri. Um bibe de riscado, uma côdea na mão, umas tranças meias-feitas. De mão estendida procura tocá-la suavemente. A garota volta-se, acena e sorri. Um olhar doce, umas covinhas malandras. Ágil desaparece. Vai numa corrida desengonçada. A escola é mais além. Vê-a sentada, chupando no polegar enquanto pensa. Depois lesta, dedo no ar. A visão desvanece-se. Outro dia, um grupo de ganapos correm pelo campo fora. Vão às papoilas. É Maio. A brisa percorre o ar, e os risos dançam com ele. São cinco, seis, não sete garotos, todos povoando o verde do campo. Mãos e risos ao vento. Um dia feliz. A memória desse dia torna-a rosada. Endireita o corpo, olha-se ao espelho, ajeita a toilette, belisca as faces, compõe a saia, endireita o corpete, mira a ponta da botina e espera pelo rés-do-chão. O pátio, de mármore escuro, está do outro lado. A tarde transmuta-se na noite. Há penumbra amarga. Abre a porta que chia sob o peso das lembranças. As folhas parecem ter murchado ligeiramente. Carecem de uma lufada de memórias frescas e leves. Coloca a malinha no antebraço direito e calça as luvas. Pisa, serena, o patamar. A grande porta da rua está mesmo à sua frente, é só descer os degraus no tempo e calcar as quelhas do desatino.

O elevador fecha as luzes e dá as boas-noites.



.Piano Concerto No. 21 In C.2 Moverment - Wolfgang Amadeusz Mozart
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20 julho, 2008

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"O que uma lagosta tece lá embaixo com seus pés dourados?
Respondo que o oceano sabe.
Por quem a medusa espera em sua veste transparente?
Está esperando pelo tempo, como tu.
Quem as algas apertam em teus braços?, perguntas mais firme que uma hora e um mar certos?
Eu sei perguntas sobre a presa branca do narval e eu respondo contando como o unicórnio do mar, arpado, morre.
Perguntas sobre as plumas do rei-pescador que vibram nas puras primaveras dos mares do sul.

Quero te contar que o oceano sabe isto: que a vida, em seus estojos de jóias, é infinita como a areia incontável, pura; e o tempo, entre uvas cor de sangue tornou a pedra lisa encheu a água-viva de luz, desfez o seu nó, soltou seus fios musicais de uma cornicópia feita de infinita madrepérola.

Sou só uma rede vazia diante dos olhos humanos na escuridão e de dedos habituados à longitude do tímido globo de uma laranja. Caminho como tu, investigando as estrelas sem fim e em minha rede, durante a noite, acordo nu. A única coisa capturada é um peixe dentro do vento."

Pablo Neruda




"...Some say the lark and loathed toad change eyes,

O, now I would they had changed voices too!
Since arm from arm that voice doth us affray,
Hunting thee hence with hunt's-up to the day,
O, now be gone; more light and light it grows..."

William Shakespeare in Romeo and Juliet Act III Scene V.


15 julho, 2008

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Urze e Giesta

(…) IX

Maria Luísa sorri por entre a liquidez que teima em inundar-lhe as pupilas. Sente um nó, não sabe se no peito, se na garganta, crê mesmo que o maldito a comprime toda. Relança o olhar ao filho mais velho e os lábios despregam-se-lhe. Tem vontade de o castigar como se fora ainda o seu menino. Dois açoites apaziguariam a tremedeira que a percorre. Tem a ira a enrolar, a enrolar.

-Bom, o melhor é levantar-me e ir até à cozinha. Os tachos ouvir-me-ão certamente. Assim o pensa, melhor o faz.

Ouve-se um cair de tampas, sons estridentes, rolados, consequentes e subsequentes à manipulação desastrada ou irada da sua dona. A fanfarra desafinada largou-se pelas bandas da cozinha e os pratos batem convulsivos num estertor estrídulo de notas arranhadas em dissonância.

-Ai Pedro, Pedro… E pensar que passava a vida a enaltecer este filho. Afinal é igual aos outros, e ainda por cima diz que está simplesmente cansado. Ai, ai que idiota! Os irmãos pelo menos nunca se taparam com a capa de Santos. A Margarida é mesmo daquele jeito, sem jeito. Mas parece que é feliz. O outro, o Afonso, agora depois de casado e pai, achou que tinha que mudar de género. Enfim. Na verdade estes tempos são demais para mim. Já não atino com todas estas mudanças. E não vale a pena tentar acompanhar, as pernas já estão demasiado cambaias para tantos solavancos.

A cólera passiva que a domina espreita o exterior. É nas facas que lhe escorregam, nos garfos que se estatelam pelo chão, que sente a desforra de um penar, há muito latente nas entranhas. A loiça já está toda metida na máquina, e em vez de se dobrar, como seria normal, é com a ponta do pé que levanta a porta, de seguida o joelho empurra-a, fechando-a. Mais um movimento inusitado nesta mulher quase serena.

-Raios partam esta vida… mas que mal fiz eu para ter uns filhos assim…! Labutei que nem uma moira, sacrifiquei-me, logo agora quando pensava poder descansar, estes estropícios, sim estropícios vêm dar-me cabo dos dias com as suas “inadaptações”. Santo Deus… estou farta!

Num gesto inusitado, num arroubo incomum, Maria Luísa dá um pontapé no caixote do lixo que se entorna pelo chão.

-Só me faltava mais esta ter que apanhar o lixo, nem a propósito…

A inércia tomou conta dos seus resmungos. Sente um pouco de alívio, sente que o seu peito despejou umas quantas queixas mas que o desengano se mantém. Mãe, que é mãe, sempre ajeita as notícias, mas dentro de si, elas entrechocam-se até o tempo as acomodar nas prateleiras dos afectos. Por ora, Maria Luísa, ainda procura o espaço, em tempo, chegará o lugar exacto, e só muito depois, o sorriso e a famigerada auto-consolação: “Afinal não foi o primeiro nem será o único”. E ponto final, fecha-se a gaveta. Há que abrir outra. Porém por ora, as emoções estão ainda à flor da pele…

- Bem, e ainda não acabou por hoje, vem aí a Margarida mais a Inês. Com que cara de pau lhes vou dizer, sobretudo à Margarida… Sempre tenho cada engulho… e logo a ela!

-Mãezinha, o que se passa, agora fala sozinha?

-Pedro és tu que me pões assim. Filho, não estou ainda em mim… juro que não. Mas é só uma coisa passageira, não é? Um arrufo? Ai, os meus netos!

-Mãezinha, não sei se é passageiro ou não, não sei. Sei que preciso, que precisamos de tempo. É isso. Por favor não faça drama de uma coisa natural.

-Natural? Pois, pois… não me digas mais nada. Vai ter com o teu pai, vocês homens nestas alturas entendem-se melhor. São da mesma massa… Coitada da Isabel...tão boa rapariga, boa mãe, esplêndida profissional, mulher interessantíssima e… agora.

- O paizinho disse-me que a Margarida vem cá passar o fim-de-semana e que a Inês vem com ela. Há séculos que não vejo a minha sobrinha. Afinal via-a nascer.

- Só desgostos é o que vocês me têm dado. A tua irmã, depois o teu irmão, agora tu. Nem sei como tenho cara…

-Mãezinha, não percebo porquê tanto drama. Já se esqueceu de todas as outras e muitas alegrias que lhe demos os três. Esqueceu-se… ou faz que se esqueceu. Nós somos vossos filhos, mas não somos vossas cópias, somos diferentes, vivemos noutro tempo, sentimos sem rótulo de embalagem. Quando o embrulho é desatado apenas aproveitamos o que precisamos, não queremos o papel nem o laço para toda a vida, mesmo porque que o papel se vai rasgando e a fita desfiando. Percebe-me, mãezinha? O casamento é isso, um embrulho. Cada um desata conforme sabe e gosta.

-Ai é? Um embrulho? Muito me contas. O melhor é não dizeres mais nada. Peço-te.

- Como queira. Mas é a minha decisão.

Sai da cozinha encolhendo os ombros, meneando a cabeça e de rosto fechado. Aquele ar calmo e simpático, apanágio da sua pessoa, parece ter-se evaporado. Há uma nuvem espessa nas pupilas que as tornam cinzentas escuras como se uma trovoada se acercasse tocada pelo vento forte do norte. Aquele que trás o frio e a chuva. O tempo dito de borrasca.

Ouve-se o toque do badalo no portão do jardim. Sorri por entre o furacão que espreita às janelas do seu sentir. A sua irmã sempre previsível, igual e turbulenta. A única pessoa na família que sempre puxou o badalo do portão do jardim, que sempre se fez entrar por aí, desdenhando a porta principal. Margarida que desde pequena sempre foi avessa ao padrão. Nasceu quase assim. Ainda se lembra dela bem pequenina e sempre independente. Apesar de ser a menina, era bem mais rebelde do que os seus dois irmãos. A única que enfrentou o pai e lhe desobedeceu acintosamente. A sua força de carácter foi sempre um mistério para Pedro. Nunca percebeu lá muito bem, onde é que aqueles dez réis de gente fora buscar tanta força, raiva, altivez e independência. Porém, e se bem conhecia a sua irmã, o reverso de todo aquela personalidade era um bom pedaço de manteiga bem mole.. Quem lhe soubesse tocar as cordas do violino da sensibilidade tinha tudo o que queria. Era certo, que o pai tinha muito orgulho no seu carácter e vida profissional, não tanto na sua vida pessoal. Houvera sempre um constrangimento no relacionamento entre mãe e filha, ela não aceitava a maneira acintosa de Margarida, a sua frontalidade pessoal, o seu desdém pelas convenções, o encolher de ombros, a fuga aos paradigmas que Maria Luísa tinha como certos, a falta de sentimento de culpa, o que parecia ser, a seus olhos, lacuna grave no carácter da filha. Os preconceitos de laivos burgueses que geriam o mundo de Maria Luísa, e contra os quais Margarida sempre se rebelara, levando a dela a à avante. A relação mãe-filha mais do que conflituosa fora sempre táctica.

Pedro respira fundo e desde para o jardim. Margarida sempre lhe dará um pouco daquela alegria que ele bem precisa.

No alto das escadas que dão acesso ao jardim já Maria Luísa fala com a filha e neta.

Calmamente desce e coloca-se a meio caminho. Uma estratégia de batalha que aprendera e o precavia de golpes mais profundos.

-Olá Margarida, bons olhos te vejam. E a Inês, caramba sobrinha. O tempo passa!

-Olha pra ele, a fazer-se de importante. Por acaso não sabes onde vivo? Sabes, não sabes. Eu é que não tenho vida, e depois nunca fui dessas coisas, já sabem.

-Olá tio. A tia e os primos estão cá? Vou já ter com eles. Estão lá em cima?

-Não, minha querida. Vim sozinho. Estão bem, todos finos e rijos.


Margarida olha directamente nos olhos do irmão. Sustenta-lhe o olhar, lê tudo o que tinha para ler. Não precisa de mais. Pertence ao singular grupo daquelas pessoas que percebem tudo sem as palavras. Estende-lhe as mãos e estreita as dele nas suas. Um sorriso de lábios vermelhos aquece o constrangimento sub-reptício que pairou por momentos. Há luz e força nas suas pupilas. Margarida ágil, senhora de si, dá um braço a Pedro e juntos entram em casa. Há cumplicidade . O tempo da revelação virá...

Eines Tages (from Madame Butterfly) - James Last

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13 julho, 2008

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Prazeres.

Uma haste tenra que surge, mais outra, outra, e outra ainda. Um laço enrolado. Um braço solto no ar. O vento que vem e embala a haste, acaricia a folha e balança o cacho minúsculo, quais grânulos verdes e múltiplos em triângulo invertido. No bardo verdejante papoilam os cachos emoldurados de parras e laçados nas gavinhas. No chão, faúlhas de xisto amaciam a terra vermelha e seca. O pó solta-se sempre que o vento vem namorar os vinhedos. Dá-lhes a patina do calor aquecendo os pequenos grãos bagos que resfolegam tranquilamente. O verão dança na vinha, por entre as gavinhas que prendem os cachos ,e a terra calçada de alpergatas de xisto. Em cada passo calcado há a memória que se escoa na poalha do solo.

Além desce suave a colina, aqui sobe penoso o socalco. Mais além, brinca o olhar da moçoila e do rapagão, sob a oliveira serena que veste a sombra do recanto, gera-se o grito de vida. No outro além, lá em baixo junto ao rio, deitado na erva tenra e florida de vinagreiras amarelas, sonha-se com o mundo ao sabor da corrente. E os vinhedos maturam-se no rolar do tempo. As cores são inebriantes de luz. Os castanhos descem até ao rosa e pelo meio vestem-se de ouro, de negro, de púrpura. Hino de paleta por pintar, tela viva ainda não gizada na arte do traço. A terra, mater fecunda, abre-se ao estio da idade. Matura no seio ,o néctar, que outros virão colher. Grupos de cestos, cantigas ecoadas e risos perdidos, enchem o céu alinhavado de ténues sopapos de algodão.

E o calor rebola no vento, tisnando o bardo, aquecendo a doçura do líquido, que entre dedos espirra quente e perfumado como se fora aroma estilizado. As tesouras cortam as hastes entoando o seu eterno tic-tac. Soltos os cachos rebolam pelos cestos. Há no ar um cheiro doce, quase enjoativo que as ladainhas respigam mais ainda. A tarde esvai-se. Colossal a paisagem pára. Perde a animação. Descansa, imóvel do prazer tirado do seu ventre fecundo. A orgia do dia cessou, qual cortesã banha-se lânguida na brisa do entardecer que a despe. A terra veste a musselina estrelada da noite, devolve com um beijo sensual o pestanejar daquela estrela atrevida que teima em seduzi-la ,e recolhe-se nas suas entranhas ainda mornas de ardor vivido. O palpitar, de cada dia, no todo do seu ser, fá-la suspirar. Amanhã novas primícias ser-lhe-ão exortadas. Há que descansar.

Boa-noite!

Antonin Dvorak - Humoresque -

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