Quem sou eu

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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

20 julho, 2008



"...Some say the lark and loathed toad change eyes,

O, now I would they had changed voices too!
Since arm from arm that voice doth us affray,
Hunting thee hence with hunt's-up to the day,
O, now be gone; more light and light it grows..."

William Shakespeare in Romeo and Juliet Act III Scene V.


15 julho, 2008

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Urze e Giesta

(…) IX

Maria Luísa sorri por entre a liquidez que teima em inundar-lhe as pupilas. Sente um nó, não sabe se no peito, se na garganta, crê mesmo que o maldito a comprime toda. Relança o olhar ao filho mais velho e os lábios despregam-se-lhe. Tem vontade de o castigar como se fora ainda o seu menino. Dois açoites apaziguariam a tremedeira que a percorre. Tem a ira a enrolar, a enrolar.

-Bom, o melhor é levantar-me e ir até à cozinha. Os tachos ouvir-me-ão certamente. Assim o pensa, melhor o faz.

Ouve-se um cair de tampas, sons estridentes, rolados, consequentes e subsequentes à manipulação desastrada ou irada da sua dona. A fanfarra desafinada largou-se pelas bandas da cozinha e os pratos batem convulsivos num estertor estrídulo de notas arranhadas em dissonância.

-Ai Pedro, Pedro… E pensar que passava a vida a enaltecer este filho. Afinal é igual aos outros, e ainda por cima diz que está simplesmente cansado. Ai, ai que idiota! Os irmãos pelo menos nunca se taparam com a capa de Santos. A Margarida é mesmo daquele jeito, sem jeito. Mas parece que é feliz. O outro, o Afonso, agora depois de casado e pai, achou que tinha que mudar de género. Enfim. Na verdade estes tempos são demais para mim. Já não atino com todas estas mudanças. E não vale a pena tentar acompanhar, as pernas já estão demasiado cambaias para tantos solavancos.

A cólera passiva que a domina espreita o exterior. É nas facas que lhe escorregam, nos garfos que se estatelam pelo chão, que sente a desforra de um penar, há muito latente nas entranhas. A loiça já está toda metida na máquina, e em vez de se dobrar, como seria normal, é com a ponta do pé que levanta a porta, de seguida o joelho empurra-a, fechando-a. Mais um movimento inusitado nesta mulher quase serena.

-Raios partam esta vida… mas que mal fiz eu para ter uns filhos assim…! Labutei que nem uma moira, sacrifiquei-me, logo agora quando pensava poder descansar, estes estropícios, sim estropícios vêm dar-me cabo dos dias com as suas “inadaptações”. Santo Deus… estou farta!

Num gesto inusitado, num arroubo incomum, Maria Luísa dá um pontapé no caixote do lixo que se entorna pelo chão.

-Só me faltava mais esta ter que apanhar o lixo, nem a propósito…

A inércia tomou conta dos seus resmungos. Sente um pouco de alívio, sente que o seu peito despejou umas quantas queixas mas que o desengano se mantém. Mãe, que é mãe, sempre ajeita as notícias, mas dentro de si, elas entrechocam-se até o tempo as acomodar nas prateleiras dos afectos. Por ora, Maria Luísa, ainda procura o espaço, em tempo, chegará o lugar exacto, e só muito depois, o sorriso e a famigerada auto-consolação: “Afinal não foi o primeiro nem será o único”. E ponto final, fecha-se a gaveta. Há que abrir outra. Porém por ora, as emoções estão ainda à flor da pele…

- Bem, e ainda não acabou por hoje, vem aí a Margarida mais a Inês. Com que cara de pau lhes vou dizer, sobretudo à Margarida… Sempre tenho cada engulho… e logo a ela!

-Mãezinha, o que se passa, agora fala sozinha?

-Pedro és tu que me pões assim. Filho, não estou ainda em mim… juro que não. Mas é só uma coisa passageira, não é? Um arrufo? Ai, os meus netos!

-Mãezinha, não sei se é passageiro ou não, não sei. Sei que preciso, que precisamos de tempo. É isso. Por favor não faça drama de uma coisa natural.

-Natural? Pois, pois… não me digas mais nada. Vai ter com o teu pai, vocês homens nestas alturas entendem-se melhor. São da mesma massa… Coitada da Isabel...tão boa rapariga, boa mãe, esplêndida profissional, mulher interessantíssima e… agora.

- O paizinho disse-me que a Margarida vem cá passar o fim-de-semana e que a Inês vem com ela. Há séculos que não vejo a minha sobrinha. Afinal via-a nascer.

- Só desgostos é o que vocês me têm dado. A tua irmã, depois o teu irmão, agora tu. Nem sei como tenho cara…

-Mãezinha, não percebo porquê tanto drama. Já se esqueceu de todas as outras e muitas alegrias que lhe demos os três. Esqueceu-se… ou faz que se esqueceu. Nós somos vossos filhos, mas não somos vossas cópias, somos diferentes, vivemos noutro tempo, sentimos sem rótulo de embalagem. Quando o embrulho é desatado apenas aproveitamos o que precisamos, não queremos o papel nem o laço para toda a vida, mesmo porque que o papel se vai rasgando e a fita desfiando. Percebe-me, mãezinha? O casamento é isso, um embrulho. Cada um desata conforme sabe e gosta.

-Ai é? Um embrulho? Muito me contas. O melhor é não dizeres mais nada. Peço-te.

- Como queira. Mas é a minha decisão.

Sai da cozinha encolhendo os ombros, meneando a cabeça e de rosto fechado. Aquele ar calmo e simpático, apanágio da sua pessoa, parece ter-se evaporado. Há uma nuvem espessa nas pupilas que as tornam cinzentas escuras como se uma trovoada se acercasse tocada pelo vento forte do norte. Aquele que trás o frio e a chuva. O tempo dito de borrasca.

Ouve-se o toque do badalo no portão do jardim. Sorri por entre o furacão que espreita às janelas do seu sentir. A sua irmã sempre previsível, igual e turbulenta. A única pessoa na família que sempre puxou o badalo do portão do jardim, que sempre se fez entrar por aí, desdenhando a porta principal. Margarida que desde pequena sempre foi avessa ao padrão. Nasceu quase assim. Ainda se lembra dela bem pequenina e sempre independente. Apesar de ser a menina, era bem mais rebelde do que os seus dois irmãos. A única que enfrentou o pai e lhe desobedeceu acintosamente. A sua força de carácter foi sempre um mistério para Pedro. Nunca percebeu lá muito bem, onde é que aqueles dez réis de gente fora buscar tanta força, raiva, altivez e independência. Porém, e se bem conhecia a sua irmã, o reverso de todo aquela personalidade era um bom pedaço de manteiga bem mole.. Quem lhe soubesse tocar as cordas do violino da sensibilidade tinha tudo o que queria. Era certo, que o pai tinha muito orgulho no seu carácter e vida profissional, não tanto na sua vida pessoal. Houvera sempre um constrangimento no relacionamento entre mãe e filha, ela não aceitava a maneira acintosa de Margarida, a sua frontalidade pessoal, o seu desdém pelas convenções, o encolher de ombros, a fuga aos paradigmas que Maria Luísa tinha como certos, a falta de sentimento de culpa, o que parecia ser, a seus olhos, lacuna grave no carácter da filha. Os preconceitos de laivos burgueses que geriam o mundo de Maria Luísa, e contra os quais Margarida sempre se rebelara, levando a dela a à avante. A relação mãe-filha mais do que conflituosa fora sempre táctica.

Pedro respira fundo e desde para o jardim. Margarida sempre lhe dará um pouco daquela alegria que ele bem precisa.

No alto das escadas que dão acesso ao jardim já Maria Luísa fala com a filha e neta.

Calmamente desce e coloca-se a meio caminho. Uma estratégia de batalha que aprendera e o precavia de golpes mais profundos.

-Olá Margarida, bons olhos te vejam. E a Inês, caramba sobrinha. O tempo passa!

-Olha pra ele, a fazer-se de importante. Por acaso não sabes onde vivo? Sabes, não sabes. Eu é que não tenho vida, e depois nunca fui dessas coisas, já sabem.

-Olá tio. A tia e os primos estão cá? Vou já ter com eles. Estão lá em cima?

-Não, minha querida. Vim sozinho. Estão bem, todos finos e rijos.


Margarida olha directamente nos olhos do irmão. Sustenta-lhe o olhar, lê tudo o que tinha para ler. Não precisa de mais. Pertence ao singular grupo daquelas pessoas que percebem tudo sem as palavras. Estende-lhe as mãos e estreita as dele nas suas. Um sorriso de lábios vermelhos aquece o constrangimento sub-reptício que pairou por momentos. Há luz e força nas suas pupilas. Margarida ágil, senhora de si, dá um braço a Pedro e juntos entram em casa. Há cumplicidade . O tempo da revelação virá...

Eines Tages (from Madame Butterfly) - James Last

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13 julho, 2008

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Prazeres.

Uma haste tenra que surge, mais outra, outra, e outra ainda. Um laço enrolado. Um braço solto no ar. O vento que vem e embala a haste, acaricia a folha e balança o cacho minúsculo, quais grânulos verdes e múltiplos em triângulo invertido. No bardo verdejante papoilam os cachos emoldurados de parras e laçados nas gavinhas. No chão, faúlhas de xisto amaciam a terra vermelha e seca. O pó solta-se sempre que o vento vem namorar os vinhedos. Dá-lhes a patina do calor aquecendo os pequenos grãos bagos que resfolegam tranquilamente. O verão dança na vinha, por entre as gavinhas que prendem os cachos ,e a terra calçada de alpergatas de xisto. Em cada passo calcado há a memória que se escoa na poalha do solo.

Além desce suave a colina, aqui sobe penoso o socalco. Mais além, brinca o olhar da moçoila e do rapagão, sob a oliveira serena que veste a sombra do recanto, gera-se o grito de vida. No outro além, lá em baixo junto ao rio, deitado na erva tenra e florida de vinagreiras amarelas, sonha-se com o mundo ao sabor da corrente. E os vinhedos maturam-se no rolar do tempo. As cores são inebriantes de luz. Os castanhos descem até ao rosa e pelo meio vestem-se de ouro, de negro, de púrpura. Hino de paleta por pintar, tela viva ainda não gizada na arte do traço. A terra, mater fecunda, abre-se ao estio da idade. Matura no seio ,o néctar, que outros virão colher. Grupos de cestos, cantigas ecoadas e risos perdidos, enchem o céu alinhavado de ténues sopapos de algodão.

E o calor rebola no vento, tisnando o bardo, aquecendo a doçura do líquido, que entre dedos espirra quente e perfumado como se fora aroma estilizado. As tesouras cortam as hastes entoando o seu eterno tic-tac. Soltos os cachos rebolam pelos cestos. Há no ar um cheiro doce, quase enjoativo que as ladainhas respigam mais ainda. A tarde esvai-se. Colossal a paisagem pára. Perde a animação. Descansa, imóvel do prazer tirado do seu ventre fecundo. A orgia do dia cessou, qual cortesã banha-se lânguida na brisa do entardecer que a despe. A terra veste a musselina estrelada da noite, devolve com um beijo sensual o pestanejar daquela estrela atrevida que teima em seduzi-la ,e recolhe-se nas suas entranhas ainda mornas de ardor vivido. O palpitar, de cada dia, no todo do seu ser, fá-la suspirar. Amanhã novas primícias ser-lhe-ão exortadas. Há que descansar.

Boa-noite!

Antonin Dvorak - Humoresque -

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12 julho, 2008

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A Terra

Também eu quero abrir-te e semear
Um grão de poesia no teu seio!
Anda tudo a lavrar,
Tudo a enterrar centeio,
E são horas de eu pôr a germinar
A semente dos versos que granjeio.

Na seara madura de amanhã
Sem fronteiras nem dono,
Há de existir a praga da milhã,
A volúpia do sono
Da papoula vermelha e temporã,
E o alegre abandono
De uma cigarra vã.

Mas das asas que agite,
O poema que cante
Será graça e limite
Do pendão que levante
A fé que a tua força ressuscite!

Casou-nos Deus, o mito!
E cada imagem que me vem
É um gomo teu, ou um grito
Que eu apenas repito
Na melodia que o poema tem.

Terra, minha aliada
Na criação!
Seja fecunda a vessada,
Seja à tona do chão,
Nada fecundas, nada,
Que eu não fermente também de inspiração!

E por isso te rasgo de magia
E te lanço nos braços a colheita
Que hás de parir depois...
Poesia desfeita,
Fruto maduro de nós dois.

Terra, minha mulher!
Um amor é o aceno,
Outro a quentura que se quer
Dentro dum corpo nu, moreno!

A charrua das leivas não concebe
Uma bolota que não dê carvalhos;
A minha, planta orvalhos...
Água que a manhã bebe
No pudor dos atalhos.

Terra, minha canção!
Ode de pólo a pólo erguida
Pela beleza que não sabe a pão
Mas ao gosto da vida!

Miguel Torga



A Passage Of Life - Kitaro

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10 julho, 2008

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Main Theme From Out Of Africa - John Barry


Paki

Sentado no degrau da porta da entrada ,Paki escarafuncha as narinas já de si bem largas. Poisa os pés descalços no tijolo vermelho, ao lado descansam os chinelos já gastos e escuros de mil andanças. O tronco cor de chocolate aveludado respira nu o calor da tarde fazendo descer aquela moleza que só Paki sabe sentir. Rebola os olhos e o branco respinga no rostinho doce em jeito de nuvem de chantilly. Paki é menino órfão nas ruas da cidade grande. A vida é zagaia lançada no ar. É mesmo. Foi coisa amarga com que nasceu e cresceu, assim numa caixa vazia de amor. O pai, não conheceu, porque a mãe também se esquecera de quem fora. A pobreza é assim, o corpo paga a fome e depois sem licença gera gente em viagem famélica de amor, apenas abrigada no útero quente. Foi assim que Paki se tornou gente. Num acaso qualquer, numa troca de carne e moedas, lá viu ele a linha da vida. E fez-se menino. Depois a mãe sumiu mal o tinha botado cá para fora. Paki cresceu na rua entre o lixo, fumo e o cheiro. Mas vinha de mão dada com o sol e não deixou que ele lhe escapasse. Só no fim de cada dia deixava que fosse descansar. Paki sabe que o sol é o amigo envolvente dos dias menos quentes, a roupa que não teve. O menino de chocolate cabeceia, o pescoço dá aquela volta redonda sempre que a cabeça pesa de sono, e descai sobre o peito nu de chocolate. As persianas fecham-se, o mundo cavalga na neblina do faz de conta sonhado. Paki corre na frente do jardim onde as flores azuis se abanam no bom dia da manhã. Da cozinha vem o cheiro da custarda com ruibarbo que ele tanto adora. Ouve a voz quente da mãe, sente a macieza reboluda do peito, onde ele rola o rosto e aquece a alma. Apetece-lhe correr, correr muito tanto quanto as suas pernas esguias o levem. É o seu sonho de todos os dias. E no rosto adormecido perpassa a luz do sorriso que lhe ergue as comissuras dos lábios cheios.

Depois, depois, vem o homem grande que sai do quartinho lá em cima, onde a madrinha ganha a vida e perde os anos, o homem que embirra sempre com ele, e lhe dá um pontapé dizendo-lhe:

-Ei, miúdo acorda, pisga-te daqui…senão desanco-te. Vai trabalhar moleque…

Paki levanta-se, agarra nos chinelos de borracha mas o pontapé atinge-o ainda nas costas. Dói. Nem tanto a dor seca que lhe comprime o ar fazendo-lhe arder as costelas, mas mais magoa aquela onda surda que o sufoca. Rebenta em lágrimas e ranho pelo rostinho. Paki é menino da rua, pobre, sujo, famélico mas sentido. A solidão dos afectos torna-o mais sofrido. Soluça Paki, soluça a alma da criança na sombra cinzenta do mundo às avessas. Paki é testemunha. Paki é nome Zulu.

08 julho, 2008

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O Mar e os Sinos

O dia não é hora por hora.
É dor por dor,
o tempo não se dobra,
não se gasta,
mar, diz o mar,
sem trégua,
terra, diz a terra,
o homem espera.
E só
seu sino
está ali entre os outros
guardando em seu vazio
um silêncio implacável
que se repartirá
quando levante sua língua de metal
onda após onda.

De tantas coisas que tive,
andando de joelhos pelo mundo,
aqui, despido,
não tenho mais que o duro meio-dia
do mar, e um sino.

Eles me dão sua voz para sofrer
e sua advertência para deter-me.
Isto acontece para todo o mundo,
continua o espaço.

E vive o mar.

Existem os sinos.

Pablo Neruda

.Hymn To The Sea - Titanic
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Mãe infusa

Ainda estão por dizer
as púdicas confidências
do tempo em que era possível
ouvir as hortênsias.

No quintal de incontinente
o maracujá enlanguescia
e pedra a pedra se reconstruía
a casa infinitamente.

Teu rosto ainda não vagueava
na noite fria do retrato.
Em que desmemoriada candeia
derramaste oh mãe o azeite intacto?

Dispunhas as jóias do inverno
para a festa cálida do verão.
Por certo alguma levaste
passando-a ao fisco da morte
para que uma pérola te assinalasse
no caso que o vento espalhasse
o pólen da tua mão.

Eis-te todavia sem ossos
mas mais do que nunca infusa
em teu ovular desvelo
e eu carnalmente intrusa
pressinto que para tocar-te
enfermo de longos cabelos.



Natália Correia
Poesia Completa
O Vinho e a Lira, 1966
Publicações Dom Quixote
1999
The Flower Duet - Katherine Jenkins
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