Quem sou eu

Minha foto
Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

06 maio, 2008


Cvalente do blog cujo nome se repete atribuíu a aArtmus "o selo dos "Blogueiros que sabem comentar" o qual desde j á agradeço. Convém segundo os cânones pré-estipulados passar o selo a mais alguém, assim atribuo-o a :

Menina dos olhos d'água
Canto.chão
Árvore das Palavras.
Casa de Maio
Terra-de-Magia
Un-dress
Mar Arável
Aguarelas de Turner
Cor do silêncio
Fragmentos da noite com flores

E tantos outros ... e um obrigada pela vossa presença.

05 maio, 2008



Urze e Giesta I

“Estou em casa, é aqui que tudo começa…

Isabel caminha na terra vestida de carqueja florida, rosmaninho, urze e giestas. As cores matizam-se entre si abraçadas de verde, sente a brisa morna da tarde roçar-lhe o rosto e as pernas. Os braços baloiçam-se ao movimento dos pés. Sente-se quase plena. Pode respirar e sobretudo pensar. Veio ontem da cidade, tem uns dias para descansar. Num momento, empurrou a vida para trás da porta que fechou de supetão, enfiou-se no seu carrito, e rumou em direcção a casa dos pais. Não que as saudades apertassem. Nada disso. Sempre vivera longe. Habituara-se, aliás até preferia. Precisava de estar longe, de se medir, pesar e encontrar. Já não era gaiata. Andava nos seus quarenta. Naquela altura da vida em que se está maduro por fora e nem sempre se cresceu por dentro. Era casada, mãe, tinha profissão, casa e outras coisas. Isabel caminha pela terra adentro, enterra os sapatos, na almofada matizada, abre as narinas aos cheiros enchendo o cérebro de perfumes numa lavagem premeditada daqueles outros que lhe povoavam os dias e os sentires. Isabel, busca a seiva de outros tempos, quando ainda era catraia e corria por estes campos fora, de nariz ao vento e cabelos espalhados. Era outra vida. Uma outra, que ela deliberada fizera, quase desvanecer na busca, quase idiota, do ser citadino que julgara afivelado de preceitos, bordado de finuras, alargado de conceitos e engomado de prazeres. Pura cretinice. O seu quotidiano, quase asséptico de vida, ziguezagueado de percursos e escolhas pouco se assemelhava ao sonho que um dia tivera.

Os montes rasgam a paisagem ao longe. Estão azuis de nuvens. A brisa percorre-lhe o corpo agitando-lhe os sentidos em arrepio de recordações. Sorri ao vento que dança no ar.

“- Isabel vem cá. Dá uma mãozinha aqui ao lume.

-Vou indo, minha mãe, vou indo.

-Isabel olha pelo menino, que eu tenho que ir dar uma jeira pró Ti Lelo.

-Tá bem, mãe, tá bem, vá em paz. “

Fora assim a sua infância. Uma corrida entre o tempo da escola e o da casa. O da escola fora de meninice, o de casa de obrigações. Brincara no sem fim da imaginação. Depois havia a casa. Era a única rapariga. Tinha responsabilidades. Cumpria-as. Era a vida. Os anos da infância tinham voado. Já nem se lembrava direito do seu dia-a-dia. Apenas pontilhado na memória surgiam breves apontamentos que a tinham marcado. O nascimento do irmão mais novo, a primeira comunhão e o vestido de bordado mais os sapatos, o exame da quarta classe. A ida para o liceu o deixar a casa paterna, e ficar no colégio das irmãzinhas. O cheiro das velas e da cera que a tinham perseguido sempre. O pão com manteiga, o leite cujo cheiro era bem diferente do de sua casa. O banho semanal de água quase fria. O frio que a percorria nos invernos agrestes daqueles outros tempos. As camaratas frias e hermeticamente arrumadas. As tábuas do chão sempre imaculadas de pó. Não havia poesia no ar. Apenas ordem e regra. Fora tudo isto que a tornara uma sonhadora incorrigível. Fora buscar onde não havia. Depois o crescer em solavancos, entre a imaginação e a realidade dera-lhe um certo ar ausente qual aureola que afastava mais as pessoas do que as atraía. Consequentemente foi quase uma solitária. Achavam-na estranha, depois era da” aldeia”. Não possuía a ligeireza vazia do discurso da cidade, por essa altura. As palavras eram pesadas. Habituara-se aos silêncios da casa e da sua gente. As palavras usadas eram as essenciais, não as supérfluas ou roladas. As falas eram sucintas porque os gorjeios eram dos pássaros. Nas aulas era das melhores. Criara o seu respeito através dos professores. Os livros eram os amigos desejados. Assim crescera a adolescência. Tornara-se alta e proporcionada. Era atraente quase bonita. Sobressaía das demais pelos olhos, pela estatura e proporção, pelo enfrentar e suster do olhar sempre capeado de brilho e altivez. Era uma figura. Em breve a escola ficou para trás, como era ambiciosa meteu-se a trabalhar nas férias, arranjou uns tostões e juntos com a bolsa foi para a cidade, para a Faculdade. Sempre fora o seu sonho. Sentia-se dona do mundo quando a pisou pela primeira vez. Sentia que o futuro era seu, apenas seu. Não sonhava acordada, vivia, sim desperta para o que a rodeava. Diziam dela, ser arrogante, presumida, ter manias. Talvez tivesse um pouco de tudo isso. Talvez. Mas tinham sido esses, os outros que a tinham forjado e temperado na pele que vestia agora. Cinco anos de faculdade voaram. Cinco anos de rápidos, cheios, vivos e diferentes. Tempo de transplante do canteiro do campo para o vaso da cidade. As raízes acostumaram-se embrulharam-se em redondo sobre si mesmas e a planta cresceu mais estilizada O húmus era o alcatrão que pisava quotidianamente. As chuvadas regavam-na sempre que se sentia exaurida de seca. E assim se conheceu mulher e amou. Também sentiu a raiva, oódio e a acalmia que sobrevém ao outro amanhã. Viveu o que a vida contém na sombra de cada escolha. Teve que recomeçar mas sempre sentiu que cada recomeço é sempre uma estação. Depois, depois…

Olha em redor e sente as vozes que a envolveram. As vozes ancestrais do seu mundo. Aquele é o seu mundo. Senta-se na berma do campo entre a urze e as giestas. O cheiro inebria-a quase a entontece.

……………….

Na masseira o pão gira num voltear de zás, trás, zás. Júlia Papas bate, enrola, rebola. Rebola, bate e enrola. Afogueiam-se-lhe as faces, o rosto mais o buço estão perlados de pequenas gotas de suor. O lenço que lhe cobre os cabelos vai descaindo lento e suave. Leva a mão à cabeça e puxa-o. Fica enfarinhado. Bem como a testa. Caem-lhe breves fios de cabelo que ela sopra e empurra com o antebraço. Nova batida, nova partida. Esparge uma névoa de farinha sobre a massa, enrola-a no redondo de si. Suspira, benze-a e tapa-a. Há que levedar. Murmura:“Deus te ponha a virtude. Que da minha parte fiz tudo o que pude.” O toque final para o bom pão. Puxa pelo avental que pendura na parede oposta ao forno. Tira o lenço, passa as mãos pela blusa que estica, mete os pés nas chinelas e deitando um último olhar, fecha a porta atrás de si.

Cá fora respira fundo. Sorve aquele ar cálido do entardecer quando o sol se despe da cambraia do dia e começa a vestir o veludo da noite. São quase horas da janta, tem que se apressar. Mas sabe-lhe tão bem estes momentos de paz. Gosta de estender as mãos ao ar como se pudesse agarrar um pouco de mundo. Cruzes. Está a ficar “tomada”. Abana a cabeça, benze-se, dá meia volta e entra na porta ao lado da que saiu.

-Ó Minha mãe, a senhora nunca mais vinha. Já pus o caldo ao lume.

-Filha fizeste bem. Cegaste as couves? O tê pai já chegou?

-Na, inda na pareceu, deve ‘tar lá baixo nos copos e nas cartas. Na sabe como ele é?!

- Cada um ca sua cruz! Ó Laide foste ao Zé do Rego comprar o pêxe de bacalhau que te mandei?

-Pois então na fui, minha mãe. A senhora já mo dissera. Tive que deixar mais uns trocados.

-Ó minha mãe amanhã vou à vila com a Alzira. Dava-me jeito comprar aquela fazenda, a mãe sabe…

-Pois filha, eu sei mas… tá apertado este mês.

Brusca, dá meia volta, e com aquele ar tão conhecido dos vizinhos, ergue o queixo, aperta os lábios, bate com os chinelos nos calcanhares afastando-se para o seu recanto. Entre dentes vai rezando “Bem, bem, logo vi”. Adelaide é caule silvestre, folhas macias e flor afagada. Gosta de levar a sua avante. Gosta de vénia. Gosta de si, mais do que, dos outros. Não é pérola fácil esta moça. Júlia Papas sabe-o. A sua Laide é flor bravia quase urtiga. Mas é o que tem. E mãe que é mãe gosta sempre as suas flores sejam elas cardos ou rosas. A sua Laide tão morena de si e tão jeitosa. Naquele corpo, tudo brilha, faz inveja às outras. Tem garbo. O que lhe falta em bondade e doçura excede em porte. Rodam-lhe as saias mais os olhares, alguns rapazes da aldeia. Nada lhe serve, a magana. Os anos vão passando. Já vai nos vinte e quatro. O Agostinho da Zeza que está pra Lisboa anda a catrapiscar-lhe a rapariga. Ela parece não ficar tão arredia. Mas vá lá saber-se. O rapaz é trabalhador. Começou nas minas, lá pelos treze, depois, um dia partiu para a capital. Dizem que comeu do pão que o diabo amassou mas que hoje já tem um trabalho certo. É mecânico. Dizem que é “vermelho”, que já andou pela França. Tem medo pela sua Laide. Mas não lhe vai dizer nada, senão tem um acesso de mau génio, já a conhece. É sua filha mas é um osso duro de roer. Pobre de quem a levar. Muito senhora do seu nariz, muito. Júlia sai pela porta e desce umas escaditas que a levam à taberna. Tem que fazer mais uns cobres para a fazenda da sua Laide. Ai, mãe é isso mesmo, um suspiro de dádiva

-Ó Ti Júlia bote prá í, … mais um copito pra aquecer.

Calada serve, o pano embebedado de roxo limpa as pingas do tinto. O ambiente é escuro, triste e tosco. Os rostos são máscaras de um dia a dia bronco de pobreza. A miséria percorre os corpos na fome humana, e na rudeza de espírito. São simples, dizem deles, porque mais não sabem, e não podem. As horas vão coando o entardecer. O escuro adensa-se na baiuca exígua de luz, as sombras vestem as pedras. Uma lâmpada desmaiada acende-se emprestando fantasmas rotos às mesas e bancos. Um a um, com o cair das sombras, os homens vão saindo. No balcão Júlia cruza os braços sobre o avental de riscado azul e vermelho e chama:

-Ó Luís, a tua Rosa já deve ter a janta a arrefecer. Ergue-te home, e vai-te. Já vão sendo mais que horas.

-Ó Ti Júlia mais um copito…

-Que nada, home. Vai pra casa…anda

Cambaleando ergue-se do banco. Deita os dedos roçados de sulcos negros à borda da mesa. Depois pé aqui, pé ali, pouco seguros, os passos numa dança cruzada de pernas frouxas. A língua molha os lábios ressequidos do tinto. A voz sai entaramelada e pastosa num tom saído mais do peito do que da cabeça. Deita a mão ao bolso das calças sujas e velhas onde os remendos se alargaram tomando toda a fazenda. Do bolso tira uma coroa. Fá-la rodar entre os dedos e lança-a sobre o balcão num rodopio de corrido dançado. Pega no boné e sai porta fora.

Júlia apanha a moeda, passa uma vez mais o pano embebedado, e lenta quase que arrastando as pernas fortes fecha a velha porta de madeira pintada de vermelho, já gasta. A Taberna está fechada. A noite vai descansar. Júlia abre a gaveta do balcão que fica mesmo no canto, por cima dos copos de cinco. Tira a caixa que está dentro. A caixa de folha-de-flandres riscada de rosas vermelhas e amarelas, já negra e ferrugenta, a caixa das moedas. Conta-as. São vinte escudos. Nada mau. Mentalmente pensa na fazenda da sua Laide.

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São oito horas da noite. Isabel afasta o microscópio. Roda a cabeça num semi-circulo de pescoço dorido. Fecha os olhos enquanto faz os movimentos. Parece-lhe estar suspensa. A sua dimensão mental ainda paira. Está exausta. Fecha o caderno dos últimos apontamentos. Os óculos são puxados pelo polegar e médio e poisados sobre a banca. Endireita-se, afasta a cadeira e levanta-se devagar. Perdeu uma vez mais a noção do tempo. A esta hora já os filhos e o marido estão a caminho da casa. O corpo abate-se no peso do cansaço do dia. A profissão consome-a, a família sujeita-a a um mundo que nem sempre lhe apetece, o marido é ferro peia de um sonho incompleto. Precisa de respirar. Tira as luvas que deita no lixo. O som do látex fá-la suspirar. A sua pele de quase todos os dias. Despe a bata. Dirige-se para o armário, tira o casaco e o saco Dirige-se à casa de banho. Lava as mãos, passa o pente pelos cabelos cor de cobre velho, o batôn dá um ar de vida ao rosto pálido. O blush mata a palidez do cansaço. Está pronta. Abre o saco e pega nas chaves. Sai e, fecha a porta atrás de si. Dá as boas noites ao encarregado de serviço. Já no parque, entra no carro, liga o motor, acende as luzes e depois de um longo suspiro e meio sorriso de desassossego, arranca.

(…)


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04 maio, 2008

O blog CValente do amigo cujo nome é igual ,colocou-me perante este desafio que aceitei, e vou passar deixando em aberto quem o quiser fazer.
São as regras assim:Colocar o link da pessoa que nos mimou.Colocar as regras no blog.Partilhar 6 coisas que não nos importamos de fazer.Mimar 6 pessoas para fazer o mesmo.Avisar essas pessoas, deixando um comentário nos seus blogs.O jogo pode e deve continuar. Assim façam o favor de lhe dar continuidade quem achar por bem.


Passear-algo que não me importa absolutamente fazer
Conversar com os amigos- outra coisa que me faz sentir bem.

Ler- Uma sobremesa que me delicia.
Estar dentro de Água, leia-se Mar- Dá-me vitalidade e rejuvenesce-me
Escrever- Esvazia-me e reconforta-me.
Amar os meus-Torna-me plena.

03 maio, 2008

Dia da Mãe
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"Apenas em torno de uma mulher que ama se pode formar uma família."

(Friedrich Schlegel)

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30 abril, 2008

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“Era uma vez um rapaz que tinha medo do mar. Essa fobia não espantava ninguém e raramente lhe traia mais que embaraços e dissabores. Aquele que verdadeiramente causava espanto a todos os que tinham a sorte de poder entrar no seu refúgio mais valioso, era o vizinho da frente, um rapaz calmo que tinha o nome singelo de João e um sobrenome polaco, que as pessoas pronunciavam de três maneiras, todas elas muito distantes da pronúncia dos seus antepassados, bisavós dos seus avós, em Varsóvia.

Aqueles que tinham mais receio de mostrar alguma ponta de ignorância, mesmo tratando-se de um sobrenome polaco quase impossível de pronunciar por não-polacos, optavam por chamar-lhe apenas João, revelando uma falsa familiaridade. João era um rapaz de óculos e borbulhas muito vivas que só por si não espantava ninguém. Aquilo que realmente surpreendia e emocionava alguns dos poucos privilegiados era a sua colecção de selos. As paredes do quarto do João estavam cobertas, desde o chão ao tecto, por álbuns de selos. Sob a cama, havia álbuns de selos. Na gaveta e em todo o interior da mesinha-de-cabeceira, uma pilha de álbuns de selos. Mais do que uma simples arrumação por países, valores e datas, João passava tardes, passava a sua vida inteira, a encontrar formas de organização, absolutas e precisas, que não se baseavam em números, mas em elementos muito concretos, como a intuição ou a beleza. “

(…)

José Luís Peixoto; Contos que Contam, O rapaz que tinha medo do mar

22 abril, 2008




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Era uma vez…

Houve um dia, não era frio, não era chuvoso, nem enevoado, nem maculado. Era um dia, de que mês? Não sei, mas também não importa. Houve um dia em que senti o frio do norte, o vento do mar, e o cincelo da terra. Olhei pela janela e vi esboços tornados gente, pintados das cores da vida. Gente do meu povo que se movia ao ritmo do tempo. Nesse dia sonhei assim:

Era uma vez…

Uma padeira que cozia pão, um velho que procurava a sua ovelha, um pescador e o mar… Criaturas arrancadas à terra, ao barro vermelho da vida, às águas sal do mundo. Moldadas em mãos artesanais de arte sapiente. Entes ásperos como as suas vidas. Temperados com vento, chuva, xisto, sal e água.

Assim um dia aconteceu, que a padeira Júlia foi vender o seu pão pelas terras socalcadas onde o rio beija as contas negras e brancas, e a meio caminho encontrou um velho que se apoiava no cajado velho e sábio no deambular por entre montes. Gente afim cinzelada no granito da vida dorida, amarrados na luta porfiada do amanhã ainda por despontar. Conversaram naqueles monossílabos ásperos que tudo contam e nada dizem mas que a idade entende, a idade mais os sulcos do saber vivido. Assim Júlia e Chico Balido olham-se no caminho percorrido das suas vidas. O sorriso é lento, molengo de áspero, o não hábito, entorpece o esgar. O suor perla-lhes as fontes, não pelo tempo, mas antes pelo esforço de estarem vivos. Passo aqui, passo além vão desfilando as terras agrestes onde o vento silva no redondo de cada esquina. Na paisagem em socalco, por riba um pequeno casebre vomita suspiros de fumo cinzento. Amorna o céu de azul cinzento. Há vida ali. Há calor também. Sem palavras sobem a ladeira íngreme que os leva ao casebre de xisto grosseiro. O interior está vazio, parece-lhes. No canto crepita o toro de madeira. As cinzas espalham-se pelo lar. Parece ter sido acesa já faz tempo. O ar tem aquele cheiro a fumo quente. Sabe bem quando se entra mas depois entorpece. Olham em redor, estranhados do silêncio. Gritam: “Ó de casa!”O som saído das suas gargantas é o único que se evola. Nada.”Estranho”, pensam. Decidida Júlia Papas percorre o casebre. Sai, dá-lhe a volta. Nada. Vazio. Põe a mão em pala sobre os cansados olhos de lince e perscruta o redor. Só o vento assobia. Lá adiante as velhas oliveiras, depois os regos de vinhedo, agitam-se dolentes de carregadas. Ainda não pintaram. Mas não há vivalma por perto, parece-lhe. Nada satisfeita volta a entrar no casebre e diz pró Chico Balido: “-Vou inté ali pra ver, aqui há cousa…na gosto disto. Vomecê assente-se e vá espevitando os cavacos.”

-Ó mulher, ê também vou. Na tem jeito vomecê ir í por baixo, sozinha.

-Atão venha daí.

Em passos desengonçados de apressados deitam-se ao xisto da terra. Os pés pisam -na e o bafo enrola-se no ar de acordo com o ofegar. Já estão no meio do vinhedo. Não há sinal de vida. Mais abaixo o nevoeiro esconde os bardos. Enfrentam-no, ela de queixo resoluto, ele de cajado apontado. Lado a lado como se fossem crianças na procura do amanhã. Júlia Papas pára de repente, puxa o cotovelo do Chico e muda aponta. De bruços sobre a terra gelada, em abandono solitário, de punhos cerrados, está o Manel das Hortas. Velho e morto. Abocanha a terra que o viu nascer e crescer na gaiatice dos anos passados. Frio, gelado e hirto morde a terra mãe que o viu madurar no girar dos anos. A morte abotoou-o quando ele se vestia da lida do dia.

Júlia e Chico benzem-se. Os lábios despem-se de sons, no olhar lêem-se as palavras que não precisam de ser roladas. Entendem-se assim. A dor é fria. Estremece-lhes a alma, arrepanha-lhes os cabelos e torna-os hirtos de sentir. Os olhos já pequenos de idade vertem grandes bagas de água. A sorte do seu amanhã está ali, pendurada aos seus pés. Entranha-se o cheiro e quase os repuxa também. Amedrontados, recuam. Não, pelo pobre Manel das Hortas, mas por eles. Acanalhados voltam-lhes as costas e dão um passo em frente, mas… oh, não … a consciência impera. Prática, Júlia diz: “-Ó Manel fica aqui, que eu vou lá acima avisar. Fica tu com ele, que eu sou mais rápida a andar, tu sabes…” E sem tropeções correu lesta socalco acima. Ofegante chegou à praça, deu a notícia, correu a casa do padre, benzeu-se e depois sentou-se no banco da entrada. Tremeu-lhe o queixo, mais o corpo. Gemeu-lhe o peito mais o coração. Soluçou-lhe a alma. Choraram-lhe os olhos gastos e carpiu finalmente o finado.

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Vergado ao vai e vem dos remos que cortam as águas de ondas cavadas, o Ti Jão deixa-se embalar no vogar líquido do seu mundo vestido de musselina azul-verde. A faina terminou. Mais um dia de sol, sal e água. Vem sozinho, o seu barquito de madeira húmida vestido de cores alegres contrasta com a cor do seu sentir. O seu perene vazio de solidão.

Fora no dia de hoje já lá vai seis invernos, naquela madrugada escura pespontada de laivos amarelos quais folículos de um sol feito alvorejar. O vento sibilava nas águas tornando-as zangadas de movimento. Os gritos vertidos em espuma erguiam-se gigantes sob a esteira da traineira. Chamara pelo seu Miguel um ror de vezes. O filho, teimoso de nascença, denodado de querença e porfiado de vontade, achara que as redes estavam cheias. Elas estavam, era verdade. Mas naquela luta de água, vento e vaga, o mar levou a melhor e roubou-lho. Chamou-o. Lançou-lhe a bóia, pediu auxílio. Nada. O mar é voraz. Suga a gente como resposta ao roubo das suas entranhas. O mar dá, mas o mar tira. Há amor no seu marulhar cantado ou ódio no seu crispar de vagas em crista de espuma.

Fora assim. Levara-o ao seu Miguel. Pelo rosto gretado escorrem duas pedras líquidas de sal, duas lágrimas doridas de amor perdido. Não grita, os velhos não rugem. Os velhos soluçam por dentro desfazendo o coração em tiras de sangue, amassam a alma em névoas estranguladas de dor, uivam nas entranhas ocas de um sentir da carne perdido, mas os velhos não gritam ao ar em sons agudos nem flamantes. Os velhos, os homens, as mulheres sentidas albergam-se na concha matriz de um dia. Essa matriz seca, árida que um dia fora fruto. O fruto feito filho. O seu Miguel. Tinham-lhe amputado a vida, a sua vida. Hoje era somente o reflexo, enternecido na presença dos netos, os filhos do seu filho. Recorda, recorda, cada dia após a morte. Soam-lhe os gritos da nora, a solidão da traineira, o finar da sua Lina. Memórias de um tempo. Rajadas negras que o tinham açoitado impiedosamente. O seu rosto era quadro presente dos sulcos vergastados na alma. A pele era apenas a capa da sua dor interior. Fremente, avassaladora, corrosiva, lancinante, aberta qual chaga infectada. A dor de um pai. Gritar? Carpir? Não! Chora-se sempre o silêncio da ausência quando a nudez do sentir lateja o corpo coarctado.

Quando em cada madrugada crispada de ódio azul e espumada de saliva cuspida, ele e o seu barquito, vogavam acima e abaixo, ele Ti Jão, sentia aquela suave melopeia do mar, aquele marulhar de águas que lhe contava as novas do seu menino. Larga os remos e em jeito faceiro de criança acena ao mar e ao seu menino-homem.

Assim termina o conto da minha gente, gente simples, gente viva do meu povo sentido.


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20 abril, 2008

Lea Salonga - Don't Cry For Me Argentina (Evita) Live


[Eva:]
It won't be easy, you'll think it strange
When I try to explain how I feel
That I still need your love after all that I've done

You won't believe me
All you will see is a girl you once knew
Although she's dressed up to the nines
At sixes and sevens with you

I had to let it happen, I had to change
Couldn't stay all my life down at heel
Looking out of the window, staying out of the sun

So I chose freedom
Running around, trying everything new
But nothing impressed me at all
I never expected it to

[Chorus:]

Don't cry for me Argentina
The truth is I never left you
All through my wild days
My mad existence
I kept my promise
Don't keep your distance

And as for fortune, and as for fame
I never invited them in
Though it seemed to the world they were all I desired

They are illusions
They are not the solutions they promised to be
The answer was here all the time
I love you and hope you love me

Don't cry for me Argentina

[chorus]

Have I said too much?
There's nothing more I can think of to say to you.
But all you have to do is look at me to know
That every word is true






"Ah, que diferença entre o juízo que fazemos de nós e o que fazemos dos outros!"

Johann Goethe


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15 abril, 2008





Francisca

Salta da alcova. O corpo despe-se do calor morno. Os pés pendem encolhidos procurando o chão. Sente o fresco, um arrepio percorre-lhe as costas. A manhã despediu a noite entre lágrimas. Ergue o busto, abre os braços e sorri ao dia. Enfia os pés nos chinelos tortos e corre para a janela. Abre-a de par em par e sorve a manhã. É hoje. É hoje.

Enfia o robe sobre a breve camisa, dirige-se para a casa de banho. Despe-se e entra na banheira. A água morna revigora-lhe os músculos e apazigua-lhe o segredo. Lentamente como a medo acaricia os seios e o ventre liso. Sorri, um sorriso de dentro para fora qual onda rolada no areal dos lábios. Olha-se depois ao espelho na faceirice da juventude, na firmeza da vontade. Prende o cabelo deixando livre o rosto nacarado, perfeito, sombreado a negro brilhante. A luz emana-lhe. Gentil veste-se. Hoje, não sabe bem porquê, põe de lado as suas eternas calças, deixa escorregar sobre o corpo gracioso aquele vestido florido que comprara num dia de sol. Gostara dele pela luz, mas depois pensou que não era o seu estilo, e pendurou-o. Mas hoje sentia que o tinha que vestir. E o assim fez.

Grácil enfia os pés nas sandálias abertas deixando os dedos beberem o sol de si, depois suspira e humedece os lábios túrgidos. Sente que é feliz. Perpassa nela uma névoa de sensibilidade que a deixa alagada de vida como não sabia sentir. Francisca, vinte e cinco anos. Um percurso descendente, gasto, sentido, perdido e depois? Depois achado. Uma vida cortada por teias da morte. Um futuro hipotecado no turbilhão dos sentidos. Esses, que agora pressentem puros, foram negros, avassaladores, envolventes e aviltantes, derrubaram-lhe a alma e acrescentaram-lhe o vício. O mundo da droga fora seu companheiro. O mundo colorido, lambido e dorido. Saber, sentir que não era mais daquilo que quisera ser, saber que o amanhã não era senão a noite do hoje, saber tudo e nada, e nada, e tudo, de um vazio. Ter dezassete anos já vividos, ter vinte corroídos, ter vinte e dois corrompidos e ter, e ter sempre mais, e nada mais. Fora assim o seu percurso de vida. A aluna brilhante, ficara para trás nuns quaisquer bancos de uma faculdade. A argúcia de espírito transformara-se em ardil de pantomina, em embuste servil. Desejara apenas viver por viver, correr por correr, amar por amar. Desejara tudo, e nada em mil promessas de cada dia, em voltar atrás, ao principio. Não pudera, não fora capaz. Os vícios em si, mais o vício a seu lado tinham-na sedado. O seu companheiro, antes a sua metade sexual, assim o fora desde os seus quinze anos, jovem brilhante, também ausente de vontade e compromisso pessoal, vergara, também, no corredor deslizante do submundo. Pensamentos altruístas que escondiam as aviltações hedonístas. O casal perfeito no deslizar da razão. Sem formação, sem mais mesadas, sós em si, e por si, finalmente trabalharam. Caixas de super-mercado algures neste país. Parcos rendimentos. A segurança de uma infância, a fartura de uma adolescência, o quase excesso de uma precoce juventude, tornados míngua de haveres e subsistência. A vida na quadratura real da luta. Pouco a pouco foram-se a ela. Francisca e Eduardo.

Nesta manhã de sol, no dia de hoje, Francisca sorri, sorri muito. Eduardo não está, foi para o trabalho. Sente força em si, sente que algo a subtraiu, finalmente, daquela outra vida, sente que a vida que transporta, tão incipiente ainda, é, e será, o seu esteio do ainda presente, de um amanhã que pensa ser também presente. Moldado qual barro térreo no seu útero vivificado, o seu filho, beatitude aquosa do seu eu, quinhoado na cópula do seu companheiro Eduardo, o Pai.

Fecha a porta do minúsculo e despido apartamento. Repara pela primeira vez como é deprimente de nudez. Apenas o sol inunda o espaço, o resto é contra-luz despojado. Pequenos objectos sem sentido perdem-se pelo chão, nas paredes fios emaranhados tecem as teias do ontem. Mentalmente remoça na ideia o agasalhar em cor, e luz. Suspira. Tem à sua frente uma batalha difícil, convencer a família, a sua e de Eduardo, que algo mudou neles, que o futuro não será mais um sucedâneo de cinzento-negro mas antes o arco-íris de todos os dias. No alcantilado familiar terá que fazer passar a sua harmonia interior, fazer acreditar, que esta vida germinada, lhes dará força para retomar o seu próprio paradigma, aquele que um dia fora despido como qualquer outra peça em momento de turbilhão, confusão ou negação. Despem-se tantas coisas. Jogam-se muitas outras na lama disforme, seca e aderente da servidão ao vício. Desnudam-se as vontades em papas putrefactas de amanhãs perdidos. Ela, Francisca, vinte e cinco anos, sabe-o!

Mas isso foi, hoje não é, e o amanhã virá. Não tem medo. É forte. É jovem. O ontem ficou além ,por detrás da porta que fecharam. As portas também são seguras. Ela confia. A chave tem-na na sua vontade. Suspira.

E sorrindo abraça o mundo vestido de amanhã.

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12 abril, 2008




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A B R I L

Mãe conta-me, o que é Abril?

Abril, meu filho…É

Um cravo vermelho, um sorriso, um olhar,

Um estar sem estar e um desejar sem ter.

Abril é mulher, afecto, desígnio a madurar,

É fome e sede, é raiva e sonho de um querer.

É Abril assim.

Mãe conta-me…

Abril foi sémen esculpido no ventre esgotado

De um povo chorado, faminto, agoniado.

Abril foi sátira, sinestesia, personificação,

Melopeia, música, ária de uma canção.

E foi Abril.

Mãe conta-me…

Abril de ontem, Abril sonhado,

Abril de hoje, Abril humilhado.

Cantado em serões imputrescíveis,

Conúbios avaros, pútridos, insaciáveis.

Qual frustro parido,

De um ventre em promessas fruído

Tornado exangue, lasso, possuído.

Abril hoje,

É o vazio de um ontem prometido

Em brisa ondulante de gente que sente,

Que clama, que ri, que chora, que geme e grita

Gente assim parida de sonho em Abril.

Filho, meu filho, meu ventre,

Abril é ele, e tu, e eu…somos Nós!

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06 abril, 2008




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As Redes

O cheiro a peixe impregna o corpo. O ar bebe-se de sal mais da fedentina. Sente-se a pobreza em cada passo respirado. As casas baixas, despidas, as ruas estreitas, os quintais cinzentos de flores e florescidos de canas, varapaus, redes e outras ferramentas de água. O poente tinge de amarelo reflexo a terra. O areal luz-se por entre os últimos raios, tomando aquela cor de marfim velho. Sopram grãos de quando em vez, sempre que o vento decide assobiar. O mar, esse bate-se no lamuriar rolado das ondas, que em remanso vem cuspir as últimas salivas no areal. Recolhe-se rápido para outra vez e mais outra, sempre continuamente, se salivar. As águas tomam aquele tom escuro do sono onde a luz se despede do dia, e se alberga no limbo da noite por vir. O céu entorna-se de tons alaranjados e azuis numa textura entrelaçada de aguarela e espátula.

Lentamente o barco rema em direcção à praia. Largo como um ventre inchado bebendo os salpicos do desfazer das ondas, grosso de madeira pintada a vermelho, azul, com riscas e estrelinhas amarelas e brancas. Uma fugaz apontamento de cor na superfície revolta das águas. Dentro sentados ao remos dois homens. O boné tapa-lhes o olhar, mas o rosto é esquartejado a rugas duras e áridas. O tronco é sólido e desenvolvido quase um quadrado de força motriz. Os pés descalços e salinos descansam no fundo líquido do barquito bebendo-se de frescura, qual alívio para a dureza das solas ásperas e calosas do tempo mais da pobreza. Regressam da faina. Os cestos cheios de prata mexida dilatam-se ao movimento do peixe ainda vivo. As redes descansam pelo barco num emaranhado de fios mais de cruzes, cortiças e minúsculas bóias. E os remos chapinham as águas verdes escuras. Lá vem onda acima, lá vai onda abaixo. O carrossel líquido, imenso e espumado faz ondear a madeira pintada, onde sentados tal como se fora em corcel de madeira, os dois pescadores deixam-se levar até ao desfazer da viagem.

Desliza o barco já em águas salivadas e baixas. Salta o Ti Jão mais o Jaquim, de calças arregaçadas entram na água que lhes chega aos joelhos curtidos. Puxam o barco para terra. Os pés enterram-se na areia húmida ainda à pouco beijada pela espuma. O areal está quase vazio. Há lisura corrida na praia. Apenas as patas das gaivotas deixaram rasto aqui e ali. Mais ao, longe, um barco descansa. Chegou mais cedo.

Atiram as cestas, puxam as redes, arrumam os remos e entre gritos o barco é puxado para o areal. As mulheres vão-se chegando. Os aventais enrolam as mãos. As saias, garridas ou pretas conforme a sorte do mar, bamboleiam no andar. Os pés são largos, salinos e rápidos. Conversa aqui e ali, respostas vivas a perguntas por fazer, gargalhadas ásperas de pressa ou lamúrias gastos de tempo fazem dos sons espargidos na praia, o eco do mar.

-Ai, Ti Jão a faina foi fraca, na foi?

-Atão não? Na vê? Coisa ruim!

-Ai, isto tá brabo, ai tá, tá!

-Na me diga nada, ó Zeza. Isto é um enguiço. Mal dá pró naco. Vem aí muita fome come antigamente, ai vai, vai. Puta de vida, esta!

-Ó Jaquim enche a caixa mais um cadinho… ó home na sejas de dedes curtes…

-Tá Carminha da minh’alma, dou-te tudo, mas já sabes… e pisca-lhe o olho num adejar de brejeirice...

-Ah, atão na querias, atão não. Ó home ‘xerga-te, olha o atrevide…

As cestas esvaziaram-se e o mulherio debandou de canastra à cabeça meneando as ancas enquanto as mãos livres dançavam as palavras ditas. Os dois homens estão sós. A praia e o mar são seus. Há tanto para fazer. A noite vai caindo por entre o voo das ondas. O sol quase que fecha os últimos raios no horizonte. Rápidos puxam as redes, esticam-nas, deixando-as a secar. Caminham, juntos, praia fora. As palavras são escassas, meros assentimentos, meros monossílabos. Despedem-se com um aceno.

Um vai eito até à taberna beber o copo de cinco, jogar uma partidinha, falar do seu mar. O outro, de pés cansados dirige-se para a casita. Esperam-no os netos. Mais não tem. Mulher e filhos já foram. Eles tragados pelo seu mar, ela comida pela dor. Agora é a sua neta que lhe chega o pão. Em cada dia de faina, ele, João Carapicheiro, Ti Jão, prós amigos, lembra-se dos outros dias, daqueles de ontem, quando ainda sonhava com uma traineira de peixe, quando ainda acreditava que o mar seria dele. Hoje os ombros vergam-se ao peso dos desgostos, à míngua dos afectos e ao soluçar do amanhã. Os netos são a sua força, as redes do seu sentir, malhas tecidas da vida, remendadas sempre que necessário mas perenes.

A porta abre-se. Um sorriso, de duas covinhas larocas, beija-o. Uns braços, em redor do pescoço tisnado de sol, apertam-no.

-Vô nunca mais vinha. Tava com tanto medinho…

-O mar estava miúdo. Quisemos trazer alguma coisinha e lidamos mais um tempinho.

-Olhe venha ver o que eu fiz, venha, depressa.

Leva-o puxado até às traseiras, até aquela espécie de quintal. Estendida no chão, uma rede emalhada, pequena mas perfeita, suspira por entre os ainda brancos e quase elásticos losangos. Os flutuadores quais franjas descaem no seu peso. Sorri à sua pequena, dá lhe um beijo na cabeça morena de cheiro a ondas.

Amanhã o mar vestirá aquela coberta, promete-lhe. Juntos atravessam a porta. O dia fecha-se além sobre o mar. A rede da noite desce. Lá dentro, na cozinha estreita e escura os cachuchos espevitam a fome.

Foi assim mais um dia….





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"A nascente desaprova quase sempre o itinerário do rio."


Jean Cocteau
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03 abril, 2008


Talvez

Foi num dia pequeno. Naqueles dias em que a manhã é curta, o meio-dia vem cedo demais ,e a noite arregaça-se logo que a luz mal se despe. Foi, portanto um dia curto que se viu pela primeira vez. Não gostou das sombras que a rodearam, não gostou dos rostos difusos que a olharam. Não gostou da palidez nem das correrias. Gritou, berrou. Muito. Foi assim que cumprimentou o mundo.

-Uma menina! Disseram e ouviu. Então era menina. Como se isso importasse para a viajem que tinha que fazer. Depois enfiaram-na em água, rolaram-na de uma lado para outro, puseram-lhe um lenço na cabeça e finalmente deram-lhe comida. Enfiaram-lhe uma bola redonda e não muita dura na boca que chupou. Escorria uma coisa quente que a acalmava. Assim esteve, depois descansou. Pegaram nela, e enfiaram-na numa cova com panos macios. Adormeceu. Estava cansada.

O dia escorreu por entre a cova e as mãos. Entre as caras cinzentas que a olhavam, ente o murmúrio e o olhar cansado da mãe. Ah! tinha uma mãe e um pai. Ficou a saber.

Muitas outras coisas viriam a saber ao longo da sua viagem. Tanta, tantas e muitas tão más.Mas nas viagens tem que se conhecer um pouco de tudo. Cresceu e depressa. O tempo passou como se de um pião em roda se tratasse. Rodou. Ela, e as suas saias engomadas, que rodavam quando ela girava de braços abertos para o sol.

Quando voltou a olhar para si, num olhar perscrutador de gente, já era adulta. O tempo passara tão voado. Talvez o espelho da viagem lhe mostrasse o trilho que ainda tinha que fazer. Mas o espelho enublou-se. Foi o vapor do suspiro. Teve que se levantar do banco em que se sentara. Para ver o reflexo. Mas revolto. O reflexo, não reflectiu, e ela pensou. Foi aí que começou um outro caminho. O trilho da ponderação. Nem sempre gostou do trilho. Ser ponderado, certinho é como um guisado deslavado. Mas o trilho da vida era torto e revolto. Tropeçou, caiu, magoou-se. Feriu-se. Levantou-se, cambaleou, ziguezagueou, endireitou-se. Lacrimejou, fungou, chorou, gritou e riu. Sorriu e gargalhou também. E cresceu um pouco mais.

Cegou a vida das ervas daninhas, ergueu as paredes da sua cela, gerou e pariu a sua família. Criou, amparou, enxugou lágrimas e floresceu sorrisos. Amou, muito, sempre. E cresceu um pouco mais. Não foi poetisa, nem artista, não foi heroína, não foi gente invulgar, não foi mente exaltada. Foi talvez a mulher mais mulher que o dia viu crescer.

Hoje, já não cresce muito qual espiga em campo de trigo. Hoje, cresce nos anos doces da idade. Olha o mundo com ironia, com aquele brilho por detrás dos olhos castanhos mel. Nos lábios já descaídos de trejeitos, ainda se esboçam pequenos ritos de ironia. O asséptico das relações fazem-na suspirar de novo. Os desinfectantes inundaram o mundo das emoções. Hoje o cheiro de éter paira sempre entre as pessoas. Não há medo, há sim, receio. Mas também não percebe. Se há liberdade, porque é que o receio existe. Coisa que ela, não muito dada a exaltações mentais, se limita a encolher os ombros, como resposta. Anota ,então, no caderno rosa que tem junto à alma os pequenos todos ,incongruentes deste mundo. Talvez tenha estado sempre enganada. Talvez seja tudo muito simples. Talvez a vida seja uma equação de pessoas. As incógnitas? Meros passos, que são sempre achados quando o resultado finaliza o exercício.

Talvez…assim seja o mundo.



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02 abril, 2008



A Farewell

Flow down, cold rivulet, to the sea,
Thy tribute wave deliver:
No more by thee my steps shall be,
For ever and for ever.

Flow, softly flow, by lawn and lea,
A rivulet then a river;
No where by thee my steps shall be,
For ever and for ever.

But here will sigh thine alder tree,

And here thine aspen shiver;
And here by thee will hum the bee,
For ever and for ever.

A thousand suns will stream on thee,
A thousand moons will quiver;
But not by thee my steps shall be,
For ever and for ever.

Lord Tennyson
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01 abril, 2008


Lágrimas ocultas

Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

Florbela Espanca
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30 março, 2008



Por motivos pessoais tenho andado um pouco arredada das minhas visitas pelos cantos da blogesfera. Assim ainda há bem pouco me deparei com mais uma "faguice" desta vez de Huckleberry Friend de "Codornizes". Um obrigada, pois. Como é norma terei que nomear alguém . Assim, a todos os que me visitam dedico esta Faguice.

O Banquete

O rei sentado à lauta mesa de acepipes variados ,olha sobranceiro, os seus vassalos. Estremecem-lhe as carnes melífluas de prepotência, descaem-lhe as pálpebras pesadas de ideias vazias, e tremem-lhe os dedos carregados de assinaturas vãs em despachos, decretos, e leis proporcionais ao peso que a sua figura fora adquirindo nos últimos tempos. O rei está obeso de poder. A seu lado, os seus mais dilectos vassalos trincam de soslaio a carne inda há bem pouco tempo servida. Não sabem se a devem degustar se apenas provar. O seu amo e senhor tem que lhes indicar o sinal. Infringir o código de subserviência é letal.

E na longa mesa os pratos sucedem-se, quais peças buriladas de arte. A ostentação estética do excesso cobre a toalha de bordados humanos em tons de verde e vermelho. Os cristais e faianças vestem o traço europeu, porque o nacional é por demais comezinho, para um rei assim de opulento. E o banquete prossegue.

Sentaram-se nos seus respectivos lugares, depois de convites formais, e a respectiva anuência aos mesmos, conforme ditam as regras do singular convívio social. Preparam-se os trajes. Uns comprados, outros alugados, à ultima hora. Há que se apresentar em embrulhos de laçarotes repolhudos, pois que a ocasião assim o requer, os mantos, estrelas e espadas reluzem no velho salão dourado ou verde, perdoem-me mas o tom escapa-me. É que muda sempre quando o rei é despedido.

Chegados, feitas as respectivas vénias, em dorsal completa ou apenas semi, de acordo com as ideias, adesão e idade, os dignos vassalos foram recebidos no salão -mor, onde em pequenos grupos aconchegaram o calor da escolha mais o receio de um deslize. Existe uma certa alegria ruminada no ar. A digestão virá depois, por ora apenas se vai ingerindo.

No topo, como qualquer vulgar rei, o senhor olha os seus vassalos. Sente-os coibidos mas simultaneamente ansiosos de revelarem as suas artes. Já os sente vaidosos. Ele, que apesar de gordo e anafado, sabe muito bem como os manipular. Dá-lhes para já um lauto manjar, cede-lhes umas tantas tenças, e ei-los quase em genuflexão. Sorri à suas escolhas. Conhece-lhes os percalços, desejos e forças. São sempre menores. Por isso é que é rei, e eles, seus vassalos.

As bocas rodam num mastigar futuro. Por ora provam, beberricam e num acto mecânico de salivação. Não comem porque têm fome, nem bebem porque têm sede. Apenas e somente porque são os escolhidos, os pseudo ungidos. Depois, neste mundo breve, um banquete é sempre um banquete. Há que saber estar, mostrar um pouco de aristocracia republicana, não fazem os gestos, mais a postura, o cavaleiro? As nomeações já alinhavam-se no verso cardápio à laia de sobremesa gulosa. As medalhas, ainda são cedo, serão discretamente atribuídas. O rei é prudente.

Erguem-se as taças. O brinde faz-se. Não houve motivo, apenas:” Brindemos!”

- A quê? Interrogam-se alguns, silenciosamente, pois que o rei não gosta de perguntas, detesta questões, embirra com confrontações, o rei é absoluto e senhor inequívoco da maioria, o rei não é sol, mas é o Rei-Lua.

E o banquete continua...




25 março, 2008




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O Velho e o Cajado

Dobrado de idade, o velho enfrenta de cajado em riste, o vento que o verga, talvez, mais ainda. As botas, duras de grossas, e arrogantes de rudes, pisam pesadamente a terra gelada que se abre em feridas quase vermelhas de húmus. O velho enterra os pés no tapete e digladia o ar agreste, cortante e gelado. A samarra puída de tempo cobre-lhe o tronco arqueado dos anos vividos, gastos de trabalho e de nada. Naquele dobrar de ossos mirrados, onde cada passo é uma dor aguda, onde o chiar das articulações se confundem com o assobio do vento agreste, o velho, avança por entre os penedos do caminho.

Cai a tarde. O céu azul fecha-se de luz. O cinzento dos penedos expande a tristeza pelo caminho. Aqui e ali, o verde pulula em tapetes macios ora envergonhados ora em jorros de cor. O rosto, retalho enrugado de fazenda humana, onde as quadrículas de xadrez são rugas sulcadas no padrão de uma a vida. Os olhos, lacrimejantes de pequenos e usados cujo brilho se esvai em cada dia que passa, são quase ténues azeitonas alumiadas. A barba branca e rala suja o padrão das rugas cavando-as mais ainda. Um conjunto ralo de fios brancos, cinzentos e pretos ainda vestem uma cabeça arrogante coberta por um boné surrado de uso. A samarra enoja-se de nódoas mais de cheiros. Foi um dia castanha, hoje confunde-se no granito dos penhascos. Veste o calor de um corpo em movimento.

Passo aqui, passo além em esforço rápido, vai galgando o caminho. O cajado bate seco o carreiro. Depois as botas cobrem-no. Vai rápido na mira de algo. Em redor assobia o vento. Assobia-lhe o corpo mais o rosto. Raspa-lhe os lábios e as orelhas num fustigo vivo de dança arranhada. Corta-lhe o alento, arranca-lhe o boné e revira-lhe a samarra e entesa-lhe o cajado. O vento soprado do monte. O vento cantado da terra solitária onde piam as corujas e uivam os lobos. O vento dos seus montes vestidos de mimosas ou laçados de rosmaninho.

Pára. Cospe nas costas das mãos encarquilhadas, cinzentas de pó e encardidas de trabalho. Esfrega-as, aquecendo-as na sua saliva. E vai mais um passo. Mais uma luta no dobrar da ventania. O caminho vai meio percorrido. Há que chegar do outro lado do monte. De onde o pasto se perde. Onde o verde é doce e constante. Tem que encontrar a ovelha perdida. Deve andar por ali. O lusco-fusco do dia começa a descer no horizonte. Tem que se apressar. As maganas das pernas já lhe tolhem os passos. Noutros dias, noutros tempos correra carreiro acima ou abaixo, galgara montes e valados atrás das suas ovelhas. Conhecia as suas “pequenas” pelo balir. Deitara-se na erva verde sorvendo os raios quentes das tardes. Bebera na corrente gelada dos riachos. Conhecia a terra, o cheiro, a humidade, o céu de azul e cinzento. Refrescara o desejo tantas vezes sob a chuva ou no rebolar monte abaixo. Fora a sua vida. Uma vida soprada de miséria, de vento, de desejo de fêmea e de amor.

Fora e era pastor das suas Branquinhas. O olhar era doce, o corpo quente. Baliam no ar lavado. Não lhe cobravam nada como via as outras fêmeas fazer. Baliam, pastavam, percorriam os caminhos mordiscando os trevos , como se engolissem a sorte das suas vidas. Era assim o seu mundo . Simples como as das suas ovelhas. Erguia-se com a alba de cada madrugada, espargia o rosto em pingos gélidos. Vestia as calças surradas e a camisa encardida. Sobrepunha-lhe a samarra. Acendia os cavacos já meio carcomidos da noite ,e neles esquentava uma pinga de cevada. Bebia-a de um trago. Enrolava uma côdea mais uma garrafita no bornal e dirigia-se rapidamente para o redil. Abria-o, cumprimentava as suas “meninas” depois mondava em passos as cercanias serranas até chegar à falda verde de trevos doces e macios. Dia após dia, ano após ano, até os seus ossos vergarem, os passos tartamudearem, os olhos coalharem, as mãos quase se petrificarem. Mas o seu cajado, esculpido em navalha de arte de uma forte ripa de carvalho, muitos anos antes, continuava a sua força de amparo, a sua bússola dos caminhos, o seu esteio de velhice. Era o seu cajado que o norteava naquele soprar de vento, que lhe segurava os passos na terra. Estava quase lá. Ansiava pela encosta, pelo declive que beijava lá em baixo o seu rio. Era naquela falda que o seu espírito se sentia em casa. Era lá ,que o mundo se sentava na palma do seu coração. Era lá ,que a terra beijava o céu na ponta de um sorriso azul.

E o velho chegou ao fim do seu caminho. O seu cajado bateu a terra húmida da falda, e o vento assobiou mais uma vez. Girou e descansou. O velho sentou-se encostado ao penhasco. Poisou o cajado. Cruzou as mãos, procurou a sua ovelha, avistou-a. Sorriu e fechou os olhos. E suspirando por entre o desdentado da boca abraçou o vento e partiu.







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Anunciação.


Surdo murmúrio
do rio,

a deslizar ,pausado
na planura.
Mensageiro moroso

de um recado comprido,

di-lo sem pressa ao alarmado ouvido
dos salgueirais:

a neve derreteu
nos píncaros da serra;

o gado berra
dentro dos currais,

a lembrar aos zagais
o fim do cativeiro;

anda n o ar um perfumado cheiro
a terra revolvida;

o vento emudeceu;

O sol desceu a primavera vai chegar florida.

Miguel Torga




24 março, 2008


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É preciso viver, não apenas existir.

(Plutarco)

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Transfiguração

Tens agora
outro rosto, outra beleza:
Um rosto que é preciso imaginar,
E uma beleza mais furtiva ainda...
Assim te modelaram caprichosas,
Mãos irreais que tornam irreal
O barro que nos foge da retina.
Barro que em ti passou de luz carnal
A bruma feminina...

Mas nesse novo encanto
Te conjuro
Que permaneças.
Distante e preservada na distância.
Olímpica recusa, disfarçada
De terrena promessa
Feita aos olhos tentados e descrentes.
Nenhum mito regressa....
Todas as deusas são mulheres ausentes...

.Miguel Torga in Transfiguração
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