Quem sou eu

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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

30 março, 2008

O Banquete

O rei sentado à lauta mesa de acepipes variados ,olha sobranceiro, os seus vassalos. Estremecem-lhe as carnes melífluas de prepotência, descaem-lhe as pálpebras pesadas de ideias vazias, e tremem-lhe os dedos carregados de assinaturas vãs em despachos, decretos, e leis proporcionais ao peso que a sua figura fora adquirindo nos últimos tempos. O rei está obeso de poder. A seu lado, os seus mais dilectos vassalos trincam de soslaio a carne inda há bem pouco tempo servida. Não sabem se a devem degustar se apenas provar. O seu amo e senhor tem que lhes indicar o sinal. Infringir o código de subserviência é letal.

E na longa mesa os pratos sucedem-se, quais peças buriladas de arte. A ostentação estética do excesso cobre a toalha de bordados humanos em tons de verde e vermelho. Os cristais e faianças vestem o traço europeu, porque o nacional é por demais comezinho, para um rei assim de opulento. E o banquete prossegue.

Sentaram-se nos seus respectivos lugares, depois de convites formais, e a respectiva anuência aos mesmos, conforme ditam as regras do singular convívio social. Preparam-se os trajes. Uns comprados, outros alugados, à ultima hora. Há que se apresentar em embrulhos de laçarotes repolhudos, pois que a ocasião assim o requer, os mantos, estrelas e espadas reluzem no velho salão dourado ou verde, perdoem-me mas o tom escapa-me. É que muda sempre quando o rei é despedido.

Chegados, feitas as respectivas vénias, em dorsal completa ou apenas semi, de acordo com as ideias, adesão e idade, os dignos vassalos foram recebidos no salão -mor, onde em pequenos grupos aconchegaram o calor da escolha mais o receio de um deslize. Existe uma certa alegria ruminada no ar. A digestão virá depois, por ora apenas se vai ingerindo.

No topo, como qualquer vulgar rei, o senhor olha os seus vassalos. Sente-os coibidos mas simultaneamente ansiosos de revelarem as suas artes. Já os sente vaidosos. Ele, que apesar de gordo e anafado, sabe muito bem como os manipular. Dá-lhes para já um lauto manjar, cede-lhes umas tantas tenças, e ei-los quase em genuflexão. Sorri à suas escolhas. Conhece-lhes os percalços, desejos e forças. São sempre menores. Por isso é que é rei, e eles, seus vassalos.

As bocas rodam num mastigar futuro. Por ora provam, beberricam e num acto mecânico de salivação. Não comem porque têm fome, nem bebem porque têm sede. Apenas e somente porque são os escolhidos, os pseudo ungidos. Depois, neste mundo breve, um banquete é sempre um banquete. Há que saber estar, mostrar um pouco de aristocracia republicana, não fazem os gestos, mais a postura, o cavaleiro? As nomeações já alinhavam-se no verso cardápio à laia de sobremesa gulosa. As medalhas, ainda são cedo, serão discretamente atribuídas. O rei é prudente.

Erguem-se as taças. O brinde faz-se. Não houve motivo, apenas:” Brindemos!”

- A quê? Interrogam-se alguns, silenciosamente, pois que o rei não gosta de perguntas, detesta questões, embirra com confrontações, o rei é absoluto e senhor inequívoco da maioria, o rei não é sol, mas é o Rei-Lua.

E o banquete continua...




25 março, 2008




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O Velho e o Cajado

Dobrado de idade, o velho enfrenta de cajado em riste, o vento que o verga, talvez, mais ainda. As botas, duras de grossas, e arrogantes de rudes, pisam pesadamente a terra gelada que se abre em feridas quase vermelhas de húmus. O velho enterra os pés no tapete e digladia o ar agreste, cortante e gelado. A samarra puída de tempo cobre-lhe o tronco arqueado dos anos vividos, gastos de trabalho e de nada. Naquele dobrar de ossos mirrados, onde cada passo é uma dor aguda, onde o chiar das articulações se confundem com o assobio do vento agreste, o velho, avança por entre os penedos do caminho.

Cai a tarde. O céu azul fecha-se de luz. O cinzento dos penedos expande a tristeza pelo caminho. Aqui e ali, o verde pulula em tapetes macios ora envergonhados ora em jorros de cor. O rosto, retalho enrugado de fazenda humana, onde as quadrículas de xadrez são rugas sulcadas no padrão de uma a vida. Os olhos, lacrimejantes de pequenos e usados cujo brilho se esvai em cada dia que passa, são quase ténues azeitonas alumiadas. A barba branca e rala suja o padrão das rugas cavando-as mais ainda. Um conjunto ralo de fios brancos, cinzentos e pretos ainda vestem uma cabeça arrogante coberta por um boné surrado de uso. A samarra enoja-se de nódoas mais de cheiros. Foi um dia castanha, hoje confunde-se no granito dos penhascos. Veste o calor de um corpo em movimento.

Passo aqui, passo além em esforço rápido, vai galgando o caminho. O cajado bate seco o carreiro. Depois as botas cobrem-no. Vai rápido na mira de algo. Em redor assobia o vento. Assobia-lhe o corpo mais o rosto. Raspa-lhe os lábios e as orelhas num fustigo vivo de dança arranhada. Corta-lhe o alento, arranca-lhe o boné e revira-lhe a samarra e entesa-lhe o cajado. O vento soprado do monte. O vento cantado da terra solitária onde piam as corujas e uivam os lobos. O vento dos seus montes vestidos de mimosas ou laçados de rosmaninho.

Pára. Cospe nas costas das mãos encarquilhadas, cinzentas de pó e encardidas de trabalho. Esfrega-as, aquecendo-as na sua saliva. E vai mais um passo. Mais uma luta no dobrar da ventania. O caminho vai meio percorrido. Há que chegar do outro lado do monte. De onde o pasto se perde. Onde o verde é doce e constante. Tem que encontrar a ovelha perdida. Deve andar por ali. O lusco-fusco do dia começa a descer no horizonte. Tem que se apressar. As maganas das pernas já lhe tolhem os passos. Noutros dias, noutros tempos correra carreiro acima ou abaixo, galgara montes e valados atrás das suas ovelhas. Conhecia as suas “pequenas” pelo balir. Deitara-se na erva verde sorvendo os raios quentes das tardes. Bebera na corrente gelada dos riachos. Conhecia a terra, o cheiro, a humidade, o céu de azul e cinzento. Refrescara o desejo tantas vezes sob a chuva ou no rebolar monte abaixo. Fora a sua vida. Uma vida soprada de miséria, de vento, de desejo de fêmea e de amor.

Fora e era pastor das suas Branquinhas. O olhar era doce, o corpo quente. Baliam no ar lavado. Não lhe cobravam nada como via as outras fêmeas fazer. Baliam, pastavam, percorriam os caminhos mordiscando os trevos , como se engolissem a sorte das suas vidas. Era assim o seu mundo . Simples como as das suas ovelhas. Erguia-se com a alba de cada madrugada, espargia o rosto em pingos gélidos. Vestia as calças surradas e a camisa encardida. Sobrepunha-lhe a samarra. Acendia os cavacos já meio carcomidos da noite ,e neles esquentava uma pinga de cevada. Bebia-a de um trago. Enrolava uma côdea mais uma garrafita no bornal e dirigia-se rapidamente para o redil. Abria-o, cumprimentava as suas “meninas” depois mondava em passos as cercanias serranas até chegar à falda verde de trevos doces e macios. Dia após dia, ano após ano, até os seus ossos vergarem, os passos tartamudearem, os olhos coalharem, as mãos quase se petrificarem. Mas o seu cajado, esculpido em navalha de arte de uma forte ripa de carvalho, muitos anos antes, continuava a sua força de amparo, a sua bússola dos caminhos, o seu esteio de velhice. Era o seu cajado que o norteava naquele soprar de vento, que lhe segurava os passos na terra. Estava quase lá. Ansiava pela encosta, pelo declive que beijava lá em baixo o seu rio. Era naquela falda que o seu espírito se sentia em casa. Era lá ,que o mundo se sentava na palma do seu coração. Era lá ,que a terra beijava o céu na ponta de um sorriso azul.

E o velho chegou ao fim do seu caminho. O seu cajado bateu a terra húmida da falda, e o vento assobiou mais uma vez. Girou e descansou. O velho sentou-se encostado ao penhasco. Poisou o cajado. Cruzou as mãos, procurou a sua ovelha, avistou-a. Sorriu e fechou os olhos. E suspirando por entre o desdentado da boca abraçou o vento e partiu.







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Anunciação.


Surdo murmúrio
do rio,

a deslizar ,pausado
na planura.
Mensageiro moroso

de um recado comprido,

di-lo sem pressa ao alarmado ouvido
dos salgueirais:

a neve derreteu
nos píncaros da serra;

o gado berra
dentro dos currais,

a lembrar aos zagais
o fim do cativeiro;

anda n o ar um perfumado cheiro
a terra revolvida;

o vento emudeceu;

O sol desceu a primavera vai chegar florida.

Miguel Torga




24 março, 2008


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É preciso viver, não apenas existir.

(Plutarco)

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Transfiguração

Tens agora
outro rosto, outra beleza:
Um rosto que é preciso imaginar,
E uma beleza mais furtiva ainda...
Assim te modelaram caprichosas,
Mãos irreais que tornam irreal
O barro que nos foge da retina.
Barro que em ti passou de luz carnal
A bruma feminina...

Mas nesse novo encanto
Te conjuro
Que permaneças.
Distante e preservada na distância.
Olímpica recusa, disfarçada
De terrena promessa
Feita aos olhos tentados e descrentes.
Nenhum mito regressa....
Todas as deusas são mulheres ausentes...

.Miguel Torga in Transfiguração
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15 março, 2008



Uma amêndoa, só uma…

Na velha cozinha de cheiros mornos e adocicados, o velho tacho de cobre resplende sobre o lume espevitado. Nuvens doces de odores evolam-se pela chaminé. Dentro crepita o castanho pastoso e liquefeito de açúcar. Uma volta e mais outra. A colher de pau, de cabo longo, gira no seu voltear lento como se fora velha a dança, mais a dançadeira. Preparam-se as amêndoas para o dia da Ressurreição. Nascem no tacho as bolhas quentes e vidradas do açúcar. O ponto está feito. Em breve o miolo das amêndoas, aquelas pevides meio gorditas revestidas de capa castanha acre ,que quando puxada deixa ver duas metades brancas quase marmóreas ,e cujo sabor é quase néctar de deuses, vai engrossar o castanho. Depois mais volta, e meia volta, até o líquido se evolar. Rapidamente moldadas e depois esfriadas, as amêndoas castanhas, rudes e apetitosas estarão prontas a serem chupadas ou trincadas conforme o estado de espírito.

Neste vai e vem de cozinha, tacho, colher e faces afogueadas Miquinhas de bochechas ofegantes e sorriso largo cantarola as modinhas, emprestando à velha cozinha um ar primaveril. Perpassa, numa onda corrida, o cheiro do rosmaninho. Será da cantiga, será do monte em frente? Quem sabe!

Risonha, afogueada e rechonchuda a Miquinhas chama pelos meninos da casa, sejam eles graúdos ou pequenitos. O tropel enche a cozinha plasmando-se sobre o velho e arquejante tacho de cobre. Espetam-se os dedos, queimam-se as pontas e os mais gulosos conseguem chupar as amêndoas. Os risos, o cheiro, a frescura em frente trazem alma ao momento.

-Estão divinais. Ouve-se.

-Um espanto. Diz-se

-Ó Miquinhas, tu tens cá umas mãos!

-Ai, quem me dera saber fazer disto!

Devagar, devagarinho vão deixando a cozinha. Os lábios vão lambuzados de açúcar, os olhares adoçados de luz doce e a alegria também rejuvenesce o corpo. Sozinha Miquinhas, moçoila quarentinha, suspira e senta-se no escano polido de tantas gerações de servidores. Estica a perna anafada e olha-a como se a sua vida lhe subisse dos pés para a cabeça. As meias de elásticos lassos caem-lhe nos tornozelos inchados, a saia de algodão já debotada de tão lavada, mas ainda de réstia florida espalha-se nas ancas soberbas que se percebem no rodado espalhado. O avental meio sujo e melado enrola-se assimétrico sob umas mãos vermelhas, de dedos fortes e unhas curtas mas que destilam assim mesmo ternura. O tronco é forte e espesso tal como os seios que se erguem pesados sob a camisolita de lã meia amarelada e arregaçada. O pescoço une-se a um rosto de olhos imensos e aguados e sombreados de pestanas. A tez é alva como o resto da pele. Quase leitosa. O nariz aquilino revela um carácter firme que se amacia logo a seguir no olhar terno, ferido de recordações. Pesponta-lhe um sorriso nos lábios cheios e vermelhos. Na cabeça negra riscam-se já de alguns fiozitos de cinza incipiente. O quadro está quase completo. A paleta misturou os tons. Faltam as cores da vida. E a vida de Miquinhas tem tanta cor e odor.

Nascera filha de criada e de jornaleiro. Criara-se por entre espaços de tempo e de sobrevivência. Fizera-se menina de tranças negras, e depois moçoila de formas redondas, plasmadas na dureza das carnes jovens. Apetecia na ligeireza do passo, no sorriso copioso ou ainda no gorjear de bando. Sempre fora a alegria do rancho, a Miquinhas das eiras mais das feiras. Bons verões dançados e pulados e namoriscados. Faceira e mimosa, a Miquinhas trazia os moços pelo beiço. Não lhes ligava. Não se prendia. Era como se fora o catrapiscar do volteio em breve toque matreiro. Assim chegara aos dezoito anos. Fresca, apetecida e atrevida.

Fora numa Páscoa. Quando as flores de pessegueiro, mais da pereira dançavam na brisa do tempo. O ar era fresco e limpo, o céu azul. Os lírios pespontavam nas bermas por entre o verde dos campos. Fumegavam as chaminés na cozedura do pão doce e mais do folar. O ar sentia-se doce, no cheiro das amêndoas. E ouviam-se os sinos. Parecia que o tempo sorria. Ela sorria também. Filha da terra, na terra bebia a sua força e encanto. Fora nesse dia que o vira. Era jovem, risonho, moreno e dançarino. Naquela noite dançara e rodara, rodara até mais não. Acabara na palha numa roda sem fim. Rira, suspirara, abraçara e bebera-o a ele, e ele ,a ela. Um líquido precioso de gosto mélico. Fora uma sofreguidão de horas. Depois ainda meio zonza, erguera-se, cobrira-se e olhara-o bem dentro dos olhos. Soubera logo que era de partida. Não pedira. Sorrira. Estranhamente.

No adeus de braço estendido, ele pegara-lhe no saquito bordado, que tinha à cintura e onde meia dúzia de amêndoas já coladas pelo calor do entrechocar dos corpos, mais da labareda anterior, pingavam meladas, ele, disse-lhe assim… uma amêndoa, só mais uma… e num harpejo de graça puxou-a a ele, e trincou-lhe os lábios túrgidos de desejo de fêmea ainda fremente.

Tremeram-lhe as entranhas,mas docemente, estendeu-lhe a amêndoa do seu ser…

Foram as suas amêndoas mais doces!


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29 fevereiro, 2008




A Chuva na Cidade.

A Chuva cai gorda e fria. O asfalto vibra em espelho deslavado. O céu vestiu um casaco roto de cinzento opaco. Na rua perpassa vento que abana as gotas redondas de água. O dia magoa-se soprado de água, e solidão. As ruas estão corridas de água em poças escuras ou de correntes esparsas de amarelo barrento. É a cidade lavada, que liberta o pó dos seus sonhos perdidos.

Um homem, um só, retalha a água por entre os passos de uma rua. Dança no calcorreio. Os pés, gelados dentro de uns sapatos cansados onde as estrias engraxadas se enrugam de água, enfrentam o dia. A gola erguida de um casaco que já teve melhores dias, a par de umas calças coçadas, revelam o homem jovem de face rude. Os ombros carregam o peso do dia mais do sentir. São largos mas abaulados como se o correr do tempo os saturassem de desconsolos.

Tem o nome de Albano. Albano Vieira como usa apresentar-se naquele rumorejar cavo. Atravessa a rua húmida de chuvada e entra no café. Olha em redor. Quase cheio. Toma o lugar junto á janela, na mesa que espreita a rua. Sente-se aquecido pelo bafo quente que lhe chega ao rosto.

Pede um galão. O dinheiro não dá para mais. Enganar as horas do tempo e do corpo. Uma arte que domina. Está desempregado. Está só.

Um dia, já quase difuso tivera família. Companheira, filho e emprego. Hoje tem uma mão cheia de vida vazia mais um coração esvaído de luta. São os alcatruzes da nora no seu perpétuo rodar. Lenta e inexoravelmente. Ora em cima, ora descendo, até ao fim.

Suspira, abana a cabeça espargindo gotículas em redor. Leva os dedos longos ao cabelo que percorre como se fora um arado cortando a terra. Cruza a perna esquerda, endireita o tronco e olha em redor. Velhos. Enrugados e pregueados sentam-se em grupos. Falam dos grandes nadas do seu dia. Discutem em voz entaramelada a politiquice nacional. A coisa pública em pires de bicas, cimbalinos ou outros regionalismos, entornada, aguada ou puramente manchada. O tempo sentado na flacidez da vida enquanto o espírito ainda brinca nos canteiros do pensamento.

As vozes tremulam por vezes, enrolam-se na falta dos dentes esganiçam-se na ausência do ouvido ou tornam-se sussurradas quando brotam mais sibilinas. Calendário vivo de uma outra era já em remanso.

Fecha os ouvidos aos sons, afila o olhar em frente. Vê em forma difusa, do outro lado, uma montra. Pingos desfeitos embaciam-na. Silhuetas de modelos parados vestem a roupagem da fantasia de uma estação. E as pessoas continuam a passar. Nos passos esgrimidos sob os fios líquidos, há pressa num vai e vem cadenciado de rumo.

Os candeeiros pestanejaram de amarelo para o céu. O nevoeiro adensou-se. A noite começa a descer à cidade molhada. A solidão esconde-se nas esquinas.

Albano levanta-se, levanta a gola, lança uma moeda sobre a mesa e sai para a rua. O estrebuchar do dia acolhe-o. Mergulha na rua de asfalto luzídio e brilhos manchados. O deslizar dos pneus, o chiar dos travões, o buzinar estridente são ecos perdidos de movimento.

Ouve mesmo por cima da sua cabeça o correr das persianas. Mais pálpebras que escondem o calor de gente. Mais um muro em volta daquela ilha. A cidade prepara-se para descansar sob o xaile azul da noite.

Continua o seu deambular. Chega ao velho prédio. Empurra a porta, galga a velha escada que range sob os seus pés. Qual ladrão abre devagar, devagarinho, a porta. Olha, espreita. Não vê ninguém, em quase duas passadas cruza o corredor, entra no seu pequeno quarto, despido de quase tudo senão de uma cama e uma cadeira. Num vão de parede pendura o que tem. O espaço sobra para o que falta. Atira-se para cima da cama. Dá um quase pontapé e um sapato solta-se, depois o outro. Rebola. Agarra na almofada tapando meio rosto e soluça. Não. Arqueja, repuxa o cabelo, arfa de raiva e de dor. Sente-se violado. O desatino do não ter, a amargura do caos solitário.

Tem trinta e cinco anos. Um prefácio de luta e um contar presente de angústias. O seu epílogo? Tê-lo-á? Talvez as páginas ainda estejam vazias, talvez a estória deva ser reescrita, talvez o amanhã seja o enredo buscado da sua vida. Talvez, pensa.

Relembra outros dias. O passado vibra glorioso e mordido no seu espírito. Quando tinha gente a seu lado. Carne da sua carne e espírito comungado. Dias de antanho, nebulosos, mas agora achados gloriosos. Sabe -se o travo da coisa quando a boca está faminta. O seu filho, o seu menino. Já vai para cinco anos. Raramente o vê. Prefere esconder-se, prefere ignorar a sua miséria. Procura quebrá-la, mas os alcatruzes não sobem. Um dia pensa, um dia, conseguirá.

A companheira, não a falta. É apenas um tempo que passou. Deixou-o assim de só. Mas o seu menino… sente-o ainda tenro nos seus braços, no gorjeio de um sorriso.

Ana, a mãe, sua companheira de um breve hiato, advogada, avilta-o na sua ascensão célere. Ele, para quem as bolsas já terminaram depois de mestrado, doutoramento e pós-doutoramento, ele cujo saber académico obsta a um simples trabalho, vagueia na obscuridade da tarefa fortuita de dias. É a nova ordem de um país de malha rota. É o gozo sentado das estatísticas manipuladas. É também o futuro hipotecado de uma geração. A sua!

Levanta-se. A janela retalha o azul de um céu, que embora molhado, beija a lua timidamente. Os vidros lavados de noite chamam-no. Abre-os e respira, inspirando aquele cheiro de molhado misturado com o tossido dos carros, e o pó da vida. Odor único de mundo apressado, de corpos suados, de almas estioladas, de vontades desfeitas e sonhos abortados. É a cidade vibrátil, de tons quentes e respirares entrecortados. É o mundo sussurrante, lascivo, envolvente que o chama sempre que lhe fixa a âncora pese a corrente o afundar.

Veste o casaco. Desce a escadas. A chuva enxuga por ora as suas lágrimas. A humidade envolve-o, um passo, outro, mais outro. Simplesmente mergulha na cidade.

Lá em cima, na sua janela, o luar da noite veio sentar-se no parapeito.