Quem sou eu

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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

25 março, 2008







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Anunciação.


Surdo murmúrio
do rio,

a deslizar ,pausado
na planura.
Mensageiro moroso

de um recado comprido,

di-lo sem pressa ao alarmado ouvido
dos salgueirais:

a neve derreteu
nos píncaros da serra;

o gado berra
dentro dos currais,

a lembrar aos zagais
o fim do cativeiro;

anda n o ar um perfumado cheiro
a terra revolvida;

o vento emudeceu;

O sol desceu a primavera vai chegar florida.

Miguel Torga




24 março, 2008


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É preciso viver, não apenas existir.

(Plutarco)

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Transfiguração

Tens agora
outro rosto, outra beleza:
Um rosto que é preciso imaginar,
E uma beleza mais furtiva ainda...
Assim te modelaram caprichosas,
Mãos irreais que tornam irreal
O barro que nos foge da retina.
Barro que em ti passou de luz carnal
A bruma feminina...

Mas nesse novo encanto
Te conjuro
Que permaneças.
Distante e preservada na distância.
Olímpica recusa, disfarçada
De terrena promessa
Feita aos olhos tentados e descrentes.
Nenhum mito regressa....
Todas as deusas são mulheres ausentes...

.Miguel Torga in Transfiguração
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15 março, 2008



Uma amêndoa, só uma…

Na velha cozinha de cheiros mornos e adocicados, o velho tacho de cobre resplende sobre o lume espevitado. Nuvens doces de odores evolam-se pela chaminé. Dentro crepita o castanho pastoso e liquefeito de açúcar. Uma volta e mais outra. A colher de pau, de cabo longo, gira no seu voltear lento como se fora velha a dança, mais a dançadeira. Preparam-se as amêndoas para o dia da Ressurreição. Nascem no tacho as bolhas quentes e vidradas do açúcar. O ponto está feito. Em breve o miolo das amêndoas, aquelas pevides meio gorditas revestidas de capa castanha acre ,que quando puxada deixa ver duas metades brancas quase marmóreas ,e cujo sabor é quase néctar de deuses, vai engrossar o castanho. Depois mais volta, e meia volta, até o líquido se evolar. Rapidamente moldadas e depois esfriadas, as amêndoas castanhas, rudes e apetitosas estarão prontas a serem chupadas ou trincadas conforme o estado de espírito.

Neste vai e vem de cozinha, tacho, colher e faces afogueadas Miquinhas de bochechas ofegantes e sorriso largo cantarola as modinhas, emprestando à velha cozinha um ar primaveril. Perpassa, numa onda corrida, o cheiro do rosmaninho. Será da cantiga, será do monte em frente? Quem sabe!

Risonha, afogueada e rechonchuda a Miquinhas chama pelos meninos da casa, sejam eles graúdos ou pequenitos. O tropel enche a cozinha plasmando-se sobre o velho e arquejante tacho de cobre. Espetam-se os dedos, queimam-se as pontas e os mais gulosos conseguem chupar as amêndoas. Os risos, o cheiro, a frescura em frente trazem alma ao momento.

-Estão divinais. Ouve-se.

-Um espanto. Diz-se

-Ó Miquinhas, tu tens cá umas mãos!

-Ai, quem me dera saber fazer disto!

Devagar, devagarinho vão deixando a cozinha. Os lábios vão lambuzados de açúcar, os olhares adoçados de luz doce e a alegria também rejuvenesce o corpo. Sozinha Miquinhas, moçoila quarentinha, suspira e senta-se no escano polido de tantas gerações de servidores. Estica a perna anafada e olha-a como se a sua vida lhe subisse dos pés para a cabeça. As meias de elásticos lassos caem-lhe nos tornozelos inchados, a saia de algodão já debotada de tão lavada, mas ainda de réstia florida espalha-se nas ancas soberbas que se percebem no rodado espalhado. O avental meio sujo e melado enrola-se assimétrico sob umas mãos vermelhas, de dedos fortes e unhas curtas mas que destilam assim mesmo ternura. O tronco é forte e espesso tal como os seios que se erguem pesados sob a camisolita de lã meia amarelada e arregaçada. O pescoço une-se a um rosto de olhos imensos e aguados e sombreados de pestanas. A tez é alva como o resto da pele. Quase leitosa. O nariz aquilino revela um carácter firme que se amacia logo a seguir no olhar terno, ferido de recordações. Pesponta-lhe um sorriso nos lábios cheios e vermelhos. Na cabeça negra riscam-se já de alguns fiozitos de cinza incipiente. O quadro está quase completo. A paleta misturou os tons. Faltam as cores da vida. E a vida de Miquinhas tem tanta cor e odor.

Nascera filha de criada e de jornaleiro. Criara-se por entre espaços de tempo e de sobrevivência. Fizera-se menina de tranças negras, e depois moçoila de formas redondas, plasmadas na dureza das carnes jovens. Apetecia na ligeireza do passo, no sorriso copioso ou ainda no gorjear de bando. Sempre fora a alegria do rancho, a Miquinhas das eiras mais das feiras. Bons verões dançados e pulados e namoriscados. Faceira e mimosa, a Miquinhas trazia os moços pelo beiço. Não lhes ligava. Não se prendia. Era como se fora o catrapiscar do volteio em breve toque matreiro. Assim chegara aos dezoito anos. Fresca, apetecida e atrevida.

Fora numa Páscoa. Quando as flores de pessegueiro, mais da pereira dançavam na brisa do tempo. O ar era fresco e limpo, o céu azul. Os lírios pespontavam nas bermas por entre o verde dos campos. Fumegavam as chaminés na cozedura do pão doce e mais do folar. O ar sentia-se doce, no cheiro das amêndoas. E ouviam-se os sinos. Parecia que o tempo sorria. Ela sorria também. Filha da terra, na terra bebia a sua força e encanto. Fora nesse dia que o vira. Era jovem, risonho, moreno e dançarino. Naquela noite dançara e rodara, rodara até mais não. Acabara na palha numa roda sem fim. Rira, suspirara, abraçara e bebera-o a ele, e ele ,a ela. Um líquido precioso de gosto mélico. Fora uma sofreguidão de horas. Depois ainda meio zonza, erguera-se, cobrira-se e olhara-o bem dentro dos olhos. Soubera logo que era de partida. Não pedira. Sorrira. Estranhamente.

No adeus de braço estendido, ele pegara-lhe no saquito bordado, que tinha à cintura e onde meia dúzia de amêndoas já coladas pelo calor do entrechocar dos corpos, mais da labareda anterior, pingavam meladas, ele, disse-lhe assim… uma amêndoa, só mais uma… e num harpejo de graça puxou-a a ele, e trincou-lhe os lábios túrgidos de desejo de fêmea ainda fremente.

Tremeram-lhe as entranhas,mas docemente, estendeu-lhe a amêndoa do seu ser…

Foram as suas amêndoas mais doces!


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29 fevereiro, 2008




A Chuva na Cidade.

A Chuva cai gorda e fria. O asfalto vibra em espelho deslavado. O céu vestiu um casaco roto de cinzento opaco. Na rua perpassa vento que abana as gotas redondas de água. O dia magoa-se soprado de água, e solidão. As ruas estão corridas de água em poças escuras ou de correntes esparsas de amarelo barrento. É a cidade lavada, que liberta o pó dos seus sonhos perdidos.

Um homem, um só, retalha a água por entre os passos de uma rua. Dança no calcorreio. Os pés, gelados dentro de uns sapatos cansados onde as estrias engraxadas se enrugam de água, enfrentam o dia. A gola erguida de um casaco que já teve melhores dias, a par de umas calças coçadas, revelam o homem jovem de face rude. Os ombros carregam o peso do dia mais do sentir. São largos mas abaulados como se o correr do tempo os saturassem de desconsolos.

Tem o nome de Albano. Albano Vieira como usa apresentar-se naquele rumorejar cavo. Atravessa a rua húmida de chuvada e entra no café. Olha em redor. Quase cheio. Toma o lugar junto á janela, na mesa que espreita a rua. Sente-se aquecido pelo bafo quente que lhe chega ao rosto.

Pede um galão. O dinheiro não dá para mais. Enganar as horas do tempo e do corpo. Uma arte que domina. Está desempregado. Está só.

Um dia, já quase difuso tivera família. Companheira, filho e emprego. Hoje tem uma mão cheia de vida vazia mais um coração esvaído de luta. São os alcatruzes da nora no seu perpétuo rodar. Lenta e inexoravelmente. Ora em cima, ora descendo, até ao fim.

Suspira, abana a cabeça espargindo gotículas em redor. Leva os dedos longos ao cabelo que percorre como se fora um arado cortando a terra. Cruza a perna esquerda, endireita o tronco e olha em redor. Velhos. Enrugados e pregueados sentam-se em grupos. Falam dos grandes nadas do seu dia. Discutem em voz entaramelada a politiquice nacional. A coisa pública em pires de bicas, cimbalinos ou outros regionalismos, entornada, aguada ou puramente manchada. O tempo sentado na flacidez da vida enquanto o espírito ainda brinca nos canteiros do pensamento.

As vozes tremulam por vezes, enrolam-se na falta dos dentes esganiçam-se na ausência do ouvido ou tornam-se sussurradas quando brotam mais sibilinas. Calendário vivo de uma outra era já em remanso.

Fecha os ouvidos aos sons, afila o olhar em frente. Vê em forma difusa, do outro lado, uma montra. Pingos desfeitos embaciam-na. Silhuetas de modelos parados vestem a roupagem da fantasia de uma estação. E as pessoas continuam a passar. Nos passos esgrimidos sob os fios líquidos, há pressa num vai e vem cadenciado de rumo.

Os candeeiros pestanejaram de amarelo para o céu. O nevoeiro adensou-se. A noite começa a descer à cidade molhada. A solidão esconde-se nas esquinas.

Albano levanta-se, levanta a gola, lança uma moeda sobre a mesa e sai para a rua. O estrebuchar do dia acolhe-o. Mergulha na rua de asfalto luzídio e brilhos manchados. O deslizar dos pneus, o chiar dos travões, o buzinar estridente são ecos perdidos de movimento.

Ouve mesmo por cima da sua cabeça o correr das persianas. Mais pálpebras que escondem o calor de gente. Mais um muro em volta daquela ilha. A cidade prepara-se para descansar sob o xaile azul da noite.

Continua o seu deambular. Chega ao velho prédio. Empurra a porta, galga a velha escada que range sob os seus pés. Qual ladrão abre devagar, devagarinho, a porta. Olha, espreita. Não vê ninguém, em quase duas passadas cruza o corredor, entra no seu pequeno quarto, despido de quase tudo senão de uma cama e uma cadeira. Num vão de parede pendura o que tem. O espaço sobra para o que falta. Atira-se para cima da cama. Dá um quase pontapé e um sapato solta-se, depois o outro. Rebola. Agarra na almofada tapando meio rosto e soluça. Não. Arqueja, repuxa o cabelo, arfa de raiva e de dor. Sente-se violado. O desatino do não ter, a amargura do caos solitário.

Tem trinta e cinco anos. Um prefácio de luta e um contar presente de angústias. O seu epílogo? Tê-lo-á? Talvez as páginas ainda estejam vazias, talvez a estória deva ser reescrita, talvez o amanhã seja o enredo buscado da sua vida. Talvez, pensa.

Relembra outros dias. O passado vibra glorioso e mordido no seu espírito. Quando tinha gente a seu lado. Carne da sua carne e espírito comungado. Dias de antanho, nebulosos, mas agora achados gloriosos. Sabe -se o travo da coisa quando a boca está faminta. O seu filho, o seu menino. Já vai para cinco anos. Raramente o vê. Prefere esconder-se, prefere ignorar a sua miséria. Procura quebrá-la, mas os alcatruzes não sobem. Um dia pensa, um dia, conseguirá.

A companheira, não a falta. É apenas um tempo que passou. Deixou-o assim de só. Mas o seu menino… sente-o ainda tenro nos seus braços, no gorjeio de um sorriso.

Ana, a mãe, sua companheira de um breve hiato, advogada, avilta-o na sua ascensão célere. Ele, para quem as bolsas já terminaram depois de mestrado, doutoramento e pós-doutoramento, ele cujo saber académico obsta a um simples trabalho, vagueia na obscuridade da tarefa fortuita de dias. É a nova ordem de um país de malha rota. É o gozo sentado das estatísticas manipuladas. É também o futuro hipotecado de uma geração. A sua!

Levanta-se. A janela retalha o azul de um céu, que embora molhado, beija a lua timidamente. Os vidros lavados de noite chamam-no. Abre-os e respira, inspirando aquele cheiro de molhado misturado com o tossido dos carros, e o pó da vida. Odor único de mundo apressado, de corpos suados, de almas estioladas, de vontades desfeitas e sonhos abortados. É a cidade vibrátil, de tons quentes e respirares entrecortados. É o mundo sussurrante, lascivo, envolvente que o chama sempre que lhe fixa a âncora pese a corrente o afundar.

Veste o casaco. Desce a escadas. A chuva enxuga por ora as suas lágrimas. A humidade envolve-o, um passo, outro, mais outro. Simplesmente mergulha na cidade.

Lá em cima, na sua janela, o luar da noite veio sentar-se no parapeito.



26 fevereiro, 2008




...sabes, as aves

sabes, as aves aquáticas já não pernoitam junto ao mar nem por entre os nossos dedos de areia
sobem-nos vozes calcárias à garganta, estrangulo-me neste humilde canto, fico atento ao eterno silêncio do teu castelo

às vezes escuto o teu cantar, raramente, é certo...mas quando cantas saem-te nomes puros da boca e sorrisos diáfanos de cristais
os lábios incendeiam-se com vinho, teu corpo adquire o sabor misterioso das algas
no crepúsculo expande-se o perfume a moreia frita, teu olhar é o mosto dos nossos desejos

dançamos à roda dum mastro, saia em papel de seda bordada com búzios...uma quadra flutua pela noite de nossos cabelos
rodopias, e os teus amores são relembrados pela noite adiante
espalham-se estrelas cadentes, papoulas breves, junco molhado e o mar enche-se novamente de pássaros, embarcações semelhantes a beijos que nos percorrem de alegria.
AL BERTO
Livro Quarto





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25 fevereiro, 2008

Fui contemplada pelo Pela Gi de " Pequenos Nadas" http://velharias-traquitanas2.blogspot.com
e CValente
http://cvalente.blogspot.com

1) Este prémio deverá ser atribuído ao blogs que considera bons e aqueles que acostuma visitar regularmente e deixa comentários
2) Quando o prémio é recebido deverá fazer um post: Indicando a pessoa que lhe atribuiu o prémio e a respectiva ligação ao blog.
3) Indicar 7 blogs para atribuição do prémio.

Uma vez mais ,afirmo, que os blogs que que tento visitar, com certa regularidade ,primam pela excelência num ou noutro aspecto. Assim sendo , todos eles são passíveis de serem nomeados. Porém as regras ditam que o sejam sete. Difícil escolha mas...

http://fragmentosdanoitecomflores.blogspot.com/
http://terra-da-magia.blogspot.com/
http://omshanti1.blogspot.com/
http://omeucais.blogspot.com/
http://intervalos.blogspot.com/
http://arrabisca.blogspot.com/
http://mararavel.blogspot.com/