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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

04 outubro, 2007


Uma vida…

Senta-se sob a velha oliveira no remanso do seu quintal. Sopra da montanha a aragem fluida das manhãs de ouro e vinho. É Outono, a sua estação. Sente os ossos picarem sob a camisa mas a paisagem come-lhe a dor. A sua terra é o seu mundo. Dura, rude, bravia mas de promessas rubras entre folhedos da cor do sonho. As memórias cospem-se-lhe nos olhos já gastos. Fora assim a vida, recorda lentamente, vê-se…

Mineiro -menino de bota rota e dedo saído, calça curta de fundilho remendado de uma só alça, camisa desbotada de manga já curta, camisola enrolada e larga no corpo miúdo onde espreitam redondos de fio já ido as pupilas tristes de outro branco meio sujo, boné cinzento onde os quadrados de um dia são linhas partidas de hoje, corre saltitando nas pedras do caminho encaracolado de vinhedos despidos. Vai zurzindo em cada salto as agruras do tempo de ontem e mais as do amanhã porque a de hoje, ele, malha-as na sua labuta de mineiro-menino…

Seis horas de um dia ainda por nascer. O sol não despregou ainda as pálpebras no céu de um azul meio desbotado pelo alvor que chega lento. O ar é gélido, sopra frio e cortante dos montes em concha. Lá pelos altos uiva como se fora loba ciada, e aqui em baixo, como gente esfaimada. Os cepos de vinhas não bolem aconchegados à terra, apenas o pó de xisto voa encosta abaixo no rolo de névoas pingadas. Lá pelos baixos, na planura das Gatas, onde a urze e o tojo amaciam as pedras, e o granito se senta nos caminhos vestido de cinzento triste e duro, para esquecer a solidão do mundo, a terra abre a boca em túneis de volfrâmio .É ali que, Agostinho de doze anos frescos e vivos ,faz pela vida. É magro quase seco, cabeça de pente zero, pernas ágeis, olhos pretos vivos, sorriso de luz nuns lábios cheios. As orelhas são pequenas mas em alerta constante, captam os sons dos pássaros, do rio, das folhas, dos bichos companheiros de carreiro. As mãos são fortes, de dedos articulados onde as unhas partidas e sujas lhe revelam a labuta amarga de cada dia. Ainda há pouco deixara os bancos de escola. Gostava do ar morno, da ardósia, do quadro negro borrifado de letras a giz, dos lápis aguçados, de escrever e ler, nem tanto das contas, mas mais ainda, gostava do professor, e das brincadeiras nas traseiras, e da fatia de broa que trocava ou recebia nos dias de aperto. Gostava de lá.

Agostinho era o único macho no meio de seis fêmeas. Um disparate. Tinha dureza dobrada. O pai, homem pequeno de tudo menos na garganta seca de vinho, a mãe ,figura azeda desde que botara cá para fora o primeiro vagido até aos dias de hoje, mourejava-o de trabalho ,e às irmãs essas coitadas, crivava-as de lides sem lhes dar um sorriso, um afago. Agostinho recorda. Não se lembra desses trejeitos. Cresceu no amor do trabalho, no esforço da labuta, na raiva do não ter, no ódio da desigualdade. Trabalhou nas Gatas por tuta e meia, trouxe muito vagão para a superfície, carregou muito balde. Depois, depois partiu. E partiu para longe e foi marçano. Conheceu o mundo da cidade. Plasmou-se a ela. Passou fome, carregou a cama e a maleta, fez-se finório e ajeitou-se como operário. Foi um mundo, o mundo das ideias que lhe varreu os sentidos. Aprendeu que não estava só, que o mundo era o lugar onde se lutava, e onde não se cuspia, mas se escrevia. Palavras fortes e de igualdade, palavras de união. Palavras que sentia no peito e lhe erguiam a mãos. Os colegas e amigos passaram a ser os seus camaradas de sonhos e ideais unidos na revolta da pobreza, e no desejo de um amanhã de certeza. O segredo, o compartilhar, o unir, passaram a ser parte de si. Na luta pelo pão, pela justiça, pela liberdade, Agostinho achou-se a jeito. A sua natureza sofrida fez eco de tudo o que apreendia.

Já jovem, bem-parecido e esbelto, de falas ricas e fluentes faz o rente às camaradas ,mas não se envolve. Alto lá, é magano suficiente, sabe bem o que quer, sabe que a luta vai ser dura, e no fim, logo se verá, o que lhe caberá. Não tem tempo para lamechices. O estudo, as reuniões, o trabalho forram-lhe o tempo. É um homem novo, desenvolto e curioso, poupado e equilibrado. Um só viciozito, o cigarrito, e o chapéu mais a gabardine que compõe-lhe a imagem ao domingo. Durante a semana é o fato-macaco azul, as nódoas de óleo, as mãos de unhas negras como se ainda fora menino nas Gatas. O seu volfrâmio mudou, agora são as máquinas que ribombam, chiam e assobiam. Um mundo de sons que lhe martelam os ouvidos como se fora melodia fadada. Agostinho-operário, de alma quente e cabeça coalhada de liberdade ri forte e dobrado do mundo que o acolhe. Sente-se dono de si, e dos outros, da vida e do futuro. Julga que já conquistou o seu lugar ao sol. Pobre menino-mineiro-operário!

-Ó Inácio dá aqui uma mão. Esta gaita não engrena, filha dum…

-‘Pera aí,pá. Não posso, mas já i vou…o chefe quer isto pra daqui a uns minutos.

-Ora, que espere., a gente tamém não pode fazer mais. Vá lá explorar pró raio c’u parta.

-É ‘Gostinho, fala baixo… cuidado, que ele anda de olho em ti… o Pereira…

-Que se lixe!

Naquela mesma tarde foi despedido. Seca e sem mais. Assim de frio. O estômago deu-lhe um salto que quase lhe veio à boca. Agostinho sentou-se na borda do divã no quartito nu que dividia com o Inácio e pensou, pensou., fumou e fumou …e … decidiu-se. Havia tempos que lá no fundo da cabeça lhe batia a ideia de ir para a França. Já tinha um ofício e depois nas reuniões diziam-lhe que ele podia ajudar os camaradas lá fora, que tinha jeito, que podia ser líder. Aceitou e mergulhou. Passou a salto. A raia era de gentes caladas mas guichas. Fala mansa pela frente, mas nas costas, a Guarda era pantominada, e no embuste ,os camaradas davam o salto para o outro lado. Ainda se lembra dos rostos. Não eram macios, tinham o ar do tojo que cobria campos de liberdade.

Lá chegara a outras terras e, rapidamente os contactos tinham-no levado até Montmartre à rue de l' Espoir, e por aí ficou durante um par de anitos. Trabalhou de limpeza, de varredor, e finalmente como operário. Lado a lado embrenhou-se nos ideais que conhecera. Havia camaradas, companheiros e amigos. Hoje, figuras de proa do seu país, esquecidos já do móbil da sua luta. Sentam-se tal como ele, não sob velhas oliveiras, mas em suaves e cómodas poltronas. São a elite que renegavam palavrosamente. O homem é mesmo bicho inconstante sem tino. Assobiem-lhe meia dúzia de promessas, de bem-estar, e ei-lo que esquece o passado, promessas, ideais. Ouve amiúde: -Ó amigo, os tempos eram outros, éramos jovens. A vida é assim! Como se fora vento passado em sopro.

Veio Abril. Tanto recordar, tanto frémito, clamor e arrepios. Gritou, chorou, rodopiou e sentiu-se livre. Entre camaradas houve promessas, gritos cavados nas entranhas de luta. Foi um sonho, liberdade, esperança e alegria, muita, tanta que não se recorda mais de a ter sentido igual. Regressou. Era o seu país, o seu mundo. Ficou na cidade, mas ajudou nas aldeias. Foi revolucionário. Não o fora sempre? E depois os tempos eram ágeis de mudanças. Muitas ,com e sem sentido. Muitas foram pétalas abertas sorvendo a seiva da justiça, outras, foram picos em cardos de monte. Nem tudo pode ser perfeito. Depois é que veio a injustiça. Nesse outro tempo, o tempo que já não era dele, afastou-se. No peito cabia-lhe a alma de homem novo, e não, deste outro que criavam em ondas de poder subido ou descido como se tudo não fora mais do que um carrossel de feira. Desligou-se e foi à sua vida. Casou, na aldeia que o vira nascer e com moça de lá, uma tal Adelaide filha da doce Júlia Papas. Vieram os filhos que educou e instruiu. A vida continuou no seu curso ora áspero ora leitoso. Os anos deslizaram na carne e no espírito criando-lhe sulcos de sabedoria e hiatos de memória. Por vezes já se confundia, mas logo se recompunha. Não reconhecia nos tempos a trova cantada de um dia, de uma vida, apenas as vozes quase sussurradas das gentes que subiam e desciam o monte, como ele fizera aquando menino-mineiro. Agora não dançavam as vozes em gorjeios nem tremiam em soluços pois era tudo mais fácil mas também mais breve, como que aflorado. Até parecia que os cachos dos vinhedos se tinham tornado maiores, mais lindos, mais dourados, ofereciam beleza aos olhos mas quando os trincava, eles, tinham perdido a doçura da ilusão.

-Agostinho, ó homem vem para dentro que está frio. Lá estás a sonhar!

-Já vai, já vai… Um homem nem pode estar com os seus pensamentos … ora.

Como se a vida fora um sonho de quimeras ou de uvas doces… como dizia o seu Torga que ele ainda tivera a alegria de conhecer. Recorda sempre a frase que já não sabe se leu ou ouviu mas que cada manhã repete na boca vazia de ilusão ” “O que é bonito neste mundo, e anima, é ver que na vindima de cada sonho fica a cepa a sonhar outra aventura. E que a doçura que não se prova se transfigura noutra doçura muito mais pura e muito mais nova “

Suspira, ergue-se e murmura:

-Oxalá que as cepas comecem a abrolhar bem cedo, que bem precisamos…!

E o ar ligeiro rodopia por entre os vinhedos fartos varrendo-lhe o pó dos tempos.

28 setembro, 2007

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A M É L I A

Amélia é figura e pessoa de artifícios. Brinca com os dedos esguios de unhas vivas no sussurrar das palavras escolhidas. A boca cheia, húmida e gulosa espraia-se num sorriso de dentes alvos. O tom da pele é mate condizente com o negrume da cabeleira longa e tratada Figura de ondulados requebrados e lisuras quentes, ela deixa no trejeito balanceado da anca, o adivinhar de promessas quentes e suadas. Passa lenta e bamboleada. Sobeja-lhe carne na tira de pano, as nádegas duras não estremecem no meneio. Deixa atrás de si o cheiro de fêmea em mil promessas sonhadas. Pé aqui, passo acolá ,e ei-la em frente do carro. Deita um olhar enviesado para trás e sorri. Sabe que os olhares a seguiram. Devagar, devagarinho, baixa o tronco, as pernas, mantém-nas hirtas ,realçando-as. Os seios num semi decúbito espreitam no decote redondo. São frutos maduros de carne acetinada que estremecem em cada suspiro de encanto.

Amélia de proficiente geóloga, no dia-a-dia torna-se em gloriosa acompanhante, ao fim-de-semana. Duas etapas que lhe preenchem as semanas, e lhe vão forrando a carteira bem como os hábitos de vida. Tudo começara há já tanto tempo, parecia-lhe.

Devia andar pelos seus dezassete anos e já era um traço como a chamavam. Tudo nela vibrava desde o cabelo ondulante aos pés esguios e morenos. O corpo, o seu cartão-de-visita, que a mãe queria tapado gritava-lhe de ânsia no côncavo dos dias. Tudo começara de uma forma simples e linear. Um convite para uma festa, um convite para um brinde, um semi-cerrar de olhar, uma mão quente na nádega morna descaindo ligeira para a púbis e…. Todo o resto girou em volta. Depois nem sequer houve lágrimas, antes o desejo incontrolável de mais e mais. Nunca tivera dons especiais mas naquela arte tudo lhe vinha em jeito, era só colocar o desejo do corpo nas mãos e nos lábios, roçar e ondular, envolver, e sentir, sentir tudo. Tornara-se verdadeira artista do amor, sabia pintá-lo nas pregas do desejo em tons de paixão. Era procurada, invejada e adorada

O seu jeito não colidira nem impedira que o curso fosse iniciado e concluído. Deste ao emprego e á carreira foi um salto. A mente e a carne numa dicotomia de géneros. A sua arte subsidiou-lhe o curso, pagou-lhe a integração em meios que nunca sonhara, e fez dela uma referência de bem vestir. Longe do olhar inquisitivo materno e da pequenez do meio que afogava, Amélia lançou-se na profissão mais velha do mundo, mas cheia de classe. A sedução passou a ser mais do que nunca a arte, por excelência. Depois veio o saber estar, pisar, falar, sorrir, comer. Tudo nela é perfeito. Hoje entra no carro com o triunfo da vitória na boca húmida. Aqui é uma desconhecida, no seu meio, uma senhora. Todo o fim-de-semana, ela, Amélia, apanha o avião, o comboio ou simplesmente senta-se ao volante do seu carro percorre milhares de quilómetros, aloja-se em belíssimos hotéis, pousadas, mansões e vive as vidas de sonho que um dia imaginou. Os companheiros, breves condutores de momentos e molas reais dos seus caprichos, sejam eles carnais ou materiais, não contam na sua jogada de vida. São meros epitáfios. Acompanha-os a festas, recepções. Sorri, passeia a sua beleza e guarda a sua inteligência. Ri sobre um chabblis ou sorve delicadamente um cointreau. Mordisca graciosamente um aperitivo. Sussurra amiúde ao ouvido do seu par que invariavelmente assente e lhe sorri do fundo dos olhos. Quando o tempo se arrasta em conversas demasiado pesadas, tem a graça de torcer um salto, entornar ligeiramente o ouro de algum balão ou simplesmente deixar cair algo. Aí é voluptuosa no baixar e no erguer. Rapidamente o silêncio se impõe, e lesta a acompanhante sorri, domina o braço, o olhar, e a vontade do seu par. Depois é levá-lo sendo conduzida para o lugar dos quereres. Aí, qual rainha domina o seu súbdito. A máscara deixa de ser gentil para se tornar ávida e gulosa, feita natureza em labareda.

Um destes dias, numa daquelas vernissages tão em voga e tão decrépitas em si, enquanto acompanhava uma digníssima figura da nossa praça, da arte da escrita, e passeava o seu olhar em redor na tentativa de minorar o aborrecimento, premissa da função, reparou naquela sombra que descrevia em si força, e uma certo ar blasé. Rapidamente, como predadora que é, sentiu a necessidade de se apoderar dela, e pé ante pé, de sorriso e olhar doce, tanto a olhou que, um belo quarentão maduro lhe devolveu o sorriso num olhar bem azul. Com segurança de quem conhece o género, aproximou-se, cumprimentou, trocou as trivialidades habituais e, estabeleceu de imediato a empatia necessária. Aquele fim-de-semana foi excessivo em tempo. O escritor adulado, de sorriso aberto era afinal, um ser quase abjecto, tratando-a como se fora algo descartável. Tivera que cumprir o contracto e nada mais. No dia seguinte já liberta da névoa pesada da noite, e tendo sempre no fundo da cabeça o sorriso azul tratou de utilizar todos os artifícios e artefactos ao seu alcance para o localizar. O nome do seu dono era Fernando. Fernando Cerveira e pronto, telefonou. O encontro foi marcado algures, num restaurantezinho simples e saboroso. O que comeu, bebeu ou falou não recorda, apenas uma sensação de calma e tranquilidade, um compartilhar que não sentira nunca. Não precisou de se utilizar Conversaram sobre tudo e nada, acharam pontos em comum, riram dos nadas e falaram dos muitos. Os encontros sucederam-se durante a semana. Lenitivos da sua vida. Era feliz. Não tinha, pela primeira vez, vontade de partir em aventura. Mas o seu amigo, estava ocupadíssimo ao fim de semana.

-Amélia, os fins-de-semana são sagrados para mim. Não nos podemos encontrar. Estou ocupadíssimo.

-A família talvez? pergunta Amélia

-Ah, ah, ah, minha querida, não de modo nenhum. O eterno feminino. Não apenas a minha profissão…

Aceitou, havia os outros dias da semana, e eles eram tão preenchidos pelos dois. Fernando começara por subir até sua casa, depois a jantar, conversar, e finalmente a amarem-se.

Tudo acontecera naturalmente no leito do seu quarto. Entregavam-se calmamente, sorriam no jogo leve de sedução, respiravam em uníssono na entrega e riam felizes na consumação. Era a descoberta. Diferente, uma doçura viva e não uma labareda atiçada em cavacos de desejo. Seriamente começou a descuidar os seus fins-de-semana, a entreter-se com coisas diferentes da sua pessoa, a prestar atenção às pequenas coisas em seu redor. O mundo era mais próximo.

É domingo. Está em casa e abre a janela, respira o ar que a brisa do mar espalha Enche os pulmões e pensa no que vai fazer.

-É isso, diz para os seus botões, vou dar um passeio pelo velho Porto. Uma visitinha cultural. Já faz tempo.

Veste-se ligeira de forma solta mas coquete. Desce e entra no carro. Conduz alegre cantarolando livremente. Brinca-lhe nos lábios o sorriso da vida e nos gestos o calor do encantamento.

Já no adro da Sé percorre-o lentamente, e olhando em redor de pálpebras semi-cerradas abrange as colinas debruçadas no rio ziguezagueante que se perde na boca do mar. As cores alargam-se nas margens crepitando de vidas. É a sua cidade. É bela, velha e sábia.

Dá meia volta e vê a velha Sé. Imutável no tempo, sólida na amargura e doce no amparo. Hesita. Não é lá muito de igrejas…é só uma visita. Entra. A penumbra varre-lhe o corpo e aflora-lhe o espírito. Está quase vazia. Percorre a ala lateral e lentamente ajoelha-se. Não sabe porque o faz. Ergue o olhar e fixa-o na imagem de Cristo crucificado Entabula um solilóquio que a recolhe profundamente. De tão absorta não ouve o os passos, nem o rangido do banco. Sente a mão no ombro…a voz pressente-a no seu interior. Ergue a cabeça e olha sem ver. Uma cegueira não de sol mas de negação. Olha uma vez e outra… e outra. A seu lado uma sotaina, um colarinho branco e um olhar azul, dizem-lhe que a igreja vai ser encerrada.

-Tu?! Tu?!

-Oh, Amélia!

Salta e corre para o exterior. Atrás de si vem a batina… a batina!

-Oh meu Deus! És mesmo padre? És padre?

-Sim.

- Como…pudeste…?

-Pude, fiz, e sou aquilo que vês. O meu voo começa e acaba aqui. O corpo leva-me mas o espírito traz-me. Perdoa-me, se puderes.

-É só…? Nada mais?

-Sim!

Amélia baixa-se lentamente como se fora cair. Mas apenas se acocora. Abana vivamente a cabeça, os cabelos espalham-se finos e revoltos no rosto. Tapam-lhe as narinas quase impedindo-a de respirar O olhar é negro, dorido, partido e sofrido. Desapareceu o brilho e há a luz do ódio. Os punhos cerrados golpeiam o muro…Não grita, porque o som desapareceu perdido no peito latejante.

Já de pé corre para o carro. Conduz rápida e arfante. Não chora, não soluça, não treme. O seu voo começara, as asas estavam abertas e ela planava livre, livre… no azul do seu espírito…

24 setembro, 2007

Carmen Ballet





..................................
L'amour est un oiseau rebelle
que nul ne peut apprivoiser,
et c'est bien en vain qu'on l'appelle,
s'il lui convient de refuser!
Rien n'y fait, menace ou prière,
l'un parle bien, l'autre se tait;
et c'est l'autre que je préfère,
il n'a rien dit, mais il me plaît.

...............................................................................

Carmen (Acte Premier)


BALLET FLAMENCO DE MADRID

As seis cordas

Federico Garcia Lorca


A guitarra
faz soluçar os sonhos.
O soluço das almas
perdidas
foge por sua boca
redonda.
E, assim como a tarântula,
tece uma grande estrela
para caçar suspiros
que bóiam no seu negro
abismo de madeira.

19 setembro, 2007

Sonho



Fiz um conto para me embalar


Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.




Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.




Rosas fatais, as três donzelas
A mão de espuma as desfolhou.
Nenhum soube para qual delas
O príncipe do mar cantou.


Natália Correia


Flor que não dura



Mais do que a sombra dum momento



Tua frescura



Persiste no meu pensamento.




Não te perdi




No que sou eu,




Só nunca mais, ó flor, te vi




Onde não sou senão a terra e o céu.




Fernando Pessoa in Poemas Inéditos


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Ser poeta


Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!


É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!


É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
é condensar o mundo num só grito!


E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca

14 setembro, 2007

O Jogador

Treme-lhe a mão e o olhar. Pisca a pálpebra. Enruga a testa. Humedece os lábios. Enrola os ombros. Contém a respiração e sorri. Sorri friamente no olhar gelado. Os lábios são um traço. Os olhos semi-cerram-se. Avalia a situação. Tamborilam os dedos na dança das cartas.

Não é novo, nem velho. É indefinido. O fato escuro dança-lhe no corpo magro, seco, torcido de tanto sentado na mesa de jogo. O cabelo negro puxado para trás deixa liberta uma fronte magnânima. A tez é alva. Demasiado. Falta-lhe a cor do ar. É esguio sem ser alto. Tudo nele é fugidio e expectante. Caetano José mais uns tantos apelidos dão-lhe a identificação. Sabe quem é, e de onde vem. Para onde vai não tem a certeza, e muito menos, os meios.

São três da tarde. Deveria estar no gabinete. Batem à porta. Abrem. A sala está vazia. Como sempre Os papéis repetem a ordem do silêncio manual. Mais um dia. O colega amigo abana a cabeça, o rosto reflecte a tristeza. Caetano vai ser despedido. Não o vai poder evitar mais. Lentamente suspira e fecha a porta do gabinete. Percorre o corredor e perde-se nele. Lá em baixo está o Director. Que vai dizer?

Á mesma hora, Caetano José joga …desesperadamente na angústia febril do reaver. Nada, nada. A última mão. São só mais cinco minutos. A rapidez rodopia na acção e na pressão. A emoção esboça-se no instante e …foi-se. Uma vez mais. As mãos enclavinham-se no bordo da mesa. As veias sobressaem-lhe na fronte pálida. Latejam. Não no desespero ,mas na raiva. Caetano é um homem de raivas, fúrias e lampejos febris. Repele e golpeia com palavras e desdém. Pensa de si, ser o melhor. Sabe que erra mas não admite ser julgado ou admoestado. Nunca o suportara. Sempre se revoltara. Sempre. Não conhecera o pai. Fora-se no mar. Em navio de guerra. Era oficial da marinha. A mãe, grávida e ainda de núpcias nunca mais o vira. Nascera. Crescera. Fora educado em colégio. Fugia. A viola e a sua Lisboa …”boémia, fadista “povoavam-lhe os sentidos e as horas. E de viola, serenata e encantos colhera a sua Margarida.

Filha de família, sim senhor, porque ele, também o era. Menina prendada, extremosa, cuidadosa e amorosa. Tantos rendilhados para uma vida de burel. Margarida roliça, de olhar azul em dia triste e cabelos fulvos será sempre o seu carteio. Triste sina. Linhas cruzadas na mão de um lance desafiador que a derrotara, o jogo, as cartas. A amante era por demais muda e viciante .A miséria já batia à porta e ela, a amante, não se largava. As paredes da casa, em tempos recheadas, estavam esquálidas. O dinheiro não havia. As crianças, quatro, a caminho da quinta, tinham os pés descalços. Não suplicava, não chorava, não gritava. Aceitava. Pensar que um dia fora menina de cabriolet. Hoje, os pés nas botinas puídas e esticadas onde os buracos da sola eram tapados com cartão, percorriam as calçadas num vai e vem de trabalho de agulha. Caetano, seu marido, sedutor da sua alma, lascívia da sua alcova, tirano de compreensão, cruel de palavra e irado de olhar. O pai dos seus filhos. Pai temido e não amado.

Caetano José, funcionário dos C.F. faltoso, ardiloso e calão. O trabalho detesta-o. Coisa menor. O jogo é a sua paixão. A família o seu pesadelo sonhado. Não suporta o trabalhinho de gabinete, pequenino, vazio e de ordenadinho fixo. Não tolera o chefe de falas mansas e conselhos melífluos, não atina com os colegas sabujos de pequenas promoções e menores vidas Na estação, Santa Apolónia onde raramente põe os pés e tem o gabinete, vê os comboios chegarem e partirem. Anseia por partir. Mas não pode. Não pode, porque o jogo o chama diariamente. Não a família, essa, que se lixe. Tem espírito superior às coisas comezinhas. Ele é um senhor. Ainda não perceberam?Um Senhor!

Tropeça na biqueira dos botins, ao subir a calçada, pragueja contra o vento que sopra do Tejo, chispa num olhar de raiva ao seu redor. Não tolera os vizinhos labregos, rudes e operários. Chega ao degrau da porta. Empurra-a. Entra e grita:

-Margarida!

-Sim, Caetano. Responde a voz contida. Enxota suavemente os pequenos. Põe os dedos nos lábios em onomatopeia: Chiu! Psss! Ajeita o chignon, alisa a saia e sorri.

-Aqui estou, meu querido!

-Estou febril. Vou-me deitar. Leve-me uma canja à cama!

Assim. Sem mais. Duro, frio, egoísta. Cai na alcova. Sente-se exangue. Violado, roubado. A sua amante bebe-lhe o ser. A vida cobra-lhe a alma. A família tolhe-o .Somente a raiva surda do ontem perdido, e do amanhã hipotecado na lâmina cortante da jogada, o faz respirar. Abandona-se à tepidez dos lençóis ainda bordados. O silêncio da casa penetra na sua mente. Um quase vazio. Sente o ser rodopiar em espiral. Depois o outro eu, reflecte o anseio procurado: a tranquilidade, a compreensão, a aceitação. A paz de si. A luta, a raiva, o desdém, o desamor descansam por ora. Por breves momentos Caetano deixa a agitação que o persegue, desventrando-lhe a mente e aviltando-o nos degraus de vida que teima em tropeçar.

-Caetano, meu querido… tem aqui a canjinha…

-Obrigado, Margarida. Desculpe-me. …Os pequenos?

-Estão no quarto…quer vê-los?

-Sim… Não, mais tarde talvez…Agora deixe-me

O quadro repete-se dia após dia, como se o artista apenas soubesse usar aquele traço pesado e triste. A paleta de cores morre no esbater da noite com laivos vermelhos de raiva. As figuras abrem-se mudas ao embuste da vida. Uma tela terrivelmente espatulada.
A noite é já bem escura quando Margarida se deita a seu lado, dorida de um dia de miséria escondida, ele agita-se no leito. Acorda da sua letargia e sem palavras serve-se. Penetra-a sem delongas, sem gestos, apenas o acto. À saciedade. Um homem não pede, um homem usa. Ela é sua para ele. Só e apenas. Deixa-se cair e adormece
São onze horas. Levanta-se. O sol já vai alto e a casa já ganhou a vida de um novo dia. Ouvem-se as vozes das crianças…ao longe. Levanta-se. Tem que ir para o gabinete para a vida pequenina e arrumadinha.
Sai com um até logo enxuto. A cidade já revolteia. O cheiro do rio penetra-lhe nas narinas, amassa-lhe os pulmões e irrita-lhe o cérebro. Desce a calçada. Santa Apolónia é já ali em baixo. Eis a estação. Franqueia a porta. Alguém o cumprimenta. Sem olhar, retribui. Sobe ao seu gabinete. Entra e senta-se, suspirando de tédio. O relógio compassa as horas indolentes no silêncio fechado. Batem-lhe à porta. É o paquete que lhe diz para ir ao Director. Mais tarde quando abandona a sala do superior, tem a cólera estampada. O rosto é vermelho, os olhos quase saltam nas órbitas de furibundos. O esgar da boca é de ódio tudo condiz na expressão .Até o colarinho engomado da camisa está solto. A fúria está alojada. Fora despedido!

-Imbecis, quejandos!

Não pelo despedimento, mas afrontarem-no, a ele! E logo hoje que até quase cumprira o horário. Incumprimento?! Mas o que pensavam eles? Já na rua cospe a raiva em frases murmuradas de ódio contra todos e tudo .Os dedos esguios descrevem hiatos de força, as pernas baloiçam numa dança de pontapés perdidos… Louco de tudo, atravessa a rua, volta à esquerda, sobe. Não respira, range os dentes. Lá está. Entra. Suspira. Sorri. Sente a teia envolvente e macia. O afago de calmaria que o penetra. A sua amante espera-o sensual e faminta na dança do leilão e ele sabe que será o seu eterno carteio.

Sente-se em casa, em paz, a entrada está feita!




11 setembro, 2007

Júlia Papas


Corre descalça no frio da pedra do caminho. Leva na cabeça o pão. A broa arrefece lá no cimo. Á que ser lesta. As gentes esperam. São cinco da matina. O sol não pespontou ainda, o gelo cobre a terra do caminho, o ar é cortante. Dói a respiração, corta as carnes e adormece os pés descalços. Mas á que andar, á que mexer. As gentes já se ergueram. Em breve a malga está servida e a broa é precisa.

E Júlia Papas percorre lestos os meandros batidos das terras socalcadas do Douro. Já perde na memória de quando começou. Era ganapa ainda e muito. A família tinha o forno, cozia a broa depois, ela, a mais velha, tinha que o entregar e assim começara.Não é moçoila de atavio. É redonda, baixinha qual novelo de ternuras. Os olhos, esses sim, são grandes e esguios. Sobressaem-lhe. Negros, aguados e bondosos. Depois os lábios, promessas de risos guardados. Não se queixa, não pensa, anda.

Júlia Papas prós amigos. Assim é, assim será, vida fora.

E distribuindo a broa de aldeia em aldeia, Júlia dá também gorjetas de sorrisos e rebuçados de afagos. Ela é assim viçosa no dar, meiga no sorriso, forte no abraço, crente nos outros, resignada na vida.Juntara-se ao Abel. Conhecera-o quando socalcava as terras cima a baixo na venda da broa. Não era dali. Era de Covas do Douro. Depois, emprenhou da sua Adelaide e nunca mais se deixaram. Mais tarde veio o Belmiro e aí casaram. O seu "home" era de poucas falas, pouco trabalho. Era mais dado aos copos. Amanhava umas terrinhas, fazia uns servicinhos a outros. Nada de muito Era mais pró calaceiro. Mas, isso sim, muito agarrado. Terrivelmente.
Naqueles tempos a fome era negra. Havia barrigas vazias, muitas. Ela, que por essa altura já abrira a sua taberna onde a par do copo de cinco servia também umas comidinhas, matou a fome a muitos. A tantos! Era vulgar uma sardinha ser para três, lavar-se as tripas do frango e guisarem-se. Ora, era assim. A fome grassava. A miséria estava lá. Não, os tempos eram duros como o frio que soprava. E Júlia Papas, redonda e doce, quente e meiga era o coração de pingo na broa das gentes .A sua Adelaide, flor da aldeia, era o espinho da sua bondade. Nunca satisfeita, caprichosa. Nunca entendera o seu coração. Resmungava e queria sempre aquele pouco que aos outros dava. Mas ela compadecia-se tanto…com a miséria.
-Senhora quero um vestido novo.
-Ó filha, tá apertado. Mas tens o azul, o encarnado e mais a saia e a blusia
-Ora. Vossemecê passa a vida a dar, a dar e depois não chega pra mim… ?
- É só um poucochinho, filha inté te fica mal dizeres isso…

Era assim. Na taberna cobrava dois copos e um prato mas dava a broa e o repetido. Muitas vezes, tanta, a fome forrara-lhe o estômago, mas dera o seu quinhão aos ganapos de olhos tristes. "Uma boa Alma"diziam dela Á noite, na pequenez da casita, Júlia aturava o seu home vergado no vinho do dia. Era a sua sina. Na aldeia, a vida das mulheres era como a dela. Os homes ou bebiam ou batiam. O seu fazia as duas coisas. Era a sua cruz

Lesta, de sorriso doce ergue o olhar aguado e ala que vai á vida. Tristezas? … Credo. Inté é pecado! Com tantas alminhas por aí a penarem. E de trouxa debaixo do braço, cantarolando os derriços já gastos, lá vai ela a caminho do tanque. Tem que lavar a roupa do sê Abel, da filha, do filho e do tio já velhote a quem dá guarida. O mulherio assim que a vê dá-lhe a salvação. -Bom-dia Júlia, atão, só tu é que lavas? A tua Adelaide saiu cá uma princesa…
-Ora, deixem-na lá… é moçoila. Não gosta de certas coisas e depois eu estou mais habituada.
Dobra-se no vai e vem da esfrega. As mãos grossas de sonhos vazios enchem de linhas a pedra em claves de sabão. Cantarolando, rindo, falando, Júlia despacha a roupa da semana. De volta á aldeia de trouxa lavada entra na taberna. É tempo de fazer a janta. Rápida pega no caçoilo, rega o fundo de azeite, junta-lhe a cebola birrenta e espera pelo estrugido loiro. No lar da lareira já crepita o pote com água quente. Será um bom caldo. As couves também já descansam cegadas e os feijões estão cozidos. É só juntar tudo, baptizar com o azeite e deixar cozer. O estrugido já cantarola, junta-lhe o toicinho. O cheiro sobe na alma das paredes da casa.

Cá em baixo, entrechocam-se as vozes pastosas dos homes. O tinto corre. A sueca bate-se. As conversas giram em torno da vindima. Um ano bom. As uvas estão gradas e maduras mesmo no tempo. Em breve os cachos doces e pesados, promessas loiras e escarlate de néctares frutados, adamados ou encorpados irão encher dornas num vai e vem de bailinho corrido. Depois, o pisar compassado, o cheiro forte que atordoa os sentidos, sincopado pelos cantares em trejeito de melopeia escorrida. É o tempo dourado das terras. É o tempo das barrigas forradas de broa e do conduto. É o tempo dos risos soltos, do cair das folhas purpurinas na terra quente, dos passos vincados sobre o xisto aberto de dádiva, é o tempo sublime de um momento vivo e fértil onde a terra mãe gera o filho futuro das suas gentes: o pão de cada dia.

Júlia desce. Lenço enrolado, avental de riscas, chinela no pé redondo dos caminhos.Serve os copos e corta o toicinho que junta á sua broa. Depois, enche umas malguitas vidradas de caldo. Chama dois "homes"e empurra suavemente as tigelas. Volta-se, suspira e abana a cabeça murmurando:"Tanta fome, tanta…e tanta riqueza…não entendo!"

Passa a porta e entra na casa do forno. Cantarolando, enfia as mãos na bacia do pão. Amassa, bate, estica, enrola e corta. As gotas de suor escorrem pela testa. Num gesto rápido seca-as. Tapa com toalha alva a massa que será broa de amanhã.

Amanhã será mais dia na sua terra de promessas negadas.

-Padeiiiiiiiiiiiiiiiiiiira!



06 setembro, 2007

Luciano Pavarotti - Ave Maria - Schubert

O que é belo não morre: transforma-se em outra beleza.
(Balley Ardrich)



(Módena, 12 de outubro de 1935 a 6 de Setembro de 2007)

04 setembro, 2007

Despedida


Na ausência da palavra

O verbo cai no espaço

Hiato de polifonia gasta.

Assobia o vento sul

Em compasso livre

Sopra o do norte

Em espiral entrecortada

Sibila o ar já frio

Em tom de chegada.

E a lágrima…

Espiral do soluço,

Solta-se, lenta., redonda.

Folha húmida de sal

Na face exangue, dormente

Da terra negra que a sorve

A mão…

Gesto breve, diáfano

Semi-arco perpétuo

Em movimento.

Fecha a harmonia dissonante

De arco já frouxo na alma

Do violino da estação

Que parte…

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02 setembro, 2007

Morning (Grieg)

Amizade

Existe na mente do ser
Nem sempre no coração do ter.
É falaciosa de sentires,
Enrosca-se na dúvida da razão
E no âmago do coração.

A amizade,
Ribeiro de curvas simples
Ou tortuosas,
Levada na corrente forte
Ou pura gota desaparecida
Em leito seco de dádiva.
Húmus de partilha
Em canteiro de violetas singelas.

A amizade,
Cresce sempre que regada,
Nos fios líquidos do amor
Aí floresce…
Quebra, morre e chora,
Quando traída e esquecida
Na estrada ondulante da vida.

A amizade,
É rosto de olhar vivo,
No corpo cansado do Mundo
Que acorda e adormece
Ao nascer e pôr-do-sol,
Em laços apertados
Sem nós
Sem pontas
Apenas
………
AMIGOS

31 agosto, 2007

St. Exupéry...


.
.

Não confundas o amor com o delírio da posse, que acarreta os piores sofrimentos. Porque, contrariamente à opinião comum, o amor não faz sofrer. O instinto de propriedade, que é o contrário do amor, esse é que faz sofrer. (...) Eu sei assim reconhecer aquele que ama verdadeiramente: é que ele não pode ser prejudicado. O amor verdadeiro começa lá onde não se espera mais nada em troca.

(Antoine de Saint-Exupéry, in 'Cidadela')

30 agosto, 2007

Dona Santinha.



Anda nos seus setenta e muitos. Figura doce. Os cabelos são alvos, o rosto ainda é rosado, as faces são pêssegos maduros de covinhas risonhas. Dona Santinha é uma cesta de fruta a cobiçar o desejo de ternura.

Quem a conhece, sabe que a vida foi um cacto espinhoso de criar e moldar. Mas foi …

Enviuvou cedo, demasiado cedo. A prole era de cinco, todos seguidos. O seu, Albano, que tenha a alma em descanso, era homem de necessidades prementes e cuidados descuidados. Todos seguidinhos sem descanso. A Clara, o Francisco, o João, a Susana e o Afonso, o seu derriço e pecado. Hoje é avó de vinte e um netos e bisavó de cinco bisnetos. Mal sabia o seu Albano o que as pressas poderiam dar…

Sentada na sua velha cadeira, misto de chaise-longue e poltrona Dona Santinha vai desfiando o passado com aquele sorriso doce de sabor cheio. Já lá vão cinquenta e muitos anos. Ai, tanto Jesus!

…………………………………………………………………………………………………………………………………………

-Menina, o seu paizinho chama-a à sala.

-O que é que aconteceu, Maria?

-Menina, eu é que sei. … Vá mas é lá. Senão… já sabe.

-Tu sabes. Diz lá… Tá bem. Pronto…

Com o coração apertado, lá se dirigiu á sala. Bateu, entrou e pediu a bênção.

Sentados, os pais esperavam-na. A mãe quase sumida pela presença avultada e áspera do pai, Parecia mais pequena e ele, com aqueles olhos enormes que pareciam querer adivinhá-la., simplesmente pigarreou e afirmou.

-A menina vai casar-se. Arranjei-lhe um marido. A sua mãe dir-lhe-á.

E pronto. Deu meia e volta e saiu. Santinha, perplexa e meio zonza, ouviu a mãe dizer-lhe que o Albano, rapaz às direitas, filho de Artur Nóvoa, era o seu futuro. Estudara e era um rapaz de bem. Ponto final parágrafo.

Casara-se como mandavam os preceitos. De inicio custara. Dormia com um estranho, mas aos poucos fora-se habituando. E depois não havia nada de amores, como Rosarinho, a sua neta mais querida lhe dizia, era só amizade e depois muita ternura. Tanta que ainda hoje suspirava com a falta daquela onda que a costumava invadir.Aos poucos fora nascendo os pequenos. A primeira é que custara mais, depois fora mais fácil.

Foi naquele Verão. No ano seguinte à Clarinha ter entrado para o colégio. Tinham ido para Moledo, como sempre, desde que se lembrava de ser gente. Estava grávida de Afonso. O verão era esplendoroso. As crianças, um bando de andorinhas sempre de um lado para o outro. A sua Maria era o seu grande apoio. Tinha vinte e oito anos. Sentia-se plena, mulher

O dia fora igual a tantos outros na praia, a Maria levara o almoça às crianças na sua grande cesta. Comera-se na barraca como sempre. Ela conversara com as amigas, as crianças brincaram, no mar, na areia, e regressaram a casa. Depois do banho já deitadas, ela sentara-se na saleta para uma breve leitura. Não esqueceria jamais, a chegada convulsa do pai, dando-lhe a notícia … que o seu Albano tivera um acidente. Que tinha que partir rapidamente, as crianças ficariam.

E lá foi ela.

Foi só e ficou só. Só de alma e de ombro amigo na solidão dos dias que correriam.

A vida, doce até então deu uma reviravolta. Teve que fazer face a tudo. Aos filhos, á casa, aos negócios e á vida. Á vida, sobretudo. Mas não descansou os braços no parapeito das convenções. Pouco a pouco tornou-se dona de si, da sua vontade e do seu pequeno mundo, para além das crianças e da casa.

Santinha Nóvoa foi pioneira, no seu tempo de mulher. Não chegou a vestir calças, mas vestiu a determinação das decisões., num mundo feito de homens e para os homens. Era a província dos anos quarenta e cinquenta. Era o Estado Novo. Era o mundo fechado em si e sobre si.

Era vê-la, lado a lado, com os homens e as mulheres na fábrica de tijolo. Aprendeu o ofício, sujou as mãos e partiu as unhas. Ganhou o respeito. E a Telheira foi pão de muita gente da região. Foi também a côdea e o miolo dos seus filhos, da sua casa e de si. Recorda…

-Dona Santinha, a máquina partiu…

-Minha senhora é preciso, enviar esta encomenda…

-Dona Santinha os operários querem aumento…

Minha Senhora…Dona Santinha… Patroa…Mãe… Menina…

Ecoam os chamamentos no tempo ido. Sente alguma saudade. O tempo foi. Já não é. Hoje descansa, pensa e frui o que sobrou de então. Da vida agitada mas cheia. Da casa de riso fresco e cheio. Das portas que batiam e dos passos corridos na tábua já gasta. A casa, armário de pequenas vidas de tamanho já passado. Hoje é grande, solene, vazia quase ermida perdida no alto. Apenas uma vez ao ano, a casa acorda. Pelo Natal. Repete-se há cinquenta e tal anos, inexoravelmente. Revive em cada data. Depois hiberna no tempo.

…………………………………………………………………………………………………………………………………………………

Recordou sonhando ou estava acordada? O tempo já lhe prega destas partidas. Ajeita-se e pega no livro. Olha o telemóvel como se esperasse … por uma voz.

Ah, os filhos que se esquecem…os afazeres. Dá-lhes a desculpa. Vidas. Algumas partidas, outras meias feitas. Escolhas, agora dizem-se opções. Não são as escolhas dela, são deles. Mas gosta das suas duas noras e dos seus três genros. Pensa ser assim que deve chamar ao companheiro de Afonso. Bom rapaz. E ele, o seu filho é feliz. Custou-lhe mas acabou por aceitar. Um escândalo no inicio. Os irmãos foram os piores, aliás dividiram-se como sempre acontece nas famílias. Uma vez mais teve que apanhar os cacos e colar a família. Um acto de reconstrução. Hoje coabitam todos, no Natal, diga-se, e ali na casa velha, os pruridos sociais desarmam-se para se tornarem todos filhos e irmãos. Lá fora, no frio do tempo fica o preconceito estreito de quem não sabe amar e aceitar. Cá dentro, tal como o seu coração, crepita a labareda viva da lareira afagando as vontades.

Mas se fora só o seu Afonso. Também o João e a Susana já se tinham divorciado, casado e sabe o que mais. E as netas e netos. Tudo diferente. Já se habituara ao desfile de caras novas. Buscavam a felicidade, tal como o tempo. A instabilidade era apanágio destes dias. Na sua opinião amavam demasiado o amor. Depois ficavam exauridos para amar o concreto. Mas como ela lá dizia para os seus botões. "Que cresçam, que sejam felizes!" Ela também fora diferente e hoje era uma Senhora de coração aberto e alma doce. Pensa amiúde: "A vida é a arte sublime do Homem" porque desprezá-la, então?

Um som forte agita-a. É o telemóvel.

-Estou? Sim?

-Rosarinho, vó.

-Diz , minha querida. Tudo bem?

-Vózinha querida -a voz treme muito, num soluço perdido. -Preciso de si, muito!

-Então, o que se passa, diz que fico aflita.

Um silêncio e um soluço e depois a voz entrecortada.

-O Pedro Maria deixou-me… saiu de casa. Oh Vó…tou tão…

-Minha querida acalma-te. Estás em condições de vir até cá?

-Sim, Vózinha…sim…

-Então espero-te ainda esta noite. Tem calma. Tudo se resolve.

Desligou, suspirou, levantou-se e dirigiu-se para a cozinha. Há que fazer uma boa canja. Depois logo se verá. De novo os cacos. Mais uma colagem, mais uma página lida que terá que ser relida. Ergue as mãos e murmura:

-Que sou Santinha, sei, mas um vá lá, um pouco de Temperança, também não me caía mal.

-" Não resmungues. A auto-comiseração não te fica bem. É mais uma oportunidade de seres útil. E tu sabes fazer isso. É a tua vida."

Olha em redor. Será que ouve vozes? Será? É a sua consciência. Uma inoportuna ao longo da vida, mas uma amiga também. Já refeita, solta uma gargalhada sólida e franca. Inspira a plenos pulmões e diz a meia voz:

-Vamos lá, então ver onde o barro partiu, se foi forno ou defeito…


29 agosto, 2007

As minhas 7+1 Maravilhas do Mundo

G i de Flores de Inverno lançou-me este desafio. Demorei tempo a pensar. A escolha exacta é quase impossível.

Viver um acto puramente físico mas regado de muita humanidade.

Amar todos os dias como quem trinca uma maçã suculenta.

Pensar em cada momento porque existo.

Sorrir aos momentos cintilantes e deixar as "chuvadas " caírem às vezes.

Recordar em cada momento quem somos e para onde vamos.

Passear no e pelo mundo entre as gentes .

Chorar quando estou feliz ou infeliz. Provar as lágrimas e saber que sinto.

E finalmente


Ser pessoa

Como é hábito deveria nomear alguém. Assim abro o desafio, a todos os que livremente quiserem ou desejarem fazê-lo.

Agradeço, delicadamente, a quem mo passou.

27 agosto, 2007

O sr. Sates


Palavroso, olhar vivo, face móvel. Figura esguia de pernas semi-arcadas e magras. Traseiro despido de carnes. Andar gingão, apressado, nervoso. É isso, nervoso, o sr. Sates.

Quem o conhece, sabe que não necessita de jornal a seu lado sobretudo do obituário e desgraças a fins. Num olhar e palavra rápida põe as notícias em perfil. Gosta de ser o centro das atenções.

Personagem viva das estações da vida, o sr. Sates é um ilustre reformado. Daí a sua verborreia sempre que disserta pelos vastos campos do saber ouvido aqui e além, mais acrescido do noticiário e alguma leitura de jornal.

Sim, uma pessoa documentada, porque não está ao alcance de todos discutir os meandros finos da política nacional e regional, saber das flutuações da bolsa, do endividamento dos portugueses, os preços do bacalhau, do pão, mais as fraldas do neto, e o ginásio da sra. Sates. Um homem aberto e actualizado. Porém, pasmem, isto é apenas uma pequena gota no oceano do conhecimento deste cavalheiro.

Não é pessoa bem quista apesar do riso franco, talvez por entre dentes fazer o corte, não é pessoa de amigos, talvez porque os diminui em vez de os mimar. Mas é figura conhecida do meio.

Num destes dias encontrei-o à saída do banco, pois é lugar de sua estima. Talvez para saber o saldo da sua farta conta. Estava um pouco apreensivo.

-Ora viva, não há olhos que o vejam.

-Sabe, tenho andado maleitado.

-Mas o que tem?

-Ora, já fiz as análises todas, mais os exames á prosta e nada, ando assim a modos que, quebrantado. É a estação, sabe eu não gosto do Outono, e ele já vem aí, a passos largos.

-E o médico que diz?

-Que está tudo bem. O "castrol" está bom, não tenho ácido úrico, o PSA também tem os valores certos.

-Então, Sates, está um jovem…

-Ah faço por isso, uma vida muito saudável. Como muito peixinho e nada de abusos. A minha Santa até já se queixa…

-Pois…Ó Sates, você é levado da breca…

E num tom brejeiro o Sates que na boca da sua Flor é um homem de múltiplas forças e andanças, começa a desfiar o rosário das poucas-vergonhas do burgo, de outros tempos, diga-se, e alguns destes, acrescente-se.


-É o que eu lhe digo, o filho da Maria Carrapichana, que tenha a alma em descanso, o Tó das Hortas, deu cabo dos dinheiritos todos com as quengas. Um corrupio… era só ver. E a mulher sabia. Depois meteu-se em negócios de pó, e agora está dentro. A filha que andava a estudar, agora é tão séria como o crivo. O que quer? Vidas. E ele, o malandro, até vem no pasquim da terra.

-Pois…coitado, a vida…

- Ah ,não é de cá, se não já sabia destas vidas. Eu, é que tenho uma vidinha muito decente. Não entro nessas. Não compreendo como é que tendo uma mulher limpa em casa, se anda atrás dessas marafonas. Ai, meu rico dinheirinho., e embalado continua…

-Sabe, eu tive uma estrelinha.,e consegui ganhar muito dinheiro. Foi Deus que me alumiou. Entrei na igreja e conversei com ELE. A partir daí, a vida correu-me bem. Tenho uns bons milhares. Mas sou muito simples…e não me meto em complicações. Só eu e a minha Flor.

Quem o ouvisse, esqueceria a tela real. O Sr. Sates conhecido por uma riqueza rápida, não se sabe vinda de onde, uma língua afiada e solta, uma propensão para maledicência," porque quando se fala dos outros poupa-se o tempo em falar de mim", um desejo incontrolável de falar, falar… desfiando verdades, criando patranhas mas sempre sobre a vida de alguém.

Ora num daqueles dias, estava o sr.Sates posto em observação lá para os lados da Câmara, onde cruzam várias personalidades, e onde obtém muito do seu noticiário, estava, dizia eu, magicando em alguma, eis senão quando, uma dor aguda, grave e esdrúxula, repuxa-o para um banco. Suores frios, desfiaram pela testa, costas e sabe-se lá onde mais. Zonzo de cabeça e língua, tenta pedir ajuda. Lá consegue e ala, lá vai ele a caminho do hospital.

Durante várias horas fez todos os exames e teve repouso, coisa que abomina, porque o descanso é sinónimo de calaceiro, e ele é muito trabalhador. Mas, o pobre do Sates, teve que cumprir. O médico foi peremptório, ou diminuía o ritmo ou ia desta para melhor. Ora se até então, a criatura já vivia obcecada pela longevidade e masculinidade que não desejava ver beliscada, a partir do momento, tornou-se quase eremita de gostos, palavras e acções. Quem o quisesse ver ,era ir até à igreja do burgo onde papava missas, ou ao jardim de sua casa onde descansava os braços. Os repastos eram sóbrios, longe da azáfama de restaurantes bem caros que propalava, frequentar, aos quatro ventos. As viagens, em excursão, até á vizinha Espanha, cessaram, pese o facto, da sua Flor argumentar em vão, e ter que retomar os enredos, ainda frescos das novelas. Apenas alguns fins-de-semana à sua casa, no Porto, junto ao mar, continuaram.

E o Sates passou a ser um homem sorridente, pouco falador, apenas criticando o treinador do seu Porto, pois que o dirigente, ele nem se atrevia. Um homem profundamente mudado. Pio, ponderado, humilde, e de considerações sobretudo para com "tradicionais" que anteriormente parecia desafiar em adjectivos. Os menos protegidos, esses, enfim nunca o tinham embalado muito, nem no período de condescendência moral e espiritual. É que as semelhanças foram muitas ,e depois um homem também gosta de esquecer.

O tempo rolou. O homem curou-se. Hoje é vê-lo de novo na ponta da língua crucificando as gentes, as vidas, e os dinheiros alheios, na rapidez convulsa da sua verve. O Sr. Sates, possui aquela graça de ser muito portuguesinho, tanto que chega a doer a quem o ouve…

-Ah, eu não digo mal de ninguém, mas as verdades têm que ser ditas. Aquele filho…

Sejamos bons portuguesinhos, pois!









26 agosto, 2007

Sylvie Guillem and Jonathan Cope in Manon

Um dos mais belos e perfeitos Pas de Deux(final).

25 agosto, 2007

[certificado+calimera.jpg].Agradeço a Calimera de http//ca-limera blogspot.com a atribuição.
E ,porque na minha opinião os blogs que visito, são bons, muito bons e excelentes a todos devolvo a nomeação, e que muitos e mais bons momentos venham.
Do mesmo modo agradeço também a Flor da Palavra pela simpatia demonstrada e pela atribuição do mesmo.
De igual modo agradeço também a Canto Poético. Um sincero obrigada.
Mais um obrigada a Momentos pela gentileza.






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Eduardo Prado Coelho
29 de Março de 1944 a 25 de Agosto de 2007
Eduardo Prado Coelho ...Porque uma primeira frase é sempre uma decisão, um corte no silêncio, no não-dito, naquilo que existe de acomodatício na soma de rasuras e interdições de que somos feitos..."
in Diário de Notícias, 2 de Novembro de 2003
Cartas a D. José Policarpo



Olhares

Olhares perdidos

Em mágoas, em sonhos,

Em castelos desfeitos.,

No riso de lágrimas quentes.

Olhares puros

Em cristais de brilho húmido,

Onde o amanhã, quase chora

O ontem dorido.

Olhares do futuro já manchados,

Paridos na miséria, e amargura

Continuados no sal do mundo,

Presentes no rio defecado da vida.

Olhares simples,

Gritos abortados,

Luzes que nos alumiam

Na noite da ganância,

Das nossas Vidas.


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Russian Dance (ballet)

"O estilo nem por sombra corresponde a um simples culto da forma, mas, muito longe disso, a uma particular concepção da arte e, mais em geral, a uma particular concepção da vida."

Léon Tolstoi