Quem sou eu

Minha foto
Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

11 novembro, 2007

Ázimos…


Na ponta dos dedos gretados, sangrados

A vida.

Rói, magoa, aperta, criva

O pulso latente.

De lutas, desejos, crenças, revoltas

O coração.

Parte, rasga, sangra, cura.

O amor

Da vida, da gente, do ir, do vir

A terra, o metal, o fogo, a água,

Os elementos

Em luta, em desespero, em gritos, em soluços

Unem, acrisolam, rasgam, apagam

O sentir

O mundo renasce, cresce, floresce, adormece

No olhar

Húmido, luzidio, revoltado, magoado

Do lutar.

Em ventres vazios, rasgados, frios,

Já prenhes de sonhos desfeitos,

Já ázimos de futuro,

Túberes do nada!

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09 novembro, 2007

Tarantela II?









Solicita-me Luis de Portocroft que abra o livro que tenha mais à mão, e reproduza a quinta linha da página 161. Abro "Ontem não te vi em Babilónia" deAntónio Lobo Antunes-Publicações D.Quixote.

"-Como diz como diz?
não se lembrava do automóvel, do meu pai, da herdade
-Uma herdade?
nem cálices de cristal nem pratas amolgadas, um candeeiro de borlas que não iluminava o fosse que fosse a não ser a si mesmo, o egoísta, há quase cinco anos que não vejo chover e duas da manhã porque qualquer coisa mudou, os estranhos recuaram a discutir entre si preferindo o esconso dos arrumos a que falta a portada, julguei que a das cataratas se interessasse pela família, a casa, a sua imagem no espelho e mentira, qual família, qual imagem, qual casa..."

É suposto dar continuidade, assim, peço a Arion ,Gabriela Martins, Miosotis e Vida de Vidro que peguem no livro mais próximo e...

08 novembro, 2007

Posted by Picasa

Os novos Imigrantes. (I)

Vêem de longe, figuras dobradas, olhares esquivos, corpos quebrados de almas perdidas. São de longe das terras do frio e do gelo. Chamam-se Yuri, Ludmila., Boris, Stevelana, Khanda…

Khanda Utsanova é figurinha gentil e apelativa na sua diferença. Eslava por nascimento mas mongol na origem e nos traços que lhe vestem a pele. Grácil no mover, ainda titubeante no expressar, de sorriso no olhar oblíquo e nos lábios cheios. O rosto é espalmado mas aberto. Chegou, vai para cinco anos, veio do frio mesmo perto de Minsk, hoje, vive numa cidadezinha deste país pequenino, quase canteiro, na imensidão da sua Rússia natal. Mas Khanda é menina a crescer na terra onde o sol se põe. Educada, culta, muito pertinente nas apreciações que faz, destaca-se dos demais, não só pelo seu facies, mas sobretudo, pelo seu saber e postura. Não possui os atavios e marcas das suas colegas nem outros sinónimos, é simples por natureza. A mãe, figura de porcelana chinesa exprime-se de forma encantadora pelo hiato de alguns sons mas que no todo perfazem um discurso muito europeu. Tornou-se cabeleireira. Primeiro foi, empregada de limpeza, depois ajudante até que finalmente se balançou no aluguer do andar, e com ajudas conseguiu montar o seu salão de cabeleireiro. Demorou a angariar a clientela, mas ultrapassada a situação, é hoje um lugar de referência na pasmaceira provinciana da cidadezinha. Porque isto de ter a cabeça lavada e penteada por uma russa que sabe de violino, fala três idiomas e serve chá, não é para todos, e até dá um certo status. A vaidade comezinha, tão nacional, transpira sempre pelos poros, sejam eles quais forem. A senhora Utsanova sempre gentil, lava, sorri, esclarece e conta episódios da sua terra branca, onde as dificuldades do quotidiano são relegadas para as traseiras da memória, e apenas o jardim de entrada é recordado. Coisas do coração! Afinal as gentes não são assim tão diferentes.

Ora, num destes dias, Khanda adolescente de primícias intelectuais incomuns, decidiu juntamente com a sua melhor amiga, uma Margarida bem portuguesa, e com a ajuda do seu pai, violinista feito trolha, dar aulas de música aos amigos tão excluídos do saber. Lá conseguiram a cedência de uma sala nas instalações velhas e bolorentas de um edifício corroído de osteoporose granítica. Os sábados à tarde passaram a ter sabores de mazurcas, valsas, minuetes, um sem fim de notas em crescendo, ora agudas, graves ora estridentes ou doces. Os alunos, aliás as alunas, porque nestas coisas o feminino é mais aberto, não chegavam à meia dúzia, as”piquenas-da-mãmã” cujo faz-de-conta -social atraca sempre no cais da importância anafada, as desejosas, mais as que-vieram-só-ver-se-era-giro, e lá se foram sentando. Mas a notícia tem asas, e em breve, o número de candidatos a músicos aumentou e muito, por diga-se, é de bom-tom tocar violino ou então ter um instrumento na sala, em repouso, dá um ar tão, tão de “família”. As pequenas, agora de violino em punho, digo antes, ao ombro, percorriam as cordas do instrumento em harpejos de dó. O Sr. Yuri, como era chamado, o apelido caíra com o cimento dos baldes, penava a bom penar nas tardes de sábado, logo a seguir á catequese, para incutir sentido e amor musical a este bando de gente jovem cujos ouvidos pareciam funis de folha-de-flandres de pernas para o ar. Os sons pareciam esvair-se por outros orifícios que não os ouvidos. Pobre Yuri!

Persistentemente, com a paciência de quem tem que vencer noutras terras, o Sr. Yuri conseguiu, não só criar um bom quarteto de violinos, como ainda despertar o interesse musical à comunidade, que rapidamente se apercebeu dos benefícios, que daí lhe poderia advir., porque incultos poderemos ser, mas parvos, é que não! As autoridades, em tempo de campanha eleitoral, acharam por bem, dar-lhe uma mãozinha a jeito de promessa cumprida, o que afinal é bem raro neste jardim, e providenciaram as instalações condignas bem como alguns meios. Pasmem as almas do burgo, nas noites estreladas, quando as flores se recolhem deixando no ar morno, o aroma doce de boas noites, irrompem então pelo ar pizzicatos e vibratos quase primorosos que amaciam a rudeza da paisagem envolvente. A ignorância musical sente-se apaziguada pela generosidade das gentes da terra. A família Utsanova, de imigrantes de leste passou a ser considerada gente boa e culta, muito trabalhadora e que se adaptou facilmente aos usos portugueses, comendo já alheiras e rancho, deixando para lá as comidas esquisitas deles.

Sentados na saleta singela de móveis mas rica em recordações, os Utsanova como qualquer outra família desta aldeia global, conversam sobre o seu dia-a-dia. Yuri, agora estucador de tectos, obra delicada que só mão de artista sabe executar, anseia por se dedicar á sua música, que lhe brota livre e solta da alma. As aulas de violino acalmam-no um pouco do espatulado diário, mas não o suficiente.Latente está sempre o vibratto que lhe percorre o corpo, e eleva o espírito. Pensa em pauta mas vive nas cordas que a vida lhe teceu. As cordas repuxadas de uma vida sem som, onde fome tantas vezes foi eco de adágios tocados, onde o cinzento da pobreza deslizava no arco plangente do seu violino, onde o futuro era melodia interrompida em sol na pauta da vida. Lentamente, a bruma do sonho materializou-se em desejo premente de melhor dias. Irina, sua mulher, sempre calada e activa deu-lhe a força. Mais do que nunca fizeram sacrifícios, os possíveis e os impossíveis, dias e dias a chá quente e pequenos blinis. Khanda apercebia-se, a sua menina, mas diziam-lhe que estavam a economizar para a sua educação. A pequena aparentemente aceitava. A verdade era outra, precisavam de uma boa quantia para poderem “sair” pois que as passagens não eram nada baratas e, os”grupos” pediam muito. Ele, Yuri, tinha conhecidos em Portugal. Diziam que era uma boa terra, os portugueses boa gente, acolhedores e amigáveis, com as suas manias, mas no fundo ainda eram os menos sectários da Europa. De grão em grão forraram minimamente a carteira. Primeiro veio ele. Chegou via Frankfurt, num dia de sol. Sentiu-se quente ao descer do avião. Uma espécie de calor envolvente que o descansou dos receios guardados no peito. As boas vindas chegaram assim feitas de luz e azul. Yuri respirou fundo e tomou alento. Mais tarde encontrou os amigos que o levaram para a obra. O Encarregado aceitou-o e ele aceitou o trabalho, uma empatia feita necessidade. O primeiro salário foi uma vitória! Sentiu-se um herói, nunca tivera tanto! O ombro feriu-se, as mãos engrossaram e criam calos. A macieza e suavidade dos dedos perderam-se durante meses. Quanto mais duros e calosos, mais baldes eram carregados. As horas não corriam correndo na mira de tempo gasto. Tinha que conseguir!

O Outono, o Inverno e a Primavera passaram, chegou o verão e a família também, uma alegria! Alugara um apartamento, para ele, uma mansão, quase. Dois quartos e uma sala! Irina e Khanda maravilharam-se De maravilha em maravilha a família foi criando raízinhas aqui e ali, e ao mesmo tempo mostrando o seu caule eslavo erecto e firme. A língua, barreira primeira, foi ultrapassada com dicionários, colegas, trabalho, clientes e escola. Saber falar é integrar-se. Conviver é ser conhecido. Mostrar cultura é dar presentes a quem só tem as caixas. E eles encheram-nas, de encanto e cor. Artistas ou apenas sobreviventes? O que importa? Afinal vieram e vieram por bem.

Volvidos cinco anos, afinal já não são objecto de interesse. A Khanda é uma prometedora adolescente, uma excepcional aluna, uma boa violinista, campeã de ténis de mesa e amiga das “piquenas-da-mãmã”. O salão é frequentado por clientes assíduas, endinheiradas e socialmente consideradas. O que era uma novidade tornou-se rotineiro. Ir arranjar o cabelo ao Chez Irina faz parte do quotidiano das senhoras de proa do burgo.” Tem mãos de seda e dá um toque ao cabelo como se faz lá fora. E depois tem bom gosto, sabe falar e o chá? O chá é divino., sempre servido naquele aparelho, o samovar. Um toque fabuloso. Ainda bem que vieram para cá, gente assim é sempre um regalo.”

O Sr. Yuri, já não continua na dança do estuque. Presentemente tem emprego nos serviços municipais no pelouro da cultura. A novel casa da música tem as suas directrizes. Nos entremeios, sentado na sua sala já bem mais recheada vai compondo obras, que um dia quem sabe, serão executadas.

Mas tudo estaria bem se acaso, o velho espírito tão nacional, não guilhotinasse tão de vez em quando. Murmura-se já à boca cheia que o Sr. Yuri, está na Câmara porque uma cliente da mulher, a Sra. Dra. Fulana tal, cujo marido é o não sei que mais, essa digníssima senhora, meteu a cunha, e o marido arranjou-lhe o emprego e vejam só, que o filho do compadre Altino que até estudou no Conservatório, anda aos caídos por Lisboa, e vêem estes fulanos de fora, com uma mão à frente e outra a atrás, e zás, ficam com tudo.

Não há pachorra, não há, não!

03 novembro, 2007





A noite na Ilha

Dormi contigo a noite inteira junto do mar, na ilha.
Selvagem e doce eras entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.
Talvez bem tarde nossos
sonos se uniram na altura e no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento move,
embaixo como raízes vermelhas que se tocam.
Talvez teu sono se separou do meu e pelo mar escuro
me procurava como antes, quando nem existias,
quando sem te enxergar naveguei a teu lado
e teus olhos buscavam o que agora - pão,
vinho, amor e cólera - te dou, cheias as mãos,
porque tu és a taça que só esperava
os dons da minha vida.
Dormi junto contigo a noite inteira,
enquanto a escura terra gira com vivos e com mortos,
de repente desperto e no meio da sombra meu braço
rodeava tua cintura.
Nem a noite nem o sonho puderam separar-nos.
Dormi contigo, amor, despertei, e tua boca
saída de teu sono me deu o sabor da terra,
de água-marinha, de algas, de tua íntima vida,
e recebi teu beijo molhado pela aurora
como se me chegasse do mar que nos rodeia.

Pablo Neruda

01 novembro, 2007

OUT OF AFRICA




Yet, love, mere love, is beautiful indeed

And worthy of acceptation. Fire is bright,

Let temple burn, or flax; an equal light

Leaps in the flame from cedar-plank or weed:

And love is fire. And when I say at need

I love thee . . . mark! . . . I love thee--in thy sight

I stand transfigured, glorified aright,

With conscience of the new rays that proceed

Out of my face toward thine. There's nothing low

In love, when love the lowest: meanest creatures

Who love God, God accepts while loving so.

And what I feel, across the inferior features

Of what I am, doth flash itself, and show

How that great work of Love enhances Nature's.

- Elizabeth Browning

From: Sonnets from The Portuguese

26 outubro, 2007

AVerdade

Eu sou assim Eu… eu sou…Ik ben zo I… I ik ben…

-Johann, - De liefde van I u

- I ook, Joost.

Deixa descair os braços do amplexo que abrigava Joost. Olha-o, e sente o chão fugir-lhe, sente que o mundo parou, sente que chegou finalmente à sua porta. Afasta-se levemente, olhando para dentro de si, para as suas entranhas, para a sua alma. Tem que o fazer antes de entrar, o passo tem que ser dado firme e largo. Suspira e cruza-a. A entrada é nebulosa, esparsa, há calma dentro de si, uma espécie de força interior que nunca julgou possuir, e também sente doçura, o que é esquisito. Afonso João, trinta e oito anos, não é belo, não é forte, não é alto, não é personagem de romance. É apenas mais uma figura sentada, num banco de um bar demasiado barulhento, onde as pessoas se perdem no néon das cores vivas, e os esgares dão conta do mundo escondido da noite. É homem, em descoberta, junto da sua revelação que dá pelo nome de Joost. Ainda há bem pouco, era igual, sabendo que algures era diferente, agora, e neste momento, é diferente, sendo igual à sua verdade. O som do bar rebenta-lhe no peito revolto de ruídos de certeza. Olha a mesa, os copos de whiskey bebidos, embaciados de gelo e de mãos suadas. O ar viciado de cinzento de fumo, o cheiro adocicado da cannabis que invade as narinas e amacia devagar devagarinho a mente tornando os sentidos extáticos. Sente rodopiar em si a verdade. Precisa de sair, de apanhar ar, de tragar a verdade, de aquilatar a condição, de assumir a escolha. Simplesmente, ama Joost, o homem.

Cá fora o ar da noite de Amesterdão envolve-o na sua humidade cuspida de chuva. É a nortada trazida pelo Atlântico, ergue a gola do casaco e suspira. Toma alento, endireitando-se olhando-o, Joost devolve-lho, em azul, mudo de aguado, luzidio de promessa e calmo de feliz. Caminham lado a lado, ao longo do Amstel que marulha sob os cascos dos barcos cantando dolentes nos seus rangido presos. Descem Prisengracht, não falam, não precisam. O silêncio comunga-lhes o sentir, a aceitação deixa-os humedecidos, perdidos em pensamentos. São ambos colegas, amigos, casados e pais. O mundo gira-lhe nos pés, na alma, e na razão. Não, aí não gira, dói como corte de bisturi, separando-lhe o ser em carnes latentes de vida, de veias pulsantes e de músculos. O cérebro pulsa, lateja e cospe-lhe a verdade que sempre sentiu e que não assumiu. É diferente no quadro vigente do normal, todavia simplesmente ama, mas ama um homem. Lembra-se dos seus tempos de adolescente e como se sentia diferente, lembra-se do tempo de namoro, do casamento, dos filhos, do encontro com Joost, do querer e não querer, da voz, dos silêncios, das angústias, de tudo. Chega! Acabou! A revelação está aí!

No relicário das memórias, Afonso João recorda a infância junto da mãe e dos irmãos. Do pai, vagamente, pois morrera de acidente, ainda era ele muito pequeno. Não tivera sobressaltos, apenas serenidade mas sempre acompanhada de um estremecer de alma, de uma sensibilidade vibrante e de um amor ao próximo extremoso. Sempre acudira aos tristes e doentes. Estava-lhe no sangue, daí a escolha, ser médico. Já na Faculdade conhecera Ana, também ela estudante de medicina .Fora uma atracção de expectativas, de sonhos e dádivas .Conheceram um pouco do mundo ,e das suas dores ao fazerem voluntariado em S. Tomé. A malária, a disenteria, o dengue, a sida, tinham-lhes mostrado a precariedade do ser humano, unindo-os num casamento de dádivas. Ana era a sua companheira, o outro lado do seu intelecto, a lutadora serena, o pilar da estrutura familiar. Descansava nela demitindo-se das escolhas, das labutas exteriores. Detestava os pequenos nadas da vidinha de todos os dias, quase cinzenta de repetida. Nunca sentira êxtase, nem acrisolamento. Tudo fluíra como se fosse um simples rio de águas ,ora pardacentas ora de um brilho breve. Sabia que era insatisfeito, sabia-o ,quando acordava de manhã ao lado da sua Ana. Sabia-o, quando a tomava para si e se amavam, sentia que era um acto, não havia fulgor, nem brilho. Simplesmente ternura, muita ternura. Carolina e Afonso tinha chegado. Hoje eram quase adolescentes. Uma guilhotinada invade-lhe o corpo, como lhes vai dizer? Como? Ele não pode adiar. Não pode, não vai. Chegou à foz do seu rio, a entrada no mar tem que ser livre, livre! Tem que chegar a casa, tem que cruzar rápido aquelas águas paradas, aquele suave entorpecimento que tem sido a sua existência. Soube hoje, o que era sentir o redemoinho, a vibração, o poder dilatado em espasmos de prazer. Soube a sua verdade, toda e não quer perdê-la. Já foram tantos os anos dormidos. Tantos enganos feitos verdades. É tempo de si. É tempo de amar a vida, de amar Joost, de se amar. Para trás fica o que não perdeu, mas também não achou, um cinzento erguido vida, amedrontado de vontade e dormido de si. Poucas vezes sentira o riso brotar-lhe nas veias vermelhas de sangue quente e pulsante, poucas ou nenhumas sentira o ímpeto do riso catapultado das suas entranhas. Vivera, porque respirara ,mas a anestesia do sentir não lhe tinha permitido, até então, dilatar as narinas, e aspirar o hálito do mundo em tempo de escolha, e de revelação, era altura de partir correntes ,moldando novos elos. Estivera preso, olhando sempre a liberdade do outro lado, porém ,o tempo chegara , a chave girara e a porta se abrira. O corredor era ulcerado de comentários, hemorrágico de desdéns e aleivado de escaras, porém era a sua artéria sistémica de saída.

Despede-se de Joost e caminha até Statenjachststraat. Ana esteve de banco esta noite, certamente que estará a sair, à sua frente surge-lhe o Academisch Medisch Centrum onde há quase dez anos ambos trabalham. As suas especialidades são diferentes mas as dúvidas, e angústias são semelhantes. Tinham chegado com bolsas e agora faziam parte do corpo clínico. Era gratificante e apelativo o trabalho desenvolvido. Sentia-se realizado como médico quer em termos científicos quer humanos. A escolha fora boa.

Assim ,divagando ,não se apercebeu da figura que calmamente se colocou a seu lado. E em bicos de pés se ergueu e o beijou na face.

-Viva, boa noite!

-Olá, Ana.

Deu-lhe o braço e dirigiram-se para o outro lado. Perto havia um barzito que tantas vezes os acolhera. Já sentados e casacos tirados, pernas cruzadas em cadeiras macias de encosto cómodo, segurando copos de Amstel Bier, olham-se. Ana poisa o copo perlado de gotículas e diz-lhe:

-Desabafa Afonso João. Vá lá…foi para isso que vieste, não foi?

Olha-a, Figura gentil de rosto suave, olhos cinzentos grandes, perscrutadores plenos de centelhas de inteligência, boca túrgida, cabelos loiros, fartos, penteados simplesmente para trás, escapam-se ao movimento do pescoço, acompanham o bater dos cílios. Veste uma saia de lã justa e uma camisola do mesmo tom . As pernas, cartão-de-visita, cruzam-se elegantemente, revelando perfeição de linhas vestidas em meias de tom beringela transparente de acordo com o conjunto. Como sempre irrepreensível. É uma figurinha ,a mãe de seus filhos. Uma mulher muito interessante, bonita ,loquaz, inteligente e muito sensível. Uma criatura para ser amada e amar devotamente. Conhece-a bem. Engole em seco, olha-a ,e instintivamente põe a mãos na mesa como se precisasse de amparo. Ana aprisiona-lhe os dedos e mergulha o olhar de cílios longos naquele outro dorido de palavras. Pigarreia.

- Ana, tenho… algo muito sério para te dizer.

- Sim, Afonso, estou à espera… diz.

- Ana. Amo outra pessoa… eu…

Ela entreabre os lábios num sorriso, o olhar é cansado muito, dorido, como se finalmente a verdade, há tanto tempo esperada… as lágrimas humedecem-lhe o brilho do olhar, o rosto está amarrotado de dor.

- Afonso…creio saber. Espera… um soluço escapa-se-lhe da garanta, mas sorri…acrescenta olhando-o profundamente - É o Joost, não é?

Afonso responde sem voz em murmúrio: - Sim…

Olha-o uma e outra vez, abana a cabeça, recolhe as mãos, ergue-se lenta, lentamente como se aquele acto tivesse terminado e a plateia ansiasse pelo clamor. Já de pé recua, olha-o e atabalhoadamente pega no casaco e sai porta fora. Afonso fica sentado. Mudo, quedo, partido. Depois, depois sai. Cá fora, a noite prende-o de novo mas não de forma leve, a raiva propala-se da mente para o corpo, engalfinha os dedos, e desfere dois valentíssimos murros na parede do bar, bate com a testa, e urra, sim urra guturalmente. Todo o seu ser é agonia e raiva. A sua condição revela-se-lhe pústula aberta no pulsar do seu ser. Desesperado no sentir magoado de Ana. Não, ela não!

Caem-lhe abundantes lágrimas que se aquecem na gola de lã. As mãos cobrem tensas a cabeça como se suplicassem a resposta. A noite gira no amarelo da lua. Amanhece. O negro é cinzento e depois azul desmaiado. É dia. Um outro dia de muitos que chegarão.

Joost entra na sala. Olham-se e dão as mãos.












15 outubro, 2007




Bêlaflô

- A va safy va lomo…

Melopeiando e dengando ,Bêlaflô dobra o corpo ,no ritmo compassado dos braços, que esfregam o meio coco seco,no soalho de madeira ,fazendo os círculos de brilho espreitarem. Naquele sobe e desce de canela, toda ela estremece. São os pequenos figos de S. João que saltam no decote meio aberto do vestido de florinhas vermelhas, as coxas esguias dobradas que estremecem, o traseiro duro e bem espetado que dança ritmado. Uma linha divide-lhe as nádegas revelando a nudez de interiores, uma cintura breve, umas as ancas redondas mas esguias, umas pernas compridas e torneadas que terminam nuns pés largos de dedos curtos onde as solas são rosadas e grossas. Está descalça O rosto é oval, risonho, de olhos negros, as narinas são palpitantes como se fora potro em trote, a boca é cheia, sensual em riso de pequenas pérolas brancas., o cabelo em pequenas trancinhas que pespontam no lenço vermelho com dobra e atado em três pontas que lhe tapa a cabeça, mas revela a esbelteza de um pescoço longo. Caem-lhe das orelhas duas argolas quase cobertas de missangas. Faltam os sapatos, coisa que não gosta. Nem sapatos nem cueca. Aperta.

Bêlaflô, moleca flor-fruto de quinze anos, vive e trabalha na casa de patrão Alberto. Quase nascera lá. Lembra dos tempos em que ía à escola e brincava no jardim e no quintal com os mininos mais velhos. Quando a mangueira do quarto da menina Zinha ainda era bem pequenina. Hoje já cobre a varanda e dá fruto. Agorinha, não ligam não, a Bêlaflô. A mãe Rosa bem lhe diz:”- Bêlaflô te enxerga tu és nêguinha os mininos são brancos”

Inda agora viu o minino Carlos entrar em casa, olhou-a de soslaio e foi para o quarto. Nem uma boa tarde…gente assim faz, doer. Morde o lábio inferior, dilata as narinas, ergue-se e suspira. Já acabou, pode ir descansar até à hora do jantar. Foi às compras com a senhora de manhã, arrumou a casa, e agora até ao jantar, descansa. Arruma o coco e o pano no armário, dá uma espreitadela enviesada a mãe Rosa que labuta na roupa.Branco gosta de comer e de tomar banho. Todo o dia é assim. Mãe Rosa bem diz que a casa tresanda de roupa e de sabão. Sai pela porta da cozinha e vai até fundo do quintal, para debaixo da acácia florida de rosa. Linda. Tem perfume doce. Como o ar quente que não mexe, tá calor, mesmo, Janeiro, o mês da quentura e da moleza. Deita-se no chão, abre as pernas, ergue o vestidito ligeiramente, coloca as mãos sob a nuca e vê o céu por entre os ramos da acácia florida. O sol está lá cima mandando a luz forte, pisca e fecha as pálpebras ao brilho, e matreira tenta abri-los lentamente, como que a enganar, mas não consegue, então solta um gorjeio forte e rebola-se na terra. Aquieta-se para aspirar o vento que traz a maresia, e o marulhar das ondas, mesmo do outro lado, da estrada. Nem cinquenta metros a separam da praia. Sabe bem, lá ir, ao fim da tarde, no finzinho da luz forte, quando tudo é rosa e laranja. É quando o dia é mais bonito, e se sente calma, sem aquela coceira que a traz, meia sem jeito. Não sabe bem o que é, vem mesmo de dentro, fica arrepiada e meia tonta. Será maleita, mau-olhado? Mãe Rosa anda de olho nela e está mais áspera. Que coisa! O velho Tião abana a cabeça e diz: -“ Ah Bêlaflô vucê tá flô”. Domingo, o cozinheiro olha-a dengoso, mas não gosta dele, não, é velho. Domingo, negro como ela, inté é bem-parecido, gosta de rir e de tocar a viola feita de lata de azeite vazio. Ao domingo veste a roupa nova e vai gingar com os amigos. É a tarde de folga. Todo o dia está agarrado às panelas e inté usa farda, avental e chapéu, tudo branco. Coisa da senhora, mas se soubesse, que ele, quando tem calor e coceira, mete a colher de pau da panela, na cabeça, coça - coça, e logo mexe o cozinhado. Xi! Põe a mão na boca e sorri faceira nas comissuras dos lábios. Os patrões não sabem tanta coisa! Uma leve aragem murmura entre a folhagem, e fá-la soerguer-se, para espiar a dança dos ramos. Espreguiça-se, senta-se e olha a casa, silenciosa no seu descanso. Parece não ter gente, mas tem. Estão escutando as ideias. É, branco gosta de escutar os pensamentos. Fica calado, sem luz na cara, de olho mortiço e amarelo. Aí fica sempre amarelo, porque a cor foge para as ideias. É quando a casa e o quintal se calam. Os meninos pequenos estão no colégio, a senhora está de livro aberto ou ao telefone, o patrão no escritório, a minina Zinha com os amigos, e o minino Carlos, no quarto. Tá sempre no quarto, inté tem cheiro. As persianas estão corridas, tudo a meia-luz para refrescar. Mas não refresca, não. Calor é calor e só vai com a noite.

Dirige-se para o quartinho dos fundos que partilha com mãe Rosa. Pega no fato de banho, que não veste e na toalha. Vai até à praia refrescar. Cruza o quintal, e sai pelo portão do quintal. O jardim é à frente, e para os patrões, eles usam os fundos. Sai para a rua, atravessa a estrada e ei-la no areal branco ponteado de palmeiras. O Índico, azul, morno e espesso marulha no areal. As sombras da noite já tingem o branco da praia. As palmeiras crescem no entardecer e bolem ligeiramente no verde-escuro das folhas. Está tudo vazio, um barco repousa ainda molhado. Ninguém. Estende a toalha, aninhada à proa, do outro lado, escondida. Despe o vestido e corre para o mar, mergulha-o e inunda-se da sua tepidez fresca. O sal morde-lhe a pele mas sente-se flutuar de leve, de livre de feliz, o corpo vibra no interlúdio de água Á laia de despedida, faz das mãos cutelos e corta as águas em lâminas translúcidas que lhe salpicam os olhos em lágrimas de riso. Corre para o areal junto à proa vazia e deita-se. O ventre tem ritmo de sobe e desce da corrida. Fecha os olhos e abandona-se ao prazer do momento.

Um arrepio de toque percorre-lhe os sentidos, sustem a respiração. Tem coisa aí. Mas os olhos mantêm-se fechados. Está expectante. Os dedos continuam na sua viagem lenta, gulosos, tocam a lisura de veludo e chegam aos seios que se encarrapitam. Tá gostando. Abre um olho e espreita devagarinho, é minino Carlos. Sorri e enrosca-se nele atraindo-o para si com toda a fragrância da sua canela de fêmea em desejo. Ele monta-a sem delongas, rápido em impulsos secos de compasso simples. Bêlaflô ri, ri, seguindo o ritmo esplendorosamente. Carlos levanta-se e olha-a, já em pé murmura: -’és linda, negrinha!”

-Iiii minino Carlos., Bêlaflô gostou, gostou mesmo.

Respiram e olham-se. Ele serenado de desejo, ela saciada de tremuras, uma onda quente que os varreu desaguada no ventre de vida. Agarra no vestido de florinhas vermelhas que dançam a marrabenta do amor e deixa-o descer pelo corpo quente de florido. Flor sobre flor em pau de canela. De novo os personagens da vida têm que ser preenchidos, ela, Bêlaflô nas tarefas de moleca neguinha, ele, Carlos no “minino” de sua mãe e varão de seu pai. Juntos e separados regressam à casa, um pelo portão do jardim, a outra pela porta do quintal. Bêlaflô rápida enfia-se no quartinho e dali na casa de banho. Lava-se sob o duche frio, sente-se zonza e inundada. Veste-se, cueca, bata amarela e sapato. É hora de jantar. Apanha as trancinhas num novelo e coloca o lenço na cabeça. Senhora não deixa que sirva à mesa de cabeça ao léu. Esquisitice…

Já na casa de jantar, observa os patrões e a prole. De soslaio, vai olhando para o “minino Carlos. É bonito. É alto, forte, tem olho claro como o pai ,deve andar pelos vinte. Ela era assim de pequenina ,e ele já era grande. Depois está a estudar no “Puto” há dois anos, só vem a casa no Natal e nas férias de Junho.

-Carlos, eu já comprei a passagem de avião. Na próxima sexta -feira, tu, e a Zinha, embarcais de regresso. O voo é bem cedo. Ouve o patrão dizer.

-Ó pai ,podia ter dito antes, tenho os meus amigos… Zinha que sempre fora bem palavrosa, e explicada, recalcitra logo, revirando os olhos bem à moda da época.

-Pois tem uma semana para se despedir. E depois, sempre quero ver, o que vai fazer este ano, o outro foi para esquecer…Tem o exemplo do seu irmão, veja lá se o segue., senão regressa a casa e acabou-se a Universidade, percebeu?

-Sim, pai. Também…

Pondo ponto final na conversa, o pai dirige a sua atenção, para os mais novos, que sob a toalha se beliscavam.

-Quietos Leninha e Miguel! Ou vão já de castigo para o quarto que depois vou lá!

A calma volta à mesa e Bêlaflô serve o peixe assado, que cheira divinamente. “Domingo tá ficando um bom cozinheiro!” pensa a neguinha.

-Bêlaflô! Acorda! Ouve a voz da senhora…

-Sim, senhô.

-Não sei o que lhe deu hoje. Está meia parva. Faz o favor de me servir, e como deve ser, percebeste?

Rápida, coloca o peixe-dourado com tirinhas de cenoura, as batatinhas redondinhas e o molho no prato da senhora, do patrão e dos meninos. Treme-lhe a mão quando serve o minino Carlos. Ele, calmamente vai roçando -lhe a coxa com o cotovelo... xi que calor! O patrão Alberto olha-a fixamente e ao minino também. Poisa a travessa e vai para a cozinha, onde mãe Rosa e Domingo já lavaram as panelas todas

- Tu tem Flô? – Pergunta mãe Rosa, perscrutando-lhe o semblante e o corpo.

-Ora, nada, mãe Rosa.

A velha nega, não se convence, e olha-a, remira-a e funga. Já viu muita coisa e pressentiu muito mais. Sabe da vida, do que é ser neguinha em casa de patrão. A sua Flô, também não escapou.

Olha a noite, com os olhos vidrados de sonho partido. Foi há tanto tempo, também fora flô, depois o patrão novo enrabichara-se e servira-se dela. Por algum tempo enquanto a pétala não murchou. Logo, fora recambiada para a “terra”. Silvestre fora o homem da sua palhota, até que tinham vindo para a cidade e fora trabalhar para o porto, junto dos barcos, ela, viera para a casa de patrões Lacerda. Um dia, Silvestre fora ter com os antepassados, só ela e Flô ,tinham restado.

A vida era sempre igual. Tinha que arranjar a trouxa e ir embora de volta para a palhota. Era tempo…Flô que não era flô, tinha que arranjar homem e depressa, antes de as chuvas chegarem, antes das águas do mar trazerem as algas de volta, antes do sol dormir mais na terra, antes de a palmeira dobrar no vento. Antes de Flô apanhar o jeito… de branco.