"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
14 junho, 2012
Depois de Amanhã (VI)
O comboio parou.
Olha por entre a janela e distingue somente dois vultos, que apressados sobem para as carruagens. Rapidamente a plataforma fica vazia. O escuro da noite tapa os contornos. Apenas os azulejos debitam umas figuras, vestidas de sombras escuras. A noite é escura. Não deveria, pois ainda é Outubro. O mês das penumbras, porém está mesmo escuro. Instintivamente encolhe-se. A noite sente-se fria e ventosa. A chuva miúda varre de quando em vez o ar. Uma daquelas noites em que o sofá mais a manta de quadrados vermelhos e pretos lhe fazem as delícias. Oh como já sente saudades do quente do seu cantinho mais de Manuel!E não chegou ainda.Chegar e partir parece que fora parte da sua vida.As coisas têm sempre uma dimensão diferente quando estão longe. Parecem mais doces, menos reais. A dificuldade entre o que os olhos vêem e as palavras sentem.A percepção e a sensibilidade. Dois sentidos que se completam sem nunca se encontrarem.-Engraçado -pensa Sofia - Porque será que estas duas andam sempre em paralelo quando afinal são gémeas…1962.A noite resvala por entre os copos e os pratos. Sentada na mesa ao lado da mãe e Luís, Sofia mal consegue manter os olhos abertos. Sente o corpo descer pela cadeira. Mesmo em frente, a mãe com aquele olhar, que sempre a faz sentir em falta.Bolas, é só sono. Depois aquele vestido azul com gola de renda, pica-a. Detesta-o. Os sapatos caem-lhe dos pés. E não gosta daquela comida. Tudo muito vermelho e esquisito.Que vontade tem de estar na caminha, no seu quartinho. Mas não, tem que estar ali. A mãe está feliz. Ri-se, ri-se até parece tonta. Só de vez em quando lhe lança aquele olhar que a faz tremer. A mãe olha em redor feliz. Tem brilho, o olhar. Está mais bonita ainda. A mãe é muito bonita. Tanto que a faz olhar. Tem uma cara com vida e um sorriso cheio. Um olhar doce para os outros e acusador para ela. Hoje a mãe está linda. Muito. Sofia sorri entre as pregas do sono. A Mãe e o Luís vão dançar. Ela fica-se a olhar. Deita a cabeça na borda da mesa. Entre os bracitos cruzados. O ninho do seu mundo. Ali fica, quase embalada pela música que crepita, e o sono que a invade enquanto o ano nasce.Amanhã quando acordar tudo será igual. É assim o tempo. Só muda quando a gente muda ,e ela é ainda uma criança…
05 junho, 2012
Depois de Amanhã (V)
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De novo no seu lugar a ver passar a noite. O
livro continua olhá-la. Prefere embrenhar-se nos seus pensamentos. Sofia gosta
desta intimidade que tem com as memórias, dão-lhe o conteúdo da vida.
Hoje em que tudo passa numa corrida,
empurrando tudo e todos, qual efeito de dominó em queda, hoje, em que parar, é
sinónimo de desaparecer, hoje, é aquele tempo em que não mais se escutam as
memórias, porque elas são feitas de nós vazios. Hoje, pensa Sofia, erguendo o
queixo acima da linha do horizonte, é o meu tempo de recordar.
As suas memórias vestem o tempo. Ei-las ali
mesmo defronte, sentadas, à espera de serem catalogadas no armário do
pensamento.
Fora numa manhã qualquer, não sabe bem o mês se Junho ou Julho,
a memória titubeia, mas sabe de certeza que era manhã, quando o pai veio
buscá-la. Veio numa visita fugaz, e levou-a. Lembra-se ainda desse dia. O pai.
A alegria de o ver foi dividida com a tristeza da despedida à mãe. O pai levou-a
no velho volvo preto. Foi sentadinha atrás nos bancos de napa bege, não havia
cintos e muito menos cadeiras. Os carros eram tão poucos. Falaram durante algum
tempo. Ela falou, fez-lhe muitas perguntas. Ele respondeu pouco. O sono
tomou-a. Embalou-se no movimento do rodar e adormeceu. Quando acordou já estava
escuro. O pai a abaná-la e a dizer-lhe:
- Maria Sofia acorda, já chegamos. Acorda
filha.
Meio estremunhada, lá se deixou levar. No dia
seguinte ,despertou num quarto que não era o seu. Deixou-se ficar muito
sossegadinha. À espera de alguém. Teve medo. Aquela sensação de vulnerabilidade,
que a acompanharia pela vida fora, sempre que se encontrava perante o
desconhecido. Naquela manhã mantinha-se quieta na cama alta, no quarto de
paredes brancas e cortinados azuis com ramos de flores de laços vermelhos.
Escutava, muito quieta os sons da casa.
Ouve passos e rapidamente fecha os olhos com força. A
porta abre-se. Alguém entra. Finge dormir. Esse alguém senta-se na cama, e
passa-lhe a mão pelos cabelos. Ouve a voz do pai murmurando baixinho: So-fi-a. Entreabre os olhos devagarinho. É o pai., é ele. Um sorriso feliz
inunda-lhe o rosto. Lança os braços em redor do pescoço aperta-o. encostando os caracóis ao rosto.
Tanto tempo. Tanta solidão de gestos. Um ano de saudade, fazia-a apertar o pescoço
do pai como se o gesto mitigasse a ausência.
O pai fez-lhe festas no cabelo e suavemente
desprendeu-se.
Já em pé olhou-a sorrindo e disse:
-Levanta-te minha preguiçosa, que hoje temos
muito que fazer.
-Onde estamos paizinho? Onde vamos? O que
vamos fazer?
-Calma. Uma coisa de cada vez.
Por esta altura, já ela saltara da cama e,
cirandava de um lado para o outro. Parecia uma mosca tonta. Até que a janela
lhe prendeu o olhar.
-Oh! Que lindo! Olha, Olha paizinho!
-Sim Sofia, é o mar.
-Paizinho onde estamos?
-Estamos na praia. Este ano vais passar as
férias de verão comigo.
-Sim, a mãezinha disse-me que eu passaria
contigo. Que vocês não vão viver mais juntos, pois não? E suspirando, - tenho
que me habituar.
Encolhe os ombros. Uma névoa rebelde faz-lhe
tremer a alegria.
-Pois é assim Sofia. E tu já és uma menina
crescida. Já percebes, o pai e mãe agora vivem longe um do outro.
-Eu sei. Eu tenho vivido só com a mãe. Tu só
me visitaste duas vezes. Eu sei.
Carlos pigarreia. Não é fácil manter uma
conversa com uma garota de oito anos. Não é fácil falar da sua vida com a sua
filha. Nada é fácil em toda a situação. Ele fora o culpado, se acaso houve
culpados. Melhor foram os dois culpados. Deixaram-se arrastar para um casamento
apenas por inércia ,e o resultado, estava bem à vista. Foram seis anos de
alheamento, de disfarce, de cansaço. Finalmente tinha tido a coragem de falar
com Alice. A reação dela deixara-o espantado. Alice, para não variar, fora de uma
verticalidade e frieza espantosa. Nada exigira, não clamara, , não chorara, não desatinara.
E assim, simplesmente,informou a família mais chegada, tratou dos assuntos que
lhe diziam respeito e serenamente como se fosse algo porque tinha sempre
esperado, reiniciou a sua vida. Alice parecia respirar uma serenidade feliz.
Algo que o deixou de inicio atónito ,em seguida quase quase humilhado e agora , ao longe, quase a admirava.
Admirar, admirar, não seria bem o caso, dado que a atitude da mulher magoou-o
bem lá no fundo, mais do que a coisa em si. Para ele, Alice sempre fora um
túmulo de surpresas, nem sempre boas, é verdade, todavia, toda aquela
naturalidade fê-lo ter a certeza, que eram os dois a desejarem pôr um ponto
final numa frase de dois sujeitos sem predicado.
Ficou Sofia.
Como ele gostava da sua filhinha. Não sabia
exactamente como a mimar, mas em todo o processo fora a ausência da garota que
o ferira mais. A solidão do afeto.
Recomeçara de novo, sozinho mas com
determinação. Sabia o que queria. Na mente delineava-se o amanhã. Sabia o que
queria. Ia lutar por isso. Os dois estavam juntos. Pai e filha.
- Que praia é esta paizinho?
As perguntas de Sofia não lhe davam tréguas.
Os pensamentos que descansassem. A sua filhinha estava ali. Que vontade de a
abraçar, de a beijar. Mas não, não, não o faria. Não seria capaz. Era algo que não
sabia explicar. Ficaria sem jeito, quase despido. Transmitir as emoções era algo
que um homem não fazia, por muita vontade que tivesse. Emoções assim às claras
e logo com uma criança!
E a falta de hábito também o tornara
desajeitado. Poucos percebiam ,que muita daquela aparente frieza ou desinteresse,
não era senão uma incapacidade, uma inibição de expressar os afetos. Sofia, porém saltitava
de pergunta em pergunta, abria os braços, rodava sobre si. Tudo isto numa
enxurrada de emoções que o deixava boquiaberto. Onde fora esta criança buscar
tamanho caudal emotivo? A ele
certamente que não, e à mãe muito menos.
Agarrou doce mas firmemente na filha. Fê-la
parar e olhou-a nos olhos.
- Pára Sofia, ainda ficas zonza. Vamos lá.
Vou chamar a Ricardina, que vai tratar de ti. É boa pessoa e tu vais gostar
dela. Prometes que vais portar-te bem?
-Sim, paizinho. Eu vou ser boazinha.
- Está bem. Espero por ti lá em baixo para
tomarmos o pequeno -almoço.
-Um beijinho, paizinho. Só um…beijinho…
- Está bem, vá lá…
Sofia esticou-se toda enquanto Jorge se
baixava. Havia uma cumplicidade de gestos. As palavras não eram necessárias.
Foi assim que aquele verão começou.
Quando acordava e saltava para o chão,
enfiava o fato de banho, bebia o leite na cozinha e corria para a praia. Mesmo
do outro lado da cancela. Ficava ali deitada na areia, ouvindo o mar que
crescia dentro dela. Corria no areal . Ali
mesmo. Molhava os pés, as pernas. Enrolava-se na areia molhada. Um croquete de
areia como lhe chamava Ricardina. Só quando ela chegava Sofia, podia ir tomar banho. Mas pertinho. Nada de
muito longe.
Ricardina tirava os sapatos pretos, espetava
sempre o dedão num gesto que nunca vira ninguém fazer e de toalhão na mão, ali
ficava, ora puxando as saias, ora girando na espuma sempre de olhar arguto, não fosse o mar roubar-lhe a encomenda. Os gestos tinham a sonoridade do seu nome. Em cada requebro, Sofia, ouvia a voz de Ricardina, ora doce, estrídula, perto e longe. Foi um verão de cheiro e sons de mar.
O fim de tarde era outra coisa. Quando o pai chegava partiam então barquito com um motorzito que roncava e vomitava o cheiro de
gasolina na esteira das águas de espuma branca. Foi assim que aprendeu o falar
do mar. Os seus segredos, sussurros e lamentos. Os dias de águas mansas e os
outros, das enrufadas. Não tinha medo. O pai dizia-lhe:
-Segura-te bem, Sofia.
- Está bem paizinho.
- Não tenhas medo.
- Não tenho paizinho, estou contigo.
- Olha Sofia, olha o sol. Olha a cor. O ouro
do mundo.
- É lindo! Mas porque é ouro?
-Porque é puro e brilhante.
- Ah! Mas ouro não é o meu fio?
-É Sofia é. Mas o sol também é. Outro ouro.
- Ah, já percebi paizinho. Há muitos ouros,
é?
- Sim, Sofia.
- O ouro da água, olha paizinho. O ouro
grande está entornar-se para o mar. Já viste? Também é ouro, não é?
-Claro que é Sofia. Vês como percebeste!
- Paizinho?!
-Sim?
-Porque é que a gente é tão pequenina?
-Pequenina?
-Sim paizinho. Olha é tudo grande, o sol, o
mar, as rochas…
-Ah, Sofia.
- Só tou a ver, só tou a olhar.
- Sofia, somos assim para podermos encaixar
nas belezas do mundo. Tal como os teus cubos do jogo. Percebeste?
-
Assim-assim. Mais ou menos.
-Sofia os teus cubos precisam de estar todos
no lugar certo para contarem a história não é?
-É…
- Pois então, nós também precisamos de
encaixar nos lugares para contarmos uma história
- Uma história? Qual? Conta!
-Sofia, o pai não te vai contar porque tu é
que a vais escrever e depois ler. Tens que crescer. É assim a história dos
grandes. Percebes?
-Hum… hum… mais ou menos. Vou pensar.
- Então pensa.
E daquelas palavras húmidas fez-se o seu
tesouro de memória. Ainda hoje abre o baú daquele verão e encontra sempre
alguma palavra que lhe dá alento para seguir em frente.
Em finais de Setembro, Sofia foi devolvida à
mãe. Lembra-se perfeitamente, lembra-se do ano 1962.
30 maio, 2012
Depois de Amanhã (IV)
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Recorda a noite de ontem.
Fora jantar fora com o marido. Nada mais
banal e todavia tão íntimo, tão aconchegante. Aquele silêncio cúmplice que os
une. Não são necessárias palavras, elas, por vezes, até quebram a harmonia.
Manuel o homem, companheiro, marido, pai e
amigo. Tanto numa só pessoa.
Mas ontem, enquanto jantavam e trocavam
vários monossílabos sobre a comida. Houve, a alturas tantas um olhar que a fez
pensar. Manuel olhou-a como se acusasse. Foi fugaz, mas esteve lá.
Sofia sabe que ele ama o filho, mas a
partilha da mulher substituída pela mãe, foi sempre algo que lhe causou algum
desconforto.
Não é um homem de grandes gestos ou palavras.
Simples, direto. O silêncio diz o que a boca não profere. Não sabe, ou não é
capaz. Uma cultura.
Mas no seu sentir monolítico, ela sabe onde
depositar a cabeça, o olhar e até as suas inseguranças. Ele está sempre ali a
seu lado. Não é janota e muito menos dandy. Não é blasé. É apenas ele, Manuel Monte,
o seu marido.
Apesar do seu modo simples é um sonhador, um
idealista, um quase puro. Acredita nas pessoas, nos gestos e até nos sorrisos.
Mais tarde, vem a ira, a raiva quando descobre que o boneco que em que confiou,
seu irmão, é mesmo de papelão podre.
Mas ontem quando lhe disse:
-Mas Sofia tens mesmo que ir? Não vais
desatar a correr para lá sempre que o Manel te telefonar a choramingar.
- Ó Manuel o nosso filho não choramingou,
apenas me pediu um pouco de ajuda. Afinal o nosso neto nasceu há bem pouco e a
Lena precisa de uma mãozinha.
-
Pois, será, mas não me convences. A tua nora não tem mãe?
-Claro que tem. A Alda já lá esteve durante
quase quinze dias. Agora é a nossa vez.
-A nossa? Tem lá santa paciência que nessa eu
não embarco. Vais tu, já que queres ir, e fica-te muito bem, mas minha querida,
mas não contes comigo.
- O quê? Então vou sozinha?
- Ah pois.
- E o que é que vais ficar a fazer, posso
saber?
- Ah essa agora. Tenho tanto que fazer! Vão
ser uns dias de férias conjugais tal como fazíamos ao princípio de casados,
lembraste?
- Ora se me lembro…e deixa-me que te diga,
que nunca gostei lá muito da ideia.
-Pois olha, sempre me pareceu que ias a gosto,
direitinha para casa dos teus pais. Tu mais o garoto.
- Manuel pensa bem, vem lá…
- Não e não. Estivemos lá quando o bebé
nasceu. Demos os nossos préstimos. Agora a vida é deles. Têm que aprender. Tu
também te desenvencilhaste sozinha, não desenvencilhaste? E eu também, que
remédio! Porque é que agora se dá esta protecção toda aos filhos? Eles não são
imbecis. Levamos uma quase vida a ensiná-los, a dar-lhes todo o tipo de
ferramentas, para serem autónomos, bem sucedidos, gente melhor do que nós e
continuamos com a mãozinha por cima e por baixo a segurar-lhes a vida? Olha, cá
por mim, não e não. Crescer, tem que se fazer em todas as direcções. Porém tu
és senhora e dona de ti, faz o que achares que deves fazer. Ponto final. Vamos
falar de outra coisa.
Embora ligeiramente crispada, Sofia sabia
que Manuel tinha toda a razão do mundo. Calou-se, não fez ondas. O silêncio por
vezes é a melhor forma de aquiescer. Mais de um quarto de século de casada, já lhe dera
os degraus para a cátedra do matrimónio.
…… ……………………………….
Sofia olha-se no espelho do seu quarto de
rapariga.
Gosta do que vê. O vestido comprido cor de
champanhe, corte simples mas elegante. O saiote faz-lhe o redondo das ancas. O
cabelo no seu brilho dourado suporta aquele véu de renda enorme. Na mão as suas
eternas rosas.
Casa-se hoje. Um dia especial. Percorre-a um
frenesim. Não é ansiedade, somente a antecipação do acontecimento.
Olha-se fixa e demoradamente no espelho oval,
a imagem não reflete os pensamentos. Interiormente sorri. E interroga-se:
Afinal é este o dia tão especial, o dia que desde garotinha ouviu falar? Uma
névoa breve tolda-lhe o olhar. Recompõe-se. Há que estar serena. Uma noiva
quer-se nimbada de luz. Os eternos clichés da sociedade. Mas enfim, encolhe os
ombros. Assim seja.
Debruça-se sobre a cómoda perscrutando a
imagem no espelho oval. Aqueles momentos a sós são preciosos. Em breve terá que
mergulhar na alegria do dia. Urge.
Deseja que termine. Sempre foi diferente.
Sabe que mastigar os momentos não os faz perdurar no arco-íris do relógio.
Depois, também sabe antecipadamente o que se passará. Sempre um pouco à frente
do hoje. Sofia apressada. Não, ela não é apressada, apenas o hoje, foi o ontem
dela, o amanhã, é o seu hoje. Naquela divisão de tempo o seu corpo senta-se,
porém o espírito inquieto flui. Nunca ninguém a percebeu. Habituou-se a viver
assim. E hoje, pese os seus anos ainda verdes, coabita lindamente com a
dicotomia. Chamam-lhe insatisfeita, nervosa. Nada disso. No entanto, nem sequer
perde tempo a explicar-se porque, sabe, não a compreenderiam, se calhar até
diriam que tinha alguma pancada…não fora em vão que caíra de um escadote bem
alto ainda pequeninita. Talvez fosse daí que lhe adviera esse desassossego de
tempo.
Mas hoje e era o seu dia. Sofia casava-se.
Apesar da liberdade que aqueles tempos continham, essa mesma liberdade acabava
por exigir um invólucro. Há vinte e muitos anos casar-se era uma quase obrigação.,
pelo menos no meio de onde provinha. Meio arreigado de preconceitos e normas. Aquela
necessidade do certinho que sempre a baralhou. A vida é um remoinho de folhas
de muitos tamanhos e cores., pelo menos para ela.
Desse dia, tem, sobretudo, a memória das
pessoas, da condescendência, do barulho, da norma, dos rostos felizes como se
todos se tivessem casado na mesma hora e com eles. Achava tudo um pouco
excessivo. Aliás as festas são excessivas mesmo que contidas. Porem é nelas que
o ser humano abre a torneira da satisfação. A necessidade grupal do
divertimento sempre a espantou.
Mas naquele dia, tão especial, Sofia sorriu
tão beatificamente que todos a acharam uma noiva feliz, tão feliz que até
estava linda. Outro dos seus grandes problemas foi perceber como o valor das
palavras se alteram de acordo com o estado de espírito e sobretudo se este for
coletivo.
Mas Sofia
cumpriu a sua parte com muita elegância e serenidade.
Manuel.
Bem, Manuel estava irreconhecível. Elegantíssimo,
todo a preceito no seu mais ínfimo detalhe. Também desempenhou o seu papel.
Mais tarde quando já estavam longe daquele reboliço, ele dissera-lhe:” Pronto,
já me sinto legal”.
Ainda hoje se interroga sobre o que ele quis
dizer, sabendo de antemão todas as reticências que ele tinha em relação ao
casamento religioso, a festas sociais. Ostentação dizia.
Porém naquele dia foi gloriosamente simpático.
Disseram dele: Uma jóia de rapaz!
Um prenúncio de outros dias.
Como o tempo se foi!
24 maio, 2012
Depois de Aamanhã ( III)
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……………………
Eram quase oito da noite quando o filho
nasceu. Sentiu alívio. Moveu a cabeça para o lado e viu-o no berço. Viu-o de
olhos oblíquos e papudos, cabelos quase alaranjados, de punhos cerrados e tão
pequenino. Destapou-o e olhou-o como se visse tudo pela primeira vez. E era a
primeira vez. Tocou levemente nas perninhas, no corpo. Percorreu o polegar pela
linha dos rostinho num toque infinito. Sentiu-lhe a macieza da carne e uma
força que a fez parar. Ora, impressão sua. Retomou o toque e parou nas
mãozinhas que teimavam em permanecer bem cerradas. Abriu-as e meticulosamente
estendeu-lhe os dedinhos. Perfeitos. As unhas arranhavam. E naquela intimidade
sem sons ele suspirou. Era seu. Viera dela. A sua criação. Tapou-o. Pensou.
Pensou na incerteza. Pensou em tudo. Sentiu-se dorida mas feliz. Levantou-se e
sorriu. A vida estava mesmo ali ao lado a desafiá-la. E ela aceitou o desafio.
Chamou-lhe Manuel, Manuel Maria, como o pai e
como ela.
O tempo voou. Ele cresceu, ela amadureceu.
Ele ficou homem, ela mais velha. Ele foi pai, ela avó.
O tempo sem tranca que varre a vida.
………………
Recorda os tempos de juventude. Enormes,
quentes e cheios de promessas. Eram felizes na crença do amor, da ilusão, dos
grandes cultos, dos enormes altruísmos, dos derrubar dos dogmas sociais, na
construção dos ideais. A sua geração fora assim. Ela fizera parte, tivera as
suas lutas, quebrara alguns tabus, sabe-se lá à custa de muita lágrima, zanga e
tantos outros dramazinhos familiares. A peça da sua geração chamava-se “Flower Power” e o seu mote era make love not war. Porém fora noutro
continente que a realidade do conceito se fizera, por aqui na velha Europa, e
sobretudo no Portugal dos anos setenta, nada fora tão simples ou melhor tão
radical. Um banho-maria como tantas outras mudanças. Um país sempre aquecido
entre dois tachos. As mentes ainda estavam alojadas no preconceito geracional. Os
que ousavam quebrar as convenções eram muito poucos, e pertencentes a um grupo
social de desafogo económico. Os chamados meninos do papá. Estes podiam
divergir, fugir, e ludibriar o sistema que o status quo cobria-os, tal como hoje ainda. À chamada
classe média, muito média, eram exigidos comportamentos padronizados e
sobretudo decoro, dito moral. Pobre daquele que ousasse quebrar a norma Hoje,
ao olhar para esses dias, um sorriso irónico tem que forçosamente mascarar os
lábios. Tão ridículo! No entanto na altura geraram-se conflitos familiares,
zangas e humilhações. Depois veio o vinte e cinco e ,rapidamente os costumes
mudaram. Tomou-se como natural o que até então era proibido. As massas ululam
ao sabor do vento, melhor as mentes mudam tal como o vento sopra. E se sopra
com força então a mente parece um cata-vento. Neste caso, bendito cata-vento,
diga-se. Houve muita mudança. Os cenários foram-se transmutando à medida que a
peça se plasmava aos costumes. Neste entretém teatral, as caras adquiriram
rugas, o espírito aquietou-se e alguns bolsos aviltaram-se. O idealismo virou
capitalismo, o amor comprou-se, vendeu-se e emporcalhou-se. E a geração dos
ideais metamorfoseou-se em peralvilhos de sebosas contas bancárias aqui, ali,
em idílicas offshores. Os charros passaram praticamente a ser um quase apanágio
de uma pseudo-elite intelectual que os usa diz, como fonte de inspiração. Uma
geração que sonhava sempre que respirava. Respira ,hoje, entrecortadamente a
ambição dos cifrões e do bem colocado. Não somos senão pavões eternamente
voltados para um jardim que já não existe.. As penas já são tão toscas que até
faz dó, pese o brilho da projecção.
Houve um desbragar de convenções, o caos,
diziam os mais velhos, então. E nós riamos, riamos porque o sentir era impune,
porque éramos jovens e heróis Havia o cheiro tremendo de sexo, mas também o
cheiro da vida. Era diferente. Era a libertação, a nudez da carne e da alma. O
despir total, o arrebatamento de comungar o corpo, vento e a terra. Os
primeiros ecologistas não assépticos. Sofia sorri abertamente. Tem orgulho de
pertencer ao grupo das cotas. É tão maravilhoso ser-se cota quando se tem um
mundo de cristais nas traves do espírito. Pertencer a uma geração de
descoberta, de aquisições, de luta.
Hoje torna-se doloroso verificar que os Senhores
do Mundo são, os que, então, foram seus parceiros de aventura naqueles anos
dourados. Como o poder corrói. Tudo é bem pior que o ácido, porque é mais lento
e persistente.
Levanta-se, alisa a saia, puxa a o cós do
Jersey, ajeita o cabelo e sente-se de novo jovem e atraente Uma hippie repleta
de alquimia do tempo.
Caminha mais segura. Não olha nem para a
esquerda nem para a direita. As memórias povoam-lhe o ecrã da mente.
A noite pisca-lhe matreira por entre uma meia-lua
sentada por cima da janela do comboio.
…………………………….
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22 maio, 2012
Depois de Amanhã (II)
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-Minha senhora o café vai ficar frio…
Encara o empregado que a olha perspicaz. Murmura:
-Oh desculpe, obrigada.
Pega na chávena e dirige-se para a mesinha
junto à janela. Senta-se, e devagar, saboreando, sorve o líquido.
Um olhar. A noite caiu. O comboio continua
seu o tricotar metálico. A noite será o seu tempo.
Olha em volta. Dois homens ainda jovens. Um
tem a cabeça descaída sobre o peito. Dormita. O outro lê o jornal. Infindável a
leitura de um jornal num comboio. O conteúdo dos artigos ultrapassa-se para
além da frase. É nas entrelinhas que se chegam às grandes conclusões, e dali se
extrapolam os conceitos.
Extrapolar. Imperceptível, é o sorriso, que
lhe aflora os lábios. Quantas vezes, ela ouviu, mesmo a seu lado, os sentidos
extrapolarem a razão? Tantas, o dia-a-dia feito multiplicação.
Do outro lado, duas jovens conversam animadamente.
Apura o ouvido, não por curiosidade, mas para ocupar o seu tempo. Escuta:
-Ó Sara deixei de o curtir. Pronto.
-Assim, de repente? Vocês andavam já há bué de
tempo.
-Sim, três meses. Atrofiei, sabes? Parti p'ra
outra.
-Hum. Percebo. Tá. Tudo na boa.
Desvia os sentidos para outro canto. Um casal
de velhotes ampara-se no trepidar do comboio entre duas sandes de pão branco e
mole e uns goles de um líquido qualquer. Trincam devagar, gostando. Os copos
são levantados em compasso. Bebem e voltam a poisá-los. Entre um acto e outro
entreolham-se sorrindo. Gozam o momento. A idade deu-lhes isso. Roubou-lhes a
juventude e presenteou-os com a singeleza. A troca dos anos. O velho ditado “ a
vida dá e tira” é tão acertado, pensa Sofia. Sente uma especial ternura e uma quase inveja pelo
casal de velhotes. Como chegaram até ali! Tantos anos…
………………
Naquela tarde, enquanto dava a segunda aula,
sentiu-se oprimida. Olhou para fora, pela janela mesmo ao lado da
secretária, as serras respiravam a tormenta. Estavam escuras e poderosas. O céu
pintara-se de cinzento pesado e mal se mexia, oprimido. Sofia entreabriu a janela,
porém o ar não limpou o seu sentir. A borrasca pressentia-se. Iria estalar a
qualquer momento. O suor pespontava-lhe a testa. Sentia no corpo aquele tempo
sem ar.
Caminhou pela ala entre as primeiras
carteiras enquanto debitava a matéria. Uma pergunta aqui e outra ali. E o ritmo
da aula girava. Mas aquela opressão continuava. Despiu o casaquito de algodão e
resolveu fazer uma pausa na explicação. Os cinco minutos de descanso que dava
aos alunos sempre que havia matéria nova. Conversa daqui, conversa dali, e
ei-los distendidos. Podia recomeçar. Recomeçou. Cansada olhou de soslaio para o
pulso onde os ponteiros pareciam colados. Não se mexiam. Alguma coisa ia
acontecer. Conhecia-se por demais para desprezar os sintomas. Aquela opressão
causava-lhe um certo atordoamento mental. Bom, o melhor era mesmo continuar a
aula. Não valia a pena antecipar-se. A ansiedade não lhe daria descanso.
Continuou no seu deambular explicativo,
enquanto os alunos se entretinham entre o conteúdo que escorregava por entre os
ouvidos, noutros casos era bebido pelas mentes, e noutros ainda era devolvido
intacto ao ar pesado da sala.
E o tempo decorreu. E a campainha tocou.
O tropel habitual aconteceu. Apanhou as suas
coisas, atirou o olhar habitual à sala, fechou a porta e caminhou. Na sala do primeiro
andar, onde todos os colegas se reuniam, pairava o calor abafado casado com o
som das vozes. Os professores falam alto. Muito. As vozes têm tendência a
tornarem-se estrídulas. Sofia sentia-se zonza, cada vez mais.
Agora era uma agonia vinda não do estômago,
mas de algures, que não sabia bem definir. Sentou-se.
-Sofia
estás bem? - Ouviu muito longe, a voz.
Quis dizer algo mas a língua estava presa, o
rosto também. Havia como que um força a tomá-la. E lhe tirava a clareza do dia,
embaciava-lhe o cérebro.
Sentiu-se mole. Terrivelmente mole.
Estava num sítio diferente, estranho, quase
diria esquisito. Estava separada. Ela aqui e a outra, ela também, mais além.
Duas pessoas e uma só. Conseguia sentir que a outra lhe pertencia, porém era
diferente. Cansou-se e fechou os olhos.
À medida que o tempo passava, a outra
vinha-se aproximando. Tão devagar que nem dava por isso. E o cansaço
desvanecia-se. Parecia que o torpor a ia deixando. Que o calor e a vibração
começavam a tomá-la.
Abriu os olhos três dias depois. Disseram-lhe
que tinha estado mais para lá do que para cá. Qual quê! Simplesmente adormecera
e deixara que o seu corpo flutuasse. Tão simplesmente. Estava debilitada, sentia-o
mas o seu cérebro funcionava. Foi retomando a posse dos seus sentidos. Sentia-se
quase normal. A vista não. Qualquer coisa não batia certo. Mas não se ia
preocupar agora que tinha acordado e via o mundo à sua volta com outras formas.
Esquisito. Mas as pessoas pareciam-lhe diferentes mais pequenas e sumidas.
Aquele ar de conquista, aquele brilho de vontade, o frenesim do ser ouvido
tinha-se evaporado. Afinal eram comuns. Tal como ela.
Sofia suspirou por entre os lençóis de barra
verde. Com a ponta dos dedos puxou-os para si. Tapou a boca. Os olhos orlados
de macerado, sobressaiam no rosto amarelado de doença, contudo a vida continuava
a espreitar.
Recuperou-se. O AVC deixara-lhe lapsos.
Lapsos de memória, de espaço e até de paciência. Os lapsos de Sofia. Lapsos que,
sub-repticiamente, aprendera a disfarçar com arte e estilo. Uma sobrevivente. Uma
mulher com sorte diziam-lhe.
Talvez sim, talvez não. Já depois, muito
depois quando pensava no caso, Sofia murmurava para si. Talvez sim, talvez não.
O mundo mudara. Ou fora antes ela que mudara?
Os pequenos muitos nadas que tanta importância dava nos dias antes, agora ao
remirá-los, causavam-lhe bocejos. Como as ninharias deixam de ter peso ,quando a
vida está em jogo. Um lugar-comum, aliás um pensamento banal, mas não somos
todos banais? Encolheu os ombros, era algo intrinsecamente seu, pertencia-lhe. Não,
não era displicência, nem um deixa andar, somente o seu trejeito, que dizia: Já
lá vai, mas voltará. A inevitabilidade que sempre a coabitara E foi com um
encolher de ombros que também se lançara na luta de cada dia. Lá no seu íntimo,
sabia que levaria a melhor, e assim de mansinho exterior, mas com a força
interior, atirou-se, e conseguiu.
Sofia venceu a batalha, agora a guerra?
Isso, não sabe, mas o que importa, e depois quem o sabe?
A sua vida em pequenas lutas. São os quadros
que a pintam.
E os pensamentos quais gotículas de cacimbo
deslizam pelo vestíbulo da noite. Não se sente velha como o reflexo teima em
apregoar. Aliás a sua cabeça é um baloiço de agilidade onde o pensamento se entrecruza
com a maturidade do raciocínio. Gosta dos seus cinquenta e oito anos e do
amanhã de todos os dias.
Uma mulher sem história ou uma história de
mulher? Abana ligeiramente o pescoço afastando as divagações que a visitam em
cada segundo. Não quer divagar, apenas pensar. Tem que delinear objectivamente
o seu trajecto. As horas deslizam velozmente à medida que o comboio avança. Amanhã
terá muito que fazer.
……………………
20 maio, 2012
Depois de Amanhã
Depois de Amanhã
- Sobe ofegantes os três degraus da carruagem. Já no interior respira fundo. Leva a mão à testa. Sente-a húmida. Adivinha o calor vermelho das faces. Pensa: “Devo estar um espanto. Maldita correria!” Senta-se junto à janela. Respira e descontrai. As malas estão além, bem à vista, porque nestas coisas é sempre bom ter estarem debaixo do olho. Não é que desconfie, é apenas por precaução. Olha em redor. Gente. Silêncio. Tudo dorme nos seus pensamentos. Humedece os lábios, respira fundo, olha para o exterior. O comboio ainda está na estação. Não percebe lá muito bem porquê, pois que já se ouviu o apito. Mas enfim. Cruza a perna e pega no livro. Um pouco de leitura faz passar o tempo, e depois já anda enrolada no livro já vai para quase um mês. Não é falta de vontade é, sim, falta de tempo, bem não será mesmo assim, é antes uma falta de motivação como se usa por estes dias, para ela chama-se interesse. Mas toda a gente parece falar da obra mais do autor M. L. A crítica é excelente. Uma escrita objectiva, desnudada de artifícios. O sentir carnal da vida em emoção. Tem tentado, mas não sabe muito bem o que se passa, aborrece-a. Uma vez mais a norma trai-a. C’os diabos porque a sua opinião difere sempre. Uma questão que nunca entendeu. Enfim. - “ Bah, - pensa Sofia lá estou eu outra vez a divagar…bem vou-me concentrar no livro.” O comboio arranca, deslizando no seu tricotar oleado. Aquele som embala-a. O livro adormece aberto. O olhar prende-se à paisagem que desfila apressada como se estivesse em hora de ponta. Uma correria de árvores, campos, verde e castanho borboleteado de branco e tijolo. Baixa os olhos cansados pela rapidez da imagem. Volta a poisá-los nas páginas do livro. De inicio a massa preta das letras são confusas. Depois, devagarinho, o sentido de cada palavra apossa-se-lhe do cérebro e deixa-se conduzir pela escrita. Pisca o castanho dos olhos ao lusco-fusco que vem da janela. Sente vontade de se espreguiçar e furtivamente olha em redor. A carruagem continua adormecida. Sofia estende os braços empinando o peito. Um suspiro. Fecha o livro. Levanta-se e olha o relógio. Quase sete horas. “Vou tomar qualquer coisa lá no bar. Um cafezinho sabia mesmo a matar.” Pega na bolsa ajeita a sai justa, estica suavemente o jersey vermelho, depois maquinalmente os dedos embrenham-se nos cabelos soltos. Crê-se alinhada, afivela um sorriso e num passo elástico, se bem que cambaleante devido ao trepidar do comboio, dirige-se para o bar. Enquanto caminha, vai olhando de soslaio para os rostos que dormitam, lêem, ou simplesmente se mantêm imóveis, quem sabe, se fazendo contas, ou simplesmente delineando estratégias. Aqui uma jovem de headphones meneia a cabeça ao som do seu MP4. Os lábios mexem-se mudos enquanto os olhos bem abertos bebem o som que os ouvidos entornam. Na entrada da carruagem, um homem fala ansioso ao telemóvel. Fala e olha o relógio. Gesticula com a mão livre, a justificar as palavras. Fica para trás. Abre com rangido a porta da segunda carruagem. Quase deserta. Um casalinho de jovens mastiga os beijos mais as carícias, numa rapidez aguada. Desvia o olhar por educação. Continua o seu passo. De novo outra passagem. Abre a porta. Estes passadiços fazem-lhe lembrar as entradas e saídas da sua vida. ………………….
- Havia no ar um qualquer cheiro quente que engolia a vontade de fazer o que quer que fosse. Era Agosto. Os primeiros dias, os que vestem a moleza. As cigarras mais as rãs ralavam o Estio nas margens suadas do ribeiro. Deitada na erva húmida, de olhos bem abertos observava a dança dos andorinhões que se atreviam no azul do céu, ali mesmo adiante da velha casa. O chilrear feliz das crias em voo inseguro, faziam-na suspirar. Estava de férias. Estava ali. Era o tempo das ameixas suculentas, dos abrunhos melosos, do trigo cortado, do corpo a crescer e daquela sonolência quase feliz dos dias iguais. Quase. Porque foi nesse verão que os pais se separaram. No princípio não notou nada. Estava com os avós. Era ali o poiso das férias. Era mais uma dos cinco netos. Uma felicidade feita de barulhos, correrias, saltos, cambalhotas, risos e geleias. Não sabe bem porquê, mas o verão, ainda hoje lhe sabe a geleia de marmelo. Por essa altura ainda estavam bem pequenos nas árvores, mas os potes da dispensa eram luzidios de tampa bem amarela e com rótulos de papel. Diziam:“Geleia de Marmelo”. Avó escrevera-os, naquela letra cheia de pressa, de quem tem mil e uma coisas a fazer, e pouca paciência para os pormenores. A avó cinzenta. A cor do cabelo, e dos olhos. Uns olhos grandes, casados com a ironia. Havia naquele olhar uma provocação à vida. Os gestos estavam, recorda, sempre divorciados do olhar. Não era doce avó, nada tinha a ver as memórias das avozinhas. Não, a avó era prática quase agreste. Na boca fina um trejeito quase doce mas por demais rápido para não pegar, e um incomensurável brilho nos olhos cinzentos que lhe faziam o adorno do rosto. Eram os olhos, o mundo do seu corpo. Tinham a força, a meiguice e toda a ironia. Aquela ironia viva, que parecia zombar das gentes e dos costumes mas que afinal era de si que motejava. A avó que os despachava sem grandes delongas, que os queria em ordem à hora das refeições, que lhes puxava os lençóis engomados e lhes lavava as faces com força, ou ainda que os esfregava como se fossem as panelas da sua bendita cozinha, mas que calçava os gatos com os sabugos das árvores e colocava laços no pescoço das gatas. Eram muitos no casarão. Ela ainda hoje se retrai sempre que um gato se aproxima. Não gosta mesmo dos bichos. Nesse verão, uma vez mais foi para os avós, para a casa grande. O pai e a mãe foram lá pô-la depois da praia. Era o costume. Todos os anos o tempo das ameixas chegava depois do tempo dos búzios. E naquele ano, tudo se cumpriu como o tempo, ou melhor tudo se desmoronou. No inicio não percebeu nada, também nada lhe foi dito. Nem reparou no pigarrear do avô, nem nas falinhas baixas da avó mais da Maria, a velha criada. Em nada. Estava tão ocupada em brincar com os primos, apanhar as rãs, mergulhar no ribeiro, a andar de burro, a escorregar pelo monte abaixo e comer abrunhos! A mãe apareceu sozinha. Vinha enfiada naqueles seus óculos escuros tão modernos, lenço em volta do cabelo e vestida de forma irrepreensível como era hábito. Também aí não desconfiou. Perguntou pelo pai e a mãe respondeu. -O teu pai, Sofia está a trabalhar. Claro está, que uma garota de sete anos não desconfia, sobretudo quando se lhe dá uma resposta tão plausível, e ainda por cima, dita com toda a serenidade do mundo. E a mãe ficou pela casa dos avós. Arrastou-se entre o terraço e o quarto, sempre às voltas com uns livros, revistas ou algo do género. Uma vez por outra descia ao café da aldeia, e displicente lá tomava um cafezito com as outrora companheiras de folguedo cuja aparência se mediam em proporção à prole que apresentavam. E as férias acabaram. E o pai nunca veio. Foi no regresso, quando chegou a casa que a mãe lhe disse: -Sofia, o pai vai estar fora muito tempo. Vamos ficar tu e eu, só. -Ó mãezinha mas o paizinho vem, não vem? Quando vai vir? Não podemos ir ter com ele? -Sofia o pai vai estar fora, já te disse. E pronto. As lágrimas assomaram mas rapidamente foram engolidas. Era assim. O tempo das perguntas caladas. …………………… . .
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