Miséria Redonda, desgrenhada, Maria espreita na soleira da porta. Na anca, dez réis de gente olham por entre as melenas sujas. No rostinho, os regos das lágrimas, semeiam as manchas de porcaria. O ranho seco espalha-se entre o lábio e o narizito. Os olhos, esses, redondos e negros possuem a flor do mundo.
Maria Mãe.
Do lado de fora, Toninhe senta-se no tijolo de cimento, que lhe serve de cadeira. Coça a cabeça de cabelos pardos eriçados. A comichão desatina-o. Todo o santo dia, aquela coceira de cima para baixo a apertar-lhe as ideias. Espreita por entre as coxas magras. Fecha um olho. As formigas fazem carreiro. Sortudas arrastam as migalhas. Ele a vê-las, e a barriga a roncar o vazio. Molha os lábios. Coça a cabeça.
Pega no graveto caído na terra e atiça -as no carreiro. Elas zonzas desalinham-se. Logo, porém, retomam o percurso e, direitinhas seguem na fila indiana. Formigas rabigas.
Engole a saliva que lhe inunda a boca. Fome molhada. Maldição!
Puta de vida.
Ai, que o dia ainda vai a meio! O melhor é mesmo deixar as formigas e ir até ao quintal do outro lado. Os figos já pingam, os cachos estão maduros, e as maçãs pesam nas árvores. Tem que comer. Aquele rugido das tripas está a deixá-lo enjoado.
Levanta-se ágil.
O corpo é magro de um moreno mate, bordado de porcaria, está vestido de calções largos, sem cor, presos na cintura por um botão partido, mais de uma t-shirt feita de rasgões encaracolados. Os pés dançam descalços na terra cinzenta. As pernas morenas e baças tremelicam de fome. Está calor.
Uns dedos magros emaranham-se na nuvem crespa de cabelos baços. Coça e coça. Suspira. Danada a coceira, que já lhe pica o pescoço.
Deita o olhar para cima.
Aquele olhar fundo de mundo e aguado de miséria. Olhos que viram mais do que viveram. Olhar de adulto com olhos de menino.
Um olhar, um passo, um assobio, um trejeito. Um ronco.
Maldita fome!
Na soleira da porta, a mãe e a menina esfregam o calor do dia nos corpos balofos. Luz-lhe a pele de esticada. Rebola que roda a anca da mãe, quando muda a menina para o outro lado. Uma onda de carne vazia. A mãe, redonda, de olhos tristes e boca desdentada. A mãe que geme à noite quando o homem vem, e, que chora de manhã quando acorda. A mãe, que ergue os punhos no ar, escancara a boca e grita para dentro. A mãe que o sova e logo o aperta ao peito. A mãe que fala mal e cospe dor. A mãe, a sua.
Não sabe bem se ama, se a odeia. Não sabe, não.
Sabe que a miséria não mora ao lado, vive ali mesmo dentro deles.
Tem a forma de homem quando resfolga na cama da mãe, tem o jeito de fome quando as tripas gritam, tem a dor da diferença. Tem a cor da desgraça e a luz do ontem. A miséria é mesmo assim, um nada de tudo ou todo de nada.
Abre a mão. Vazia.
A menina chora e a mãe embala-a. Mas a fome não tem movimento. A mãe senta-se no tijolo. Tira a mama, aperta-a. Espreme. O leite é pouco. Apenas um breve esguicho. O mamilo na boca da menina enche-a. Só isso.
Logo o choro rebenta. Sentido.
A fome toma-a mais o engano.
Toninhe encontra o olhar da mãe. Súplica. Dor. Raiva. Ódio. Baixa os seus.
Sente aquele tremor por dentro. Sente a sua solidão de criança. Sente as algemas da miséria.
Num impulso desata a correr. Corre, corre, e corre. Não pensa, não sente. As pernas levam-no mais além, sempre ágeis, sem prisão, sem dor. Toninhe é livre!
Fugaz sentir.
O coração explode no peito. Cresceu mais do que a fome. O coração aquece-lhe o corpo. Amacia-lhe o sentir.
Toninhe tem a boca seca. Toninhe não respira. Toninhe tem o mundo nos olhos.
Chegou a casa.
A fome, a raiva, a diferença perderam-se na estrada.
Aqui a alma veste-se de Amor.
Vocalise by Rachmaninov - Rachmaninov