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"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
09 março, 2009
03 março, 2009
Cadeirões
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CADEIRÕES
Três cadeirões. Três. Três madeiras diferentes. Três estofos distintos. Três estilos. Nogueira, Carvalho e Faia. Algodão, Cabedal e Courtisane. Sentam-se desencontrados. As pernas revelam-se, escondem-se, ou ignoram-se consoante o design. A postura é altaneira. Estão irrepreensíveis. Têm o ar da compostura necessária à hierarquia que sentam. O padrão resvala do florido pastel, para o branco intemporal, mas frio. Em permeio fica o castanho robusto da pele. Gretas de idade assomam-lhe nas esquinas. São peças diferentes sentadas no soalho polido de uma sala, algures, numa casa sem paredes.
A de Nogueira, mais antiga, sólida, de recorte elegante e traço simples, revela os nós do tempo no pedaço redondo de madeira polido que lhe serve de braço, e, nas pernas recurvadas que poisam no soalho. O vigor senta-se em ângulos quase redondos, devassando a amenidade dos anos. Tem história esta cadeira, tem experiência, tem alma. Ao lado, mas numa posição quase de costas, senta-se a de couro. É a maior, a mais imponente. Não necessita de grandes adjectivos, a sua solidez fala por si. Pode ter um pouco de sebo, frestas e manchas. Pode ter tudo isso, mas é o cadeirão. É o género.
No outro lado, à direita, fremente nas linhas minimalistas, pese a solidez da forma, senta-se a Faia vestida de Courtisane branco. Quem entra, vê-a primeiro. A sua luminosidade cativa. O ranger melodioso das suas molas conta poucos anos. O uso ainda não a adoçou.
Três cadeiras. Três estilos.
Cabedal, Courtisane e Algodão.
Três formas, três padrões. Três estofos. Um trio dissidente na percepção estética. Um arranhar de policromia, mais, um risco fundo na harmonia da sala sem paredes. Um feixe de luz atravessa a janela e vem adormecer no soalho frio, espevitando as cadeiras que silenciosas carpiam os seus pensamentos ou entretinham as suas estratégias.
O cadeirão de algodão florido, aquele, o mais idoso e macio, suspirou, afastou as pregas da sua saia, que lhe tapavam as pernas, e murmurou:
- Amanhã vai chover, sinto-o nas molas!
-Pois é, os anos, os anos, não perdoam… já são muitos, responde-lhe o cadeirão de cabedal, acrescentando um meio-sorriso às palavras que veste sempre de ironia.
-Pois será.
O silêncio desce de novo. No entardecer dolente ,o cadeirão de nogueira florida semi-cerra as flores ,e recolhe-se ao seu silêncio. O cadeirão de cabedal permanece alerta, mas revestido da sua bonomia de macho. Relança um olhar, e, contente de si, semicerra, também, as pálpebras. Uma modorra prazenteira senta-o descansadamente. A certeza do aleatório crepita no recôndito das entranhas. Gosta de vestir a sua importância ,pese a insegurança ,que o envolve. Uma capa que lhe cobre as entranhas dando-lhe um ar que não possui. A forma em contradição com a essência. A estruturação do desestruturado.
Rapidamente num esgar de tempo, a Faia desfia um rosário de considerandos ao tempo, ao dia, à vida. Quase um muro de reclamações na primeira pessoa. Depois recolhe-se, de novo, na importância do seu estofo de Courtisane. Fervilham-lhe as ideias que pensa serem únicas, acertadas, maduras. A sua sabedoria carece de anos, tal como o seu estofo carece de uso.
O silêncio desce dando as mãos à penumbra. Vão sentar-se nos cadeirões mais velhos.
Logo a noite cairá ,e os fantasmas do ontem, das palavras por dizer, se aninharão por entre os espaços soltos. Depois o vento virá deitar-se nos estofos ciciando a história inerte dos dias. Tudo acabará por adormecer na paz doente do tempo.
Outrora, aquele espaço possuiu paredes, janelas e risos. Resmungos, arquejos, choros e silêncios. Outrora fora casa. Casa de argamassa, alvenaria e alma. Uma casa igual a tantas outras ,perdida numa cidade ,algures no mundo. Os inquilinos tinham sido gente. Gente viva e não esquissos retocados em poses de bem-estar.
Porém, um dia a casa fechou. Despiu-se.
Os anos comeram-lhe as entranhas. As raízes invadiram os vidros, engoliram-nos e avançaram. Avançaram.
A casa pereceu e o seu espírito também. Apenas restaram os cadeirões. Epitáfios perdidos de outras vidas, consciências escondidas da verdade. No seu recôndito guardaram as memórias dos tempos felizes.
Quando eram sentados, amassados ou repuxados sob o peso dos corpos que os sentavam. Quando no trejeito das palavras ouviam a história da vida que por ali corria. Era, então, o tempo do semear. Semeava-se o sorriso por entre os sulcos do sentir. Era assim naqueles dias.
Chorava-se quando morria alguém ,ou simplesmente ,quando um cisco de dor magoava as pupilas. Quando as crianças se arranhavam, zangavam ou gritavam, o ar compunha-se em chuvadas de palavras. Era assim o tempo de então.
Depois, depois ,as vozes foram amaciando ou engrossando. Foram partindo. Partindo.
Os cadeirões descansaram. O piano calou-se. As conversas fugiram.
O silêncio tal como o vento tomaram conta da casa. Mais tarde ,foi tempo da tristeza , das caixas pesadas, dos olhares sem luz, das olheiras roxas. O adeus.
E a casa ficou mais vazia.
E os cadeirões foram ficando. Imutáveis na forma, carpindo o tempo, procurando um lugar na ribalta dos dias. A dança da vida parou, calou-se. O espaço é agora total, o desígnio inexistente.
E o estribilho do vento, qual melodia inacabada do tempo sibila por entre os espaços vazios de memória. A crueza do vazio, a falácia da harmonia numa sala vazia de paredes.
O Mio Babbino Caro From "Gianni Schicci" - Jeanne Newhall.
01 março, 2009
25 fevereiro, 2009
LAGASH
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Lagash
Deitada no beliche do seu camarote, Lagash embala-se no som do vento, que lá fora abocanha o estribilho do tempo. A oscilação do navio torna-a sonolenta. As águas do oceano cinzentas de tédio cospem a sua saliva no vidro da vigia. A agonia, que a veste por dentro, contrasta soberbamente com o seu aspecto. Para trás ficaram as ruínas do seu mundo imersas no soberano desdém dos interesses.
Pela retina dos seus olhos cansados passam, em câmara lenta, as imagens dos últimos dias, quando os ares cuspiam o fogo do ódio. Ódio feito em ambição de irmãos.
Lagash soergue-se, passa os dedos pela massa pendente de cabelos negros espalhados em seu redor, e, pestaneja à visão dilacerada, que teima em permanecer dentro de si. Aquele vulto abocanhando a terra de pernas retorcidas e mãos enclavinhadas no ar que lhe acabou, o outro de olhos vítreos e rosto retorcido, um outro encolhido pela dor da bala recolhida na sua carne, aqueloutro de boca escancarada, olhar perdido no amanhã que não veio. O vermelho do sangue empapando o cinzento do quadro. A cor que escorre da tela por excesso. As cores da sua terra, todas em excesso de vermelho, cinzento, negro e raiva.
O crivo das paredes, os esqueletos de ferro retorcidos, o pó, a cal, a argamassa esboroada, o cheiro de pólvora, o suor liquefeito em rancor, os olhares baixos, cravados na terra árida de vontade e amor. O vento quente que crepita nas ruas faz crer que a vida se esconde por ali, algures. Na esquina perdida de um pneu, no olhar ferido da criança, na burka negra que corre ziguezagueando na busca do alimento ou talvez, quem sabe do corpo caído no asfalto estilhaçado.
E a memória pulula, gira, envolve, amarga, fervilha.
As mãos que se enclavinham, as unhas que rasgam, a dor que mitiga a memória.
Lagash rebola o corpo no beliche, puxa da almofada e esconde o rosto. A memória recrudesce em tons mais ácidos. O marido e a filha mortos. Cá fora perto da palmeira do quintal. Um míssil. Uma explosão. Fumo e cheiro de carne queimada, sangue. Pedaços da sua carne espalhados aqui e além. O horror, a ânsia, a dor. Sentir que as suas entranhas foram rasgadas, sentir, que a sua alma foi roubada, sentir, o nojo, o vómito de estar viva, sentir, o quebrar da vontade, o uivar da mente. Tudo isso. Ajoelhada na terra, bebe o pó enxofrado da morte, grita o horror da insídia dos homens, daqueles que se alvitram seus irmãos. Um irmão não mata, não rouba, não rasga. Um irmão ampara.
Sacode-se. Toda.
Não sorri. Levanta-se e maquinalmente puxa pelo xaile e cobre os ombros magros. Encosta-se à vigia e contempla o mar. Na vasteza do horizonte os seus fantasmas diluem-se. O azul cinzento mergulhado lá ao longe por entre uns raios desmaiados de sol acordam-na para a sua situação real.
É uma refugiada. Política, assim definida.
Lagash.
O nome, a terra, o rio, o Tigre, leito do mundo e cópula da humanidade. Aos milénios de vida sobrepõem-se, agora, os segundos de morte. A sua terra de onde lhe vem o nome. O seu destino parou aqui. O resto, o resto é a sombra de si, da sua alma partida.
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Londres
O ritmo alucinante do jornal torna-os quase histéricas de prazer. As notícias que povoam os teclados e monitores, os telefones que ressoam ininterruptos, conferem aquele ar desarrumado mas fervilhante. No seu gabinete envidraçado, James deita o olhar sobre a redacção. Conhece-os a todos. Os bons, os aspirantes e os trepadores. Cada um a seu género. Mas no final a equipa é soberba.
Aqui conta-se o mundo, jogam-se os destinos, constroem-se os mitos e arrasam-se os conceitos. Todavia, momentos há, em que também se edificam as boas vontades e se vendem as histórias de vida, mas pouco. O bom não é vendável, a miséria é ávida em pormenores, qual fiel de tempos e vidas em desequilíbrio.
Hoje, ele, James Previl, tem uma reportagem fabulosa. Uma sobrevivente, uma mulher. Lagash Mashhadani, a irmã de Tayseer al Mashhadani, a líder dos sunitas feita refém, e posteriormente libertada. Lagash é notícia. Tem a equipa de reportagem pronta para recebê-la em Heathrow, depois de amanhã.
Lagash será a protagonista de uma série de crónicas sobre a verdade do Iraque. James, pese os seus sessenta anos sente-se ligeiramente excitado pelo impacto que prevê ir alcançar, e, sobretudo pelo aumento previsível de vendas Uma mais -valia.
Não é implacável nem desumano. Não fora ele, outro, seria. O clima de luta pelos objectivos lucrativos torna as pessoas metodicamente especulativas. Ele não é diferente, tem um lugar cobiçado a defender.
Esfrega as mãos e levanta-se. Cá em baixo em Fleet street a vida move-se inexorável. O corrupio das horas, dos passos, dos olhares, esgares e sorrisos dão o tom à sua cidade. Londres merece o esforço, merece a notícia.
Dois dias. As folhas riscadas de negro serão manuseados por milhares. A vaidade fá-lo opado. O rosado da face balofa rebrilha a par do cinzento dos olhos. Um fulgor de vitória que trinca antecipadamente.
Senta-se na sua cadeira, gira embalando-se, um sorriso de beatitude cai-lhe do rosto. Fecha as pálpebras, cruza os braços unidos as pontas dos dedos. O sono doce alastra-o. E ela vem, o seu rosto, a sua mágoa, a sua história. A pessoa. Ela que lhe crava o dedo na carne, dilacerando-o. Aquele olhar de censura e ódio também. Acorda. Volve o olhar pelo cubículo. Ninguém, não podia ser. Mais uma comédia de enganos vestida de Morfeu. Puro engano!
James Previl predador de desgraças, gente do mundo encolhe os ombros e esfrega as mãos.
Somente dois dias. Uma pequena espera.
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Lagash.
Novo agitar, outra sacudidela, outro frémito expandido.
Abre a porta e sobe até ao deck. O vento fustiga-lhe o rosto e o corpo. O mar revolto ondula em vagas que a fazem baloiçar. Enfrenta-o. Crepita de fúria. As vagas criam berços cobertos de lençóis de espuma. A chuva batida, vinda sabe-se lá de onde ensopa-a. Agarra-se. Bebe a água, e o sal, e o vento, e o dia.
Bebe. Bebe fundo, bem fundo. Como se lhe purificasse as entranhas em chaga. Sente um ardume, uma dor fina que se alastra que a envolve. Está viva! A sua maldição.
Esperam-na do outro lado. Sabe que a esperam. Sabe as regras do jogo que vai jogar. Sabe que tem a vida por um fio. Sabe o risco. Valerá a pena? Não teme porque nada tem. É livre de razão e coração.
Fica ali, parada em silhueta ondulante ao sabor do mar. A noite cai. O negro cobre-a. Mais um véu, de tantos que a vida a macerou. Porém, este agiganta-se na sua vontade, envolve-a no precipício do tempo. Um gesto, só um. Ei-la. Ali, vogando entre o céu e o mar, no rasto da liberdade, no amanhã renascido.
les feuilles mortes - nana mouskouri
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22 fevereiro, 2009
19 fevereiro, 2009
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.