Quem sou eu

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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

30 abril, 2008

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“Era uma vez um rapaz que tinha medo do mar. Essa fobia não espantava ninguém e raramente lhe traia mais que embaraços e dissabores. Aquele que verdadeiramente causava espanto a todos os que tinham a sorte de poder entrar no seu refúgio mais valioso, era o vizinho da frente, um rapaz calmo que tinha o nome singelo de João e um sobrenome polaco, que as pessoas pronunciavam de três maneiras, todas elas muito distantes da pronúncia dos seus antepassados, bisavós dos seus avós, em Varsóvia.

Aqueles que tinham mais receio de mostrar alguma ponta de ignorância, mesmo tratando-se de um sobrenome polaco quase impossível de pronunciar por não-polacos, optavam por chamar-lhe apenas João, revelando uma falsa familiaridade. João era um rapaz de óculos e borbulhas muito vivas que só por si não espantava ninguém. Aquilo que realmente surpreendia e emocionava alguns dos poucos privilegiados era a sua colecção de selos. As paredes do quarto do João estavam cobertas, desde o chão ao tecto, por álbuns de selos. Sob a cama, havia álbuns de selos. Na gaveta e em todo o interior da mesinha-de-cabeceira, uma pilha de álbuns de selos. Mais do que uma simples arrumação por países, valores e datas, João passava tardes, passava a sua vida inteira, a encontrar formas de organização, absolutas e precisas, que não se baseavam em números, mas em elementos muito concretos, como a intuição ou a beleza. “

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José Luís Peixoto; Contos que Contam, O rapaz que tinha medo do mar

22 abril, 2008




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Era uma vez…

Houve um dia, não era frio, não era chuvoso, nem enevoado, nem maculado. Era um dia, de que mês? Não sei, mas também não importa. Houve um dia em que senti o frio do norte, o vento do mar, e o cincelo da terra. Olhei pela janela e vi esboços tornados gente, pintados das cores da vida. Gente do meu povo que se movia ao ritmo do tempo. Nesse dia sonhei assim:

Era uma vez…

Uma padeira que cozia pão, um velho que procurava a sua ovelha, um pescador e o mar… Criaturas arrancadas à terra, ao barro vermelho da vida, às águas sal do mundo. Moldadas em mãos artesanais de arte sapiente. Entes ásperos como as suas vidas. Temperados com vento, chuva, xisto, sal e água.

Assim um dia aconteceu, que a padeira Júlia foi vender o seu pão pelas terras socalcadas onde o rio beija as contas negras e brancas, e a meio caminho encontrou um velho que se apoiava no cajado velho e sábio no deambular por entre montes. Gente afim cinzelada no granito da vida dorida, amarrados na luta porfiada do amanhã ainda por despontar. Conversaram naqueles monossílabos ásperos que tudo contam e nada dizem mas que a idade entende, a idade mais os sulcos do saber vivido. Assim Júlia e Chico Balido olham-se no caminho percorrido das suas vidas. O sorriso é lento, molengo de áspero, o não hábito, entorpece o esgar. O suor perla-lhes as fontes, não pelo tempo, mas antes pelo esforço de estarem vivos. Passo aqui, passo além vão desfilando as terras agrestes onde o vento silva no redondo de cada esquina. Na paisagem em socalco, por riba um pequeno casebre vomita suspiros de fumo cinzento. Amorna o céu de azul cinzento. Há vida ali. Há calor também. Sem palavras sobem a ladeira íngreme que os leva ao casebre de xisto grosseiro. O interior está vazio, parece-lhes. No canto crepita o toro de madeira. As cinzas espalham-se pelo lar. Parece ter sido acesa já faz tempo. O ar tem aquele cheiro a fumo quente. Sabe bem quando se entra mas depois entorpece. Olham em redor, estranhados do silêncio. Gritam: “Ó de casa!”O som saído das suas gargantas é o único que se evola. Nada.”Estranho”, pensam. Decidida Júlia Papas percorre o casebre. Sai, dá-lhe a volta. Nada. Vazio. Põe a mão em pala sobre os cansados olhos de lince e perscruta o redor. Só o vento assobia. Lá adiante as velhas oliveiras, depois os regos de vinhedo, agitam-se dolentes de carregadas. Ainda não pintaram. Mas não há vivalma por perto, parece-lhe. Nada satisfeita volta a entrar no casebre e diz pró Chico Balido: “-Vou inté ali pra ver, aqui há cousa…na gosto disto. Vomecê assente-se e vá espevitando os cavacos.”

-Ó mulher, ê também vou. Na tem jeito vomecê ir í por baixo, sozinha.

-Atão venha daí.

Em passos desengonçados de apressados deitam-se ao xisto da terra. Os pés pisam -na e o bafo enrola-se no ar de acordo com o ofegar. Já estão no meio do vinhedo. Não há sinal de vida. Mais abaixo o nevoeiro esconde os bardos. Enfrentam-no, ela de queixo resoluto, ele de cajado apontado. Lado a lado como se fossem crianças na procura do amanhã. Júlia Papas pára de repente, puxa o cotovelo do Chico e muda aponta. De bruços sobre a terra gelada, em abandono solitário, de punhos cerrados, está o Manel das Hortas. Velho e morto. Abocanha a terra que o viu nascer e crescer na gaiatice dos anos passados. Frio, gelado e hirto morde a terra mãe que o viu madurar no girar dos anos. A morte abotoou-o quando ele se vestia da lida do dia.

Júlia e Chico benzem-se. Os lábios despem-se de sons, no olhar lêem-se as palavras que não precisam de ser roladas. Entendem-se assim. A dor é fria. Estremece-lhes a alma, arrepanha-lhes os cabelos e torna-os hirtos de sentir. Os olhos já pequenos de idade vertem grandes bagas de água. A sorte do seu amanhã está ali, pendurada aos seus pés. Entranha-se o cheiro e quase os repuxa também. Amedrontados, recuam. Não, pelo pobre Manel das Hortas, mas por eles. Acanalhados voltam-lhes as costas e dão um passo em frente, mas… oh, não … a consciência impera. Prática, Júlia diz: “-Ó Manel fica aqui, que eu vou lá acima avisar. Fica tu com ele, que eu sou mais rápida a andar, tu sabes…” E sem tropeções correu lesta socalco acima. Ofegante chegou à praça, deu a notícia, correu a casa do padre, benzeu-se e depois sentou-se no banco da entrada. Tremeu-lhe o queixo, mais o corpo. Gemeu-lhe o peito mais o coração. Soluçou-lhe a alma. Choraram-lhe os olhos gastos e carpiu finalmente o finado.

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Vergado ao vai e vem dos remos que cortam as águas de ondas cavadas, o Ti Jão deixa-se embalar no vogar líquido do seu mundo vestido de musselina azul-verde. A faina terminou. Mais um dia de sol, sal e água. Vem sozinho, o seu barquito de madeira húmida vestido de cores alegres contrasta com a cor do seu sentir. O seu perene vazio de solidão.

Fora no dia de hoje já lá vai seis invernos, naquela madrugada escura pespontada de laivos amarelos quais folículos de um sol feito alvorejar. O vento sibilava nas águas tornando-as zangadas de movimento. Os gritos vertidos em espuma erguiam-se gigantes sob a esteira da traineira. Chamara pelo seu Miguel um ror de vezes. O filho, teimoso de nascença, denodado de querença e porfiado de vontade, achara que as redes estavam cheias. Elas estavam, era verdade. Mas naquela luta de água, vento e vaga, o mar levou a melhor e roubou-lho. Chamou-o. Lançou-lhe a bóia, pediu auxílio. Nada. O mar é voraz. Suga a gente como resposta ao roubo das suas entranhas. O mar dá, mas o mar tira. Há amor no seu marulhar cantado ou ódio no seu crispar de vagas em crista de espuma.

Fora assim. Levara-o ao seu Miguel. Pelo rosto gretado escorrem duas pedras líquidas de sal, duas lágrimas doridas de amor perdido. Não grita, os velhos não rugem. Os velhos soluçam por dentro desfazendo o coração em tiras de sangue, amassam a alma em névoas estranguladas de dor, uivam nas entranhas ocas de um sentir da carne perdido, mas os velhos não gritam ao ar em sons agudos nem flamantes. Os velhos, os homens, as mulheres sentidas albergam-se na concha matriz de um dia. Essa matriz seca, árida que um dia fora fruto. O fruto feito filho. O seu Miguel. Tinham-lhe amputado a vida, a sua vida. Hoje era somente o reflexo, enternecido na presença dos netos, os filhos do seu filho. Recorda, recorda, cada dia após a morte. Soam-lhe os gritos da nora, a solidão da traineira, o finar da sua Lina. Memórias de um tempo. Rajadas negras que o tinham açoitado impiedosamente. O seu rosto era quadro presente dos sulcos vergastados na alma. A pele era apenas a capa da sua dor interior. Fremente, avassaladora, corrosiva, lancinante, aberta qual chaga infectada. A dor de um pai. Gritar? Carpir? Não! Chora-se sempre o silêncio da ausência quando a nudez do sentir lateja o corpo coarctado.

Quando em cada madrugada crispada de ódio azul e espumada de saliva cuspida, ele e o seu barquito, vogavam acima e abaixo, ele Ti Jão, sentia aquela suave melopeia do mar, aquele marulhar de águas que lhe contava as novas do seu menino. Larga os remos e em jeito faceiro de criança acena ao mar e ao seu menino-homem.

Assim termina o conto da minha gente, gente simples, gente viva do meu povo sentido.


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20 abril, 2008

Lea Salonga - Don't Cry For Me Argentina (Evita) Live


[Eva:]
It won't be easy, you'll think it strange
When I try to explain how I feel
That I still need your love after all that I've done

You won't believe me
All you will see is a girl you once knew
Although she's dressed up to the nines
At sixes and sevens with you

I had to let it happen, I had to change
Couldn't stay all my life down at heel
Looking out of the window, staying out of the sun

So I chose freedom
Running around, trying everything new
But nothing impressed me at all
I never expected it to

[Chorus:]

Don't cry for me Argentina
The truth is I never left you
All through my wild days
My mad existence
I kept my promise
Don't keep your distance

And as for fortune, and as for fame
I never invited them in
Though it seemed to the world they were all I desired

They are illusions
They are not the solutions they promised to be
The answer was here all the time
I love you and hope you love me

Don't cry for me Argentina

[chorus]

Have I said too much?
There's nothing more I can think of to say to you.
But all you have to do is look at me to know
That every word is true






"Ah, que diferença entre o juízo que fazemos de nós e o que fazemos dos outros!"

Johann Goethe


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15 abril, 2008





Francisca

Salta da alcova. O corpo despe-se do calor morno. Os pés pendem encolhidos procurando o chão. Sente o fresco, um arrepio percorre-lhe as costas. A manhã despediu a noite entre lágrimas. Ergue o busto, abre os braços e sorri ao dia. Enfia os pés nos chinelos tortos e corre para a janela. Abre-a de par em par e sorve a manhã. É hoje. É hoje.

Enfia o robe sobre a breve camisa, dirige-se para a casa de banho. Despe-se e entra na banheira. A água morna revigora-lhe os músculos e apazigua-lhe o segredo. Lentamente como a medo acaricia os seios e o ventre liso. Sorri, um sorriso de dentro para fora qual onda rolada no areal dos lábios. Olha-se depois ao espelho na faceirice da juventude, na firmeza da vontade. Prende o cabelo deixando livre o rosto nacarado, perfeito, sombreado a negro brilhante. A luz emana-lhe. Gentil veste-se. Hoje, não sabe bem porquê, põe de lado as suas eternas calças, deixa escorregar sobre o corpo gracioso aquele vestido florido que comprara num dia de sol. Gostara dele pela luz, mas depois pensou que não era o seu estilo, e pendurou-o. Mas hoje sentia que o tinha que vestir. E o assim fez.

Grácil enfia os pés nas sandálias abertas deixando os dedos beberem o sol de si, depois suspira e humedece os lábios túrgidos. Sente que é feliz. Perpassa nela uma névoa de sensibilidade que a deixa alagada de vida como não sabia sentir. Francisca, vinte e cinco anos. Um percurso descendente, gasto, sentido, perdido e depois? Depois achado. Uma vida cortada por teias da morte. Um futuro hipotecado no turbilhão dos sentidos. Esses, que agora pressentem puros, foram negros, avassaladores, envolventes e aviltantes, derrubaram-lhe a alma e acrescentaram-lhe o vício. O mundo da droga fora seu companheiro. O mundo colorido, lambido e dorido. Saber, sentir que não era mais daquilo que quisera ser, saber que o amanhã não era senão a noite do hoje, saber tudo e nada, e nada, e tudo, de um vazio. Ter dezassete anos já vividos, ter vinte corroídos, ter vinte e dois corrompidos e ter, e ter sempre mais, e nada mais. Fora assim o seu percurso de vida. A aluna brilhante, ficara para trás nuns quaisquer bancos de uma faculdade. A argúcia de espírito transformara-se em ardil de pantomina, em embuste servil. Desejara apenas viver por viver, correr por correr, amar por amar. Desejara tudo, e nada em mil promessas de cada dia, em voltar atrás, ao principio. Não pudera, não fora capaz. Os vícios em si, mais o vício a seu lado tinham-na sedado. O seu companheiro, antes a sua metade sexual, assim o fora desde os seus quinze anos, jovem brilhante, também ausente de vontade e compromisso pessoal, vergara, também, no corredor deslizante do submundo. Pensamentos altruístas que escondiam as aviltações hedonístas. O casal perfeito no deslizar da razão. Sem formação, sem mais mesadas, sós em si, e por si, finalmente trabalharam. Caixas de super-mercado algures neste país. Parcos rendimentos. A segurança de uma infância, a fartura de uma adolescência, o quase excesso de uma precoce juventude, tornados míngua de haveres e subsistência. A vida na quadratura real da luta. Pouco a pouco foram-se a ela. Francisca e Eduardo.

Nesta manhã de sol, no dia de hoje, Francisca sorri, sorri muito. Eduardo não está, foi para o trabalho. Sente força em si, sente que algo a subtraiu, finalmente, daquela outra vida, sente que a vida que transporta, tão incipiente ainda, é, e será, o seu esteio do ainda presente, de um amanhã que pensa ser também presente. Moldado qual barro térreo no seu útero vivificado, o seu filho, beatitude aquosa do seu eu, quinhoado na cópula do seu companheiro Eduardo, o Pai.

Fecha a porta do minúsculo e despido apartamento. Repara pela primeira vez como é deprimente de nudez. Apenas o sol inunda o espaço, o resto é contra-luz despojado. Pequenos objectos sem sentido perdem-se pelo chão, nas paredes fios emaranhados tecem as teias do ontem. Mentalmente remoça na ideia o agasalhar em cor, e luz. Suspira. Tem à sua frente uma batalha difícil, convencer a família, a sua e de Eduardo, que algo mudou neles, que o futuro não será mais um sucedâneo de cinzento-negro mas antes o arco-íris de todos os dias. No alcantilado familiar terá que fazer passar a sua harmonia interior, fazer acreditar, que esta vida germinada, lhes dará força para retomar o seu próprio paradigma, aquele que um dia fora despido como qualquer outra peça em momento de turbilhão, confusão ou negação. Despem-se tantas coisas. Jogam-se muitas outras na lama disforme, seca e aderente da servidão ao vício. Desnudam-se as vontades em papas putrefactas de amanhãs perdidos. Ela, Francisca, vinte e cinco anos, sabe-o!

Mas isso foi, hoje não é, e o amanhã virá. Não tem medo. É forte. É jovem. O ontem ficou além ,por detrás da porta que fecharam. As portas também são seguras. Ela confia. A chave tem-na na sua vontade. Suspira.

E sorrindo abraça o mundo vestido de amanhã.

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12 abril, 2008




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A B R I L

Mãe conta-me, o que é Abril?

Abril, meu filho…É

Um cravo vermelho, um sorriso, um olhar,

Um estar sem estar e um desejar sem ter.

Abril é mulher, afecto, desígnio a madurar,

É fome e sede, é raiva e sonho de um querer.

É Abril assim.

Mãe conta-me…

Abril foi sémen esculpido no ventre esgotado

De um povo chorado, faminto, agoniado.

Abril foi sátira, sinestesia, personificação,

Melopeia, música, ária de uma canção.

E foi Abril.

Mãe conta-me…

Abril de ontem, Abril sonhado,

Abril de hoje, Abril humilhado.

Cantado em serões imputrescíveis,

Conúbios avaros, pútridos, insaciáveis.

Qual frustro parido,

De um ventre em promessas fruído

Tornado exangue, lasso, possuído.

Abril hoje,

É o vazio de um ontem prometido

Em brisa ondulante de gente que sente,

Que clama, que ri, que chora, que geme e grita

Gente assim parida de sonho em Abril.

Filho, meu filho, meu ventre,

Abril é ele, e tu, e eu…somos Nós!

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06 abril, 2008




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As Redes

O cheiro a peixe impregna o corpo. O ar bebe-se de sal mais da fedentina. Sente-se a pobreza em cada passo respirado. As casas baixas, despidas, as ruas estreitas, os quintais cinzentos de flores e florescidos de canas, varapaus, redes e outras ferramentas de água. O poente tinge de amarelo reflexo a terra. O areal luz-se por entre os últimos raios, tomando aquela cor de marfim velho. Sopram grãos de quando em vez, sempre que o vento decide assobiar. O mar, esse bate-se no lamuriar rolado das ondas, que em remanso vem cuspir as últimas salivas no areal. Recolhe-se rápido para outra vez e mais outra, sempre continuamente, se salivar. As águas tomam aquele tom escuro do sono onde a luz se despede do dia, e se alberga no limbo da noite por vir. O céu entorna-se de tons alaranjados e azuis numa textura entrelaçada de aguarela e espátula.

Lentamente o barco rema em direcção à praia. Largo como um ventre inchado bebendo os salpicos do desfazer das ondas, grosso de madeira pintada a vermelho, azul, com riscas e estrelinhas amarelas e brancas. Uma fugaz apontamento de cor na superfície revolta das águas. Dentro sentados ao remos dois homens. O boné tapa-lhes o olhar, mas o rosto é esquartejado a rugas duras e áridas. O tronco é sólido e desenvolvido quase um quadrado de força motriz. Os pés descalços e salinos descansam no fundo líquido do barquito bebendo-se de frescura, qual alívio para a dureza das solas ásperas e calosas do tempo mais da pobreza. Regressam da faina. Os cestos cheios de prata mexida dilatam-se ao movimento do peixe ainda vivo. As redes descansam pelo barco num emaranhado de fios mais de cruzes, cortiças e minúsculas bóias. E os remos chapinham as águas verdes escuras. Lá vem onda acima, lá vai onda abaixo. O carrossel líquido, imenso e espumado faz ondear a madeira pintada, onde sentados tal como se fora em corcel de madeira, os dois pescadores deixam-se levar até ao desfazer da viagem.

Desliza o barco já em águas salivadas e baixas. Salta o Ti Jão mais o Jaquim, de calças arregaçadas entram na água que lhes chega aos joelhos curtidos. Puxam o barco para terra. Os pés enterram-se na areia húmida ainda à pouco beijada pela espuma. O areal está quase vazio. Há lisura corrida na praia. Apenas as patas das gaivotas deixaram rasto aqui e ali. Mais ao, longe, um barco descansa. Chegou mais cedo.

Atiram as cestas, puxam as redes, arrumam os remos e entre gritos o barco é puxado para o areal. As mulheres vão-se chegando. Os aventais enrolam as mãos. As saias, garridas ou pretas conforme a sorte do mar, bamboleiam no andar. Os pés são largos, salinos e rápidos. Conversa aqui e ali, respostas vivas a perguntas por fazer, gargalhadas ásperas de pressa ou lamúrias gastos de tempo fazem dos sons espargidos na praia, o eco do mar.

-Ai, Ti Jão a faina foi fraca, na foi?

-Atão não? Na vê? Coisa ruim!

-Ai, isto tá brabo, ai tá, tá!

-Na me diga nada, ó Zeza. Isto é um enguiço. Mal dá pró naco. Vem aí muita fome come antigamente, ai vai, vai. Puta de vida, esta!

-Ó Jaquim enche a caixa mais um cadinho… ó home na sejas de dedes curtes…

-Tá Carminha da minh’alma, dou-te tudo, mas já sabes… e pisca-lhe o olho num adejar de brejeirice...

-Ah, atão na querias, atão não. Ó home ‘xerga-te, olha o atrevide…

As cestas esvaziaram-se e o mulherio debandou de canastra à cabeça meneando as ancas enquanto as mãos livres dançavam as palavras ditas. Os dois homens estão sós. A praia e o mar são seus. Há tanto para fazer. A noite vai caindo por entre o voo das ondas. O sol quase que fecha os últimos raios no horizonte. Rápidos puxam as redes, esticam-nas, deixando-as a secar. Caminham, juntos, praia fora. As palavras são escassas, meros assentimentos, meros monossílabos. Despedem-se com um aceno.

Um vai eito até à taberna beber o copo de cinco, jogar uma partidinha, falar do seu mar. O outro, de pés cansados dirige-se para a casita. Esperam-no os netos. Mais não tem. Mulher e filhos já foram. Eles tragados pelo seu mar, ela comida pela dor. Agora é a sua neta que lhe chega o pão. Em cada dia de faina, ele, João Carapicheiro, Ti Jão, prós amigos, lembra-se dos outros dias, daqueles de ontem, quando ainda sonhava com uma traineira de peixe, quando ainda acreditava que o mar seria dele. Hoje os ombros vergam-se ao peso dos desgostos, à míngua dos afectos e ao soluçar do amanhã. Os netos são a sua força, as redes do seu sentir, malhas tecidas da vida, remendadas sempre que necessário mas perenes.

A porta abre-se. Um sorriso, de duas covinhas larocas, beija-o. Uns braços, em redor do pescoço tisnado de sol, apertam-no.

-Vô nunca mais vinha. Tava com tanto medinho…

-O mar estava miúdo. Quisemos trazer alguma coisinha e lidamos mais um tempinho.

-Olhe venha ver o que eu fiz, venha, depressa.

Leva-o puxado até às traseiras, até aquela espécie de quintal. Estendida no chão, uma rede emalhada, pequena mas perfeita, suspira por entre os ainda brancos e quase elásticos losangos. Os flutuadores quais franjas descaem no seu peso. Sorri à sua pequena, dá lhe um beijo na cabeça morena de cheiro a ondas.

Amanhã o mar vestirá aquela coberta, promete-lhe. Juntos atravessam a porta. O dia fecha-se além sobre o mar. A rede da noite desce. Lá dentro, na cozinha estreita e escura os cachuchos espevitam a fome.

Foi assim mais um dia….