Somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos.
Eduardo Galeano.
.
"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
13 junho, 2015
07 junho, 2015
Amar
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
de, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
Que pode o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
Que pode o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro, e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro, e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
Carlos Drummond de Andrade
17 maio, 2015
A Tirania do Medo
O nosso mundo vive demasiado sob a tirania do medo e insistir em mostrar-lhe os perigos que o ameaçam só pode conduzi-lo à apatia da desesperança. O contrário é que é preciso: criar motivos racionais de esperança, razões positivas de viver. Precisamos mais de sentimentos afirmativos do que de negativos. Se os afirmativos tomarem toda a amplitude que justifique um exame estritamente objectivo da nossa situação, os negativos desagregar-se-ão, perdendo a sua razão de ser. Mas se insistirmos em demasia nos negativos, nunca sairemos do desespero.Bertrand Russell, in 'A Última Oportunidade do Homem'
15 maio, 2015
Não sei...
Não
sei…
Não sei…
Se é a
vida, se é o tempo, que me traz assim…
Inquieta
no desassossego das horas,
Asfixiada
na brevidade dos passos,
Perdida
nos sentidos do corpo,
Não sei…
Se é a vida,
se o tempo que me dói assim…
Se é a
borrasca dos desenganos, se dos prantos possuídos
Se das mágoas
acantonadas, se dos sulcos cravados
Na
estatuária ainda quente de um corpo nu de utopias,
Não sei…
Se é o
vento enrolado que me varre assim,
Que me crispa a alma, que me vidra os olhos, que me saliva o hálito
Escarrando-se
em ululos de riso,
Perverso
andante!
Não sei…
Se é o que
de mim vem, vai ou foi,
Se sou
apenas eu, somente eu, que não sei
Respirar,
tragar, mastigar e amassar
O espírito levedado dos anos,
Não sei…
Se vivo
na esquina das horas,
Essas
que são sombreadas de dias quentes
Ou se
respiro nas outras
Nas sombrias
de minutos ocultos.
Não
sei…Sei sim que vivo aqui, deste lado
Onde a
imaginação voa e a verdade vai nascer… um dia!
.
.
11 maio, 2015
O Homem Cruel
O Homem Cruel
Quando o rico tira um pertence ao pobre (por exemplo, um príncipe que tira
a amante ao plebeu), então gera-se um erro no pobre; este acha que aquele tem
de ser absolutamente infame, para lhe tirar o pouco que ele tem. Mas aquele
não sente de modo algum tão profundamente o valor de um único pertence, porque
está habituado a ter muitos: portanto, não se pode transpor para o espírito
do pobre e não comete tal uma injustiça tão grande como este julga. Ambos têm
um do outro uma concepção errada. A injustiça do poderoso, a que mais indigna
na História, não é assim tão grande como parece. O mero sentimento hereditário
de ser um ser superior, com direitos superiores, torna uma pessoa bastante
fria e deixa-lhe a consciência tranquila: até todos nós, se a distância entre
nós e um outro ente for muito grande, já não sentimos absolutamente nada de
injusto e matamos um mosquito, por exemplo, sem qualquer remorso.
Assim, não é sinal de maldade em Xerxes (a quem mesmo todos os Gregos descrevem como eminentemente nobre) quando ele tira a um pai o seu filho e o manda esquartejar, porque este havia manifestado uma inquieta e ominosa desconfiança em relação a toda a expedição militar: neste caso, o indivíduo é eliminado como um insecto desagradável, ele está demasiado baixo para poder provocar por mais tempo sentimentos importunos num soberano univsal. Sim, nenhum homem cruel é cruel na medida em que o maltratado julga; a sua noção da dor não é a mesma que o sofrimento deste. Passa-se o mesmo com o juiz injusto, com o jornalista que, com pequenas desonestidades, desorienta a opinião pública. Causa e efeito estão, em todos estes casos, rodeados por grupos de sentimentos e de pensamentos diferentes; enquanto que, involuntariamente, se pressupõe que réu e queixoso pensam e sentem da mesma maneira e, em conformidade com esse pressuposto, se mede a culpa de um pelo sofrimento do outro.
Friedrich Nietzsche, in 'Humano, Demasiado Humano'
Assim, não é sinal de maldade em Xerxes (a quem mesmo todos os Gregos descrevem como eminentemente nobre) quando ele tira a um pai o seu filho e o manda esquartejar, porque este havia manifestado uma inquieta e ominosa desconfiança em relação a toda a expedição militar: neste caso, o indivíduo é eliminado como um insecto desagradável, ele está demasiado baixo para poder provocar por mais tempo sentimentos importunos num soberano univsal. Sim, nenhum homem cruel é cruel na medida em que o maltratado julga; a sua noção da dor não é a mesma que o sofrimento deste. Passa-se o mesmo com o juiz injusto, com o jornalista que, com pequenas desonestidades, desorienta a opinião pública. Causa e efeito estão, em todos estes casos, rodeados por grupos de sentimentos e de pensamentos diferentes; enquanto que, involuntariamente, se pressupõe que réu e queixoso pensam e sentem da mesma maneira e, em conformidade com esse pressuposto, se mede a culpa de um pelo sofrimento do outro.
Friedrich Nietzsche, in 'Humano, Demasiado Humano'
03 maio, 2015
Poema à Mãe
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
no meio de um laranjal...
Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade,.
.
26 abril, 2015
O Poema
O poema não é o canto
que do grilo para a rosa cresce.
O poema é o grilo
é a rosa
e é aquilo que cresce.
É o pensamento que exclui
uma determinação
na fonte donde ele flui
e naquilo que descreve.
O poema é o que no homem
para lá do homem se atreve.
Os acontecimentos são pedras
e a poesia transcendê-las
na já longínqua noção
de descrevê-las.
E essa própria noção é só
uma saudade que se desvanece
na poesia. Pura intenção
de cantar o que não conhece.
em "Poemas (1955)" Natália Correia
.
.
que do grilo para a rosa cresce.
O poema é o grilo
é a rosa
e é aquilo que cresce.
É o pensamento que exclui
uma determinação
na fonte donde ele flui
e naquilo que descreve.
O poema é o que no homem
para lá do homem se atreve.
Os acontecimentos são pedras
e a poesia transcendê-las
na já longínqua noção
de descrevê-las.
E essa própria noção é só
uma saudade que se desvanece
na poesia. Pura intenção
de cantar o que não conhece.
em "Poemas (1955)" Natália Correia
Assinar:
Postagens (Atom)