Será Natal?
No Natal
escrevem-se palavras doces. Dizem porque é Natal. No Natal o que é doce crepita
e o acre, o amargo, o doloroso arde. É a diferença entre ter e não ter, entre
ser e não ser. Porque é Natal.
António mora
na rua dos sonhos vazios. Algures na abóbada da escuridão e na luz das estrelas
em noites limpas. Mora lá porque não tem casa. Mora porque não tem emprego nem
família. Um estado de vida de um país vazio de dias limpos.
Maria não
mora na rua porque tem uma cama num quarto aguado de nada. Levanta-se logo que
a tinta do dia pincela a noite, veste a roupa coçada, molha a cara na água
gelada bebendo as primeiras gotas que por sinal é também o primeiro alimento do
dia. Depois desce à rua para palmilhar um quarto da cidade. Bolsos vazios,
rosto fechado porque não moram mais sonhos dentro da alma.
Luís é
velho. Velho de anos e de tudo. Vive onde calha. Vive por viver. Não tem porque
não há nada para ter. Luís não chora porque é homem, é velho e não tem
lágrimas. Secaram. Luís tem trabalho mas não tem dinheiro. Vive do que lhe dão.
Dizem que é a solidariedade. Dizem.
Joana é
criança. São dez anos. Olhos fugidios que escondem o ardor da barriga vazia
mais o tremor do corpo melado de suor de fome. É segunda de madrugada. Ainda
faltam horas para a escola. Horas para o pão mais o leite da manhã. O
fim-de-semana é longo numa casa onde apenas corre o vento do desalento.
Infância roubada.
Rita trinta
anos. Dois cursos. Nenhum trabalho. Vive na casa que a viu crescer entre o pai
e a mãe que comem a sopa aguada e fazem as reformas curtas, crescer. Rita
acredita que o futuro vem a caminho. Não viu que o amanhã parou numa Europa
para lá dos Pirenéus.
José, o mais
português de todos, perdeu o que afinal nunca chegou a ter porque nunca o chegou
a pagar. Não teve tempo. O tempo atraiçoou-o. Desliza na fila do centro de
emprego na vã busca de uma ocupação. Nada. O nada de ontem, de anteontem, de
hoje, de amanhã e depois e depois, somam-se impiedosos ao tempo vazio que é o
seu presente.
Gente que
habita o meu mundo. O teu, o nosso mundo. Não o deles. Gente tolhida entre um
passado breve, um presente vazio e um futuro que não virá. Gente do meu pais,
gente que amo, porque sou eu, tu, ele, ela, nós. Somos todos. Somos gente. Não
somos estatísticas, decretos, falácias ou peças de oratória. Nos nossos
estômagos não moram as palavras, coabitam sim, os sucos que os fazem roncar de
tanta fome.
Natal de
brilhos, árvores, presentes, sorrisos e calor. Onde pára? Perdeu-se também?
E as gentes passam, passos breves em calçadas
puídas de desejos. E as gentes mal sorriem porque não há nada para sorrir. E as
gentes suspiram não pelo frio nem pela chuva mas pela dor, pelo engano, pelo
desalento, pela fome e pela amargura a que as sujeitaram. Um povo quase
violado.
Amanhã será
Natal. Dizem. Será mesmo?