"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
02 agosto, 2012
16 julho, 2012
06 julho, 2012
02 julho, 2012
14 junho, 2012
Depois de Amanhã (VI)
O comboio parou.
Olha por entre a janela e distingue somente dois vultos, que apressados sobem para as carruagens. Rapidamente a plataforma fica vazia. O escuro da noite tapa os contornos. Apenas os azulejos debitam umas figuras, vestidas de sombras escuras. A noite é escura. Não deveria, pois ainda é Outubro. O mês das penumbras, porém está mesmo escuro. Instintivamente encolhe-se. A noite sente-se fria e ventosa. A chuva miúda varre de quando em vez o ar. Uma daquelas noites em que o sofá mais a manta de quadrados vermelhos e pretos lhe fazem as delícias. Oh como já sente saudades do quente do seu cantinho mais de Manuel!E não chegou ainda.Chegar e partir parece que fora parte da sua vida.As coisas têm sempre uma dimensão diferente quando estão longe. Parecem mais doces, menos reais. A dificuldade entre o que os olhos vêem e as palavras sentem.A percepção e a sensibilidade. Dois sentidos que se completam sem nunca se encontrarem.-Engraçado -pensa Sofia - Porque será que estas duas andam sempre em paralelo quando afinal são gémeas…1962.A noite resvala por entre os copos e os pratos. Sentada na mesa ao lado da mãe e Luís, Sofia mal consegue manter os olhos abertos. Sente o corpo descer pela cadeira. Mesmo em frente, a mãe com aquele olhar, que sempre a faz sentir em falta.Bolas, é só sono. Depois aquele vestido azul com gola de renda, pica-a. Detesta-o. Os sapatos caem-lhe dos pés. E não gosta daquela comida. Tudo muito vermelho e esquisito.Que vontade tem de estar na caminha, no seu quartinho. Mas não, tem que estar ali. A mãe está feliz. Ri-se, ri-se até parece tonta. Só de vez em quando lhe lança aquele olhar que a faz tremer. A mãe olha em redor feliz. Tem brilho, o olhar. Está mais bonita ainda. A mãe é muito bonita. Tanto que a faz olhar. Tem uma cara com vida e um sorriso cheio. Um olhar doce para os outros e acusador para ela. Hoje a mãe está linda. Muito. Sofia sorri entre as pregas do sono. A Mãe e o Luís vão dançar. Ela fica-se a olhar. Deita a cabeça na borda da mesa. Entre os bracitos cruzados. O ninho do seu mundo. Ali fica, quase embalada pela música que crepita, e o sono que a invade enquanto o ano nasce.Amanhã quando acordar tudo será igual. É assim o tempo. Só muda quando a gente muda ,e ela é ainda uma criança…
05 junho, 2012
Depois de Amanhã (V)
.
.
De novo no seu lugar a ver passar a noite. O
livro continua olhá-la. Prefere embrenhar-se nos seus pensamentos. Sofia gosta
desta intimidade que tem com as memórias, dão-lhe o conteúdo da vida.
Hoje em que tudo passa numa corrida,
empurrando tudo e todos, qual efeito de dominó em queda, hoje, em que parar, é
sinónimo de desaparecer, hoje, é aquele tempo em que não mais se escutam as
memórias, porque elas são feitas de nós vazios. Hoje, pensa Sofia, erguendo o
queixo acima da linha do horizonte, é o meu tempo de recordar.
As suas memórias vestem o tempo. Ei-las ali
mesmo defronte, sentadas, à espera de serem catalogadas no armário do
pensamento.
Fora numa manhã qualquer, não sabe bem o mês se Junho ou Julho,
a memória titubeia, mas sabe de certeza que era manhã, quando o pai veio
buscá-la. Veio numa visita fugaz, e levou-a. Lembra-se ainda desse dia. O pai.
A alegria de o ver foi dividida com a tristeza da despedida à mãe. O pai levou-a
no velho volvo preto. Foi sentadinha atrás nos bancos de napa bege, não havia
cintos e muito menos cadeiras. Os carros eram tão poucos. Falaram durante algum
tempo. Ela falou, fez-lhe muitas perguntas. Ele respondeu pouco. O sono
tomou-a. Embalou-se no movimento do rodar e adormeceu. Quando acordou já estava
escuro. O pai a abaná-la e a dizer-lhe:
- Maria Sofia acorda, já chegamos. Acorda
filha.
Meio estremunhada, lá se deixou levar. No dia
seguinte ,despertou num quarto que não era o seu. Deixou-se ficar muito
sossegadinha. À espera de alguém. Teve medo. Aquela sensação de vulnerabilidade,
que a acompanharia pela vida fora, sempre que se encontrava perante o
desconhecido. Naquela manhã mantinha-se quieta na cama alta, no quarto de
paredes brancas e cortinados azuis com ramos de flores de laços vermelhos.
Escutava, muito quieta os sons da casa.
Ouve passos e rapidamente fecha os olhos com força. A
porta abre-se. Alguém entra. Finge dormir. Esse alguém senta-se na cama, e
passa-lhe a mão pelos cabelos. Ouve a voz do pai murmurando baixinho: So-fi-a. Entreabre os olhos devagarinho. É o pai., é ele. Um sorriso feliz
inunda-lhe o rosto. Lança os braços em redor do pescoço aperta-o. encostando os caracóis ao rosto.
Tanto tempo. Tanta solidão de gestos. Um ano de saudade, fazia-a apertar o pescoço
do pai como se o gesto mitigasse a ausência.
O pai fez-lhe festas no cabelo e suavemente
desprendeu-se.
Já em pé olhou-a sorrindo e disse:
-Levanta-te minha preguiçosa, que hoje temos
muito que fazer.
-Onde estamos paizinho? Onde vamos? O que
vamos fazer?
-Calma. Uma coisa de cada vez.
Por esta altura, já ela saltara da cama e,
cirandava de um lado para o outro. Parecia uma mosca tonta. Até que a janela
lhe prendeu o olhar.
-Oh! Que lindo! Olha, Olha paizinho!
-Sim Sofia, é o mar.
-Paizinho onde estamos?
-Estamos na praia. Este ano vais passar as
férias de verão comigo.
-Sim, a mãezinha disse-me que eu passaria
contigo. Que vocês não vão viver mais juntos, pois não? E suspirando, - tenho
que me habituar.
Encolhe os ombros. Uma névoa rebelde faz-lhe
tremer a alegria.
-Pois é assim Sofia. E tu já és uma menina
crescida. Já percebes, o pai e mãe agora vivem longe um do outro.
-Eu sei. Eu tenho vivido só com a mãe. Tu só
me visitaste duas vezes. Eu sei.
Carlos pigarreia. Não é fácil manter uma
conversa com uma garota de oito anos. Não é fácil falar da sua vida com a sua
filha. Nada é fácil em toda a situação. Ele fora o culpado, se acaso houve
culpados. Melhor foram os dois culpados. Deixaram-se arrastar para um casamento
apenas por inércia ,e o resultado, estava bem à vista. Foram seis anos de
alheamento, de disfarce, de cansaço. Finalmente tinha tido a coragem de falar
com Alice. A reação dela deixara-o espantado. Alice, para não variar, fora de uma
verticalidade e frieza espantosa. Nada exigira, não clamara, , não chorara, não desatinara.
E assim, simplesmente,informou a família mais chegada, tratou dos assuntos que
lhe diziam respeito e serenamente como se fosse algo porque tinha sempre
esperado, reiniciou a sua vida. Alice parecia respirar uma serenidade feliz.
Algo que o deixou de inicio atónito ,em seguida quase quase humilhado e agora , ao longe, quase a admirava.
Admirar, admirar, não seria bem o caso, dado que a atitude da mulher magoou-o
bem lá no fundo, mais do que a coisa em si. Para ele, Alice sempre fora um
túmulo de surpresas, nem sempre boas, é verdade, todavia, toda aquela
naturalidade fê-lo ter a certeza, que eram os dois a desejarem pôr um ponto
final numa frase de dois sujeitos sem predicado.
Ficou Sofia.
Como ele gostava da sua filhinha. Não sabia
exactamente como a mimar, mas em todo o processo fora a ausência da garota que
o ferira mais. A solidão do afeto.
Recomeçara de novo, sozinho mas com
determinação. Sabia o que queria. Na mente delineava-se o amanhã. Sabia o que
queria. Ia lutar por isso. Os dois estavam juntos. Pai e filha.
- Que praia é esta paizinho?
As perguntas de Sofia não lhe davam tréguas.
Os pensamentos que descansassem. A sua filhinha estava ali. Que vontade de a
abraçar, de a beijar. Mas não, não, não o faria. Não seria capaz. Era algo que não
sabia explicar. Ficaria sem jeito, quase despido. Transmitir as emoções era algo
que um homem não fazia, por muita vontade que tivesse. Emoções assim às claras
e logo com uma criança!
E a falta de hábito também o tornara
desajeitado. Poucos percebiam ,que muita daquela aparente frieza ou desinteresse,
não era senão uma incapacidade, uma inibição de expressar os afetos. Sofia, porém saltitava
de pergunta em pergunta, abria os braços, rodava sobre si. Tudo isto numa
enxurrada de emoções que o deixava boquiaberto. Onde fora esta criança buscar
tamanho caudal emotivo? A ele
certamente que não, e à mãe muito menos.
Agarrou doce mas firmemente na filha. Fê-la
parar e olhou-a nos olhos.
- Pára Sofia, ainda ficas zonza. Vamos lá.
Vou chamar a Ricardina, que vai tratar de ti. É boa pessoa e tu vais gostar
dela. Prometes que vais portar-te bem?
-Sim, paizinho. Eu vou ser boazinha.
- Está bem. Espero por ti lá em baixo para
tomarmos o pequeno -almoço.
-Um beijinho, paizinho. Só um…beijinho…
- Está bem, vá lá…
Sofia esticou-se toda enquanto Jorge se
baixava. Havia uma cumplicidade de gestos. As palavras não eram necessárias.
Foi assim que aquele verão começou.
Quando acordava e saltava para o chão,
enfiava o fato de banho, bebia o leite na cozinha e corria para a praia. Mesmo
do outro lado da cancela. Ficava ali deitada na areia, ouvindo o mar que
crescia dentro dela. Corria no areal . Ali
mesmo. Molhava os pés, as pernas. Enrolava-se na areia molhada. Um croquete de
areia como lhe chamava Ricardina. Só quando ela chegava Sofia, podia ir tomar banho. Mas pertinho. Nada de
muito longe.
Ricardina tirava os sapatos pretos, espetava
sempre o dedão num gesto que nunca vira ninguém fazer e de toalhão na mão, ali
ficava, ora puxando as saias, ora girando na espuma sempre de olhar arguto, não fosse o mar roubar-lhe a encomenda. Os gestos tinham a sonoridade do seu nome. Em cada requebro, Sofia, ouvia a voz de Ricardina, ora doce, estrídula, perto e longe. Foi um verão de cheiro e sons de mar.
O fim de tarde era outra coisa. Quando o pai chegava partiam então barquito com um motorzito que roncava e vomitava o cheiro de
gasolina na esteira das águas de espuma branca. Foi assim que aprendeu o falar
do mar. Os seus segredos, sussurros e lamentos. Os dias de águas mansas e os
outros, das enrufadas. Não tinha medo. O pai dizia-lhe:
-Segura-te bem, Sofia.
- Está bem paizinho.
- Não tenhas medo.
- Não tenho paizinho, estou contigo.
- Olha Sofia, olha o sol. Olha a cor. O ouro
do mundo.
- É lindo! Mas porque é ouro?
-Porque é puro e brilhante.
- Ah! Mas ouro não é o meu fio?
-É Sofia é. Mas o sol também é. Outro ouro.
- Ah, já percebi paizinho. Há muitos ouros,
é?
- Sim, Sofia.
- O ouro da água, olha paizinho. O ouro
grande está entornar-se para o mar. Já viste? Também é ouro, não é?
-Claro que é Sofia. Vês como percebeste!
- Paizinho?!
-Sim?
-Porque é que a gente é tão pequenina?
-Pequenina?
-Sim paizinho. Olha é tudo grande, o sol, o
mar, as rochas…
-Ah, Sofia.
- Só tou a ver, só tou a olhar.
- Sofia, somos assim para podermos encaixar
nas belezas do mundo. Tal como os teus cubos do jogo. Percebeste?
-
Assim-assim. Mais ou menos.
-Sofia os teus cubos precisam de estar todos
no lugar certo para contarem a história não é?
-É…
- Pois então, nós também precisamos de
encaixar nos lugares para contarmos uma história
- Uma história? Qual? Conta!
-Sofia, o pai não te vai contar porque tu é
que a vais escrever e depois ler. Tens que crescer. É assim a história dos
grandes. Percebes?
-Hum… hum… mais ou menos. Vou pensar.
- Então pensa.
E daquelas palavras húmidas fez-se o seu
tesouro de memória. Ainda hoje abre o baú daquele verão e encontra sempre
alguma palavra que lhe dá alento para seguir em frente.
Em finais de Setembro, Sofia foi devolvida à
mãe. Lembra-se perfeitamente, lembra-se do ano 1962.
30 maio, 2012
Depois de Amanhã (IV)
.
.
Recorda a noite de ontem.
Fora jantar fora com o marido. Nada mais
banal e todavia tão íntimo, tão aconchegante. Aquele silêncio cúmplice que os
une. Não são necessárias palavras, elas, por vezes, até quebram a harmonia.
Manuel o homem, companheiro, marido, pai e
amigo. Tanto numa só pessoa.
Mas ontem, enquanto jantavam e trocavam
vários monossílabos sobre a comida. Houve, a alturas tantas um olhar que a fez
pensar. Manuel olhou-a como se acusasse. Foi fugaz, mas esteve lá.
Sofia sabe que ele ama o filho, mas a
partilha da mulher substituída pela mãe, foi sempre algo que lhe causou algum
desconforto.
Não é um homem de grandes gestos ou palavras.
Simples, direto. O silêncio diz o que a boca não profere. Não sabe, ou não é
capaz. Uma cultura.
Mas no seu sentir monolítico, ela sabe onde
depositar a cabeça, o olhar e até as suas inseguranças. Ele está sempre ali a
seu lado. Não é janota e muito menos dandy. Não é blasé. É apenas ele, Manuel Monte,
o seu marido.
Apesar do seu modo simples é um sonhador, um
idealista, um quase puro. Acredita nas pessoas, nos gestos e até nos sorrisos.
Mais tarde, vem a ira, a raiva quando descobre que o boneco que em que confiou,
seu irmão, é mesmo de papelão podre.
Mas ontem quando lhe disse:
-Mas Sofia tens mesmo que ir? Não vais
desatar a correr para lá sempre que o Manel te telefonar a choramingar.
- Ó Manuel o nosso filho não choramingou,
apenas me pediu um pouco de ajuda. Afinal o nosso neto nasceu há bem pouco e a
Lena precisa de uma mãozinha.
-
Pois, será, mas não me convences. A tua nora não tem mãe?
-Claro que tem. A Alda já lá esteve durante
quase quinze dias. Agora é a nossa vez.
-A nossa? Tem lá santa paciência que nessa eu
não embarco. Vais tu, já que queres ir, e fica-te muito bem, mas minha querida,
mas não contes comigo.
- O quê? Então vou sozinha?
- Ah pois.
- E o que é que vais ficar a fazer, posso
saber?
- Ah essa agora. Tenho tanto que fazer! Vão
ser uns dias de férias conjugais tal como fazíamos ao princípio de casados,
lembraste?
- Ora se me lembro…e deixa-me que te diga,
que nunca gostei lá muito da ideia.
-Pois olha, sempre me pareceu que ias a gosto,
direitinha para casa dos teus pais. Tu mais o garoto.
- Manuel pensa bem, vem lá…
- Não e não. Estivemos lá quando o bebé
nasceu. Demos os nossos préstimos. Agora a vida é deles. Têm que aprender. Tu
também te desenvencilhaste sozinha, não desenvencilhaste? E eu também, que
remédio! Porque é que agora se dá esta protecção toda aos filhos? Eles não são
imbecis. Levamos uma quase vida a ensiná-los, a dar-lhes todo o tipo de
ferramentas, para serem autónomos, bem sucedidos, gente melhor do que nós e
continuamos com a mãozinha por cima e por baixo a segurar-lhes a vida? Olha, cá
por mim, não e não. Crescer, tem que se fazer em todas as direcções. Porém tu
és senhora e dona de ti, faz o que achares que deves fazer. Ponto final. Vamos
falar de outra coisa.
Embora ligeiramente crispada, Sofia sabia
que Manuel tinha toda a razão do mundo. Calou-se, não fez ondas. O silêncio por
vezes é a melhor forma de aquiescer. Mais de um quarto de século de casada, já lhe dera
os degraus para a cátedra do matrimónio.
…… ……………………………….
Sofia olha-se no espelho do seu quarto de
rapariga.
Gosta do que vê. O vestido comprido cor de
champanhe, corte simples mas elegante. O saiote faz-lhe o redondo das ancas. O
cabelo no seu brilho dourado suporta aquele véu de renda enorme. Na mão as suas
eternas rosas.
Casa-se hoje. Um dia especial. Percorre-a um
frenesim. Não é ansiedade, somente a antecipação do acontecimento.
Olha-se fixa e demoradamente no espelho oval,
a imagem não reflete os pensamentos. Interiormente sorri. E interroga-se:
Afinal é este o dia tão especial, o dia que desde garotinha ouviu falar? Uma
névoa breve tolda-lhe o olhar. Recompõe-se. Há que estar serena. Uma noiva
quer-se nimbada de luz. Os eternos clichés da sociedade. Mas enfim, encolhe os
ombros. Assim seja.
Debruça-se sobre a cómoda perscrutando a
imagem no espelho oval. Aqueles momentos a sós são preciosos. Em breve terá que
mergulhar na alegria do dia. Urge.
Deseja que termine. Sempre foi diferente.
Sabe que mastigar os momentos não os faz perdurar no arco-íris do relógio.
Depois, também sabe antecipadamente o que se passará. Sempre um pouco à frente
do hoje. Sofia apressada. Não, ela não é apressada, apenas o hoje, foi o ontem
dela, o amanhã, é o seu hoje. Naquela divisão de tempo o seu corpo senta-se,
porém o espírito inquieto flui. Nunca ninguém a percebeu. Habituou-se a viver
assim. E hoje, pese os seus anos ainda verdes, coabita lindamente com a
dicotomia. Chamam-lhe insatisfeita, nervosa. Nada disso. No entanto, nem sequer
perde tempo a explicar-se porque, sabe, não a compreenderiam, se calhar até
diriam que tinha alguma pancada…não fora em vão que caíra de um escadote bem
alto ainda pequeninita. Talvez fosse daí que lhe adviera esse desassossego de
tempo.
Mas hoje e era o seu dia. Sofia casava-se.
Apesar da liberdade que aqueles tempos continham, essa mesma liberdade acabava
por exigir um invólucro. Há vinte e muitos anos casar-se era uma quase obrigação.,
pelo menos no meio de onde provinha. Meio arreigado de preconceitos e normas. Aquela
necessidade do certinho que sempre a baralhou. A vida é um remoinho de folhas
de muitos tamanhos e cores., pelo menos para ela.
Desse dia, tem, sobretudo, a memória das
pessoas, da condescendência, do barulho, da norma, dos rostos felizes como se
todos se tivessem casado na mesma hora e com eles. Achava tudo um pouco
excessivo. Aliás as festas são excessivas mesmo que contidas. Porem é nelas que
o ser humano abre a torneira da satisfação. A necessidade grupal do
divertimento sempre a espantou.
Mas naquele dia, tão especial, Sofia sorriu
tão beatificamente que todos a acharam uma noiva feliz, tão feliz que até
estava linda. Outro dos seus grandes problemas foi perceber como o valor das
palavras se alteram de acordo com o estado de espírito e sobretudo se este for
coletivo.
Mas Sofia
cumpriu a sua parte com muita elegância e serenidade.
Manuel.
Bem, Manuel estava irreconhecível. Elegantíssimo,
todo a preceito no seu mais ínfimo detalhe. Também desempenhou o seu papel.
Mais tarde quando já estavam longe daquele reboliço, ele dissera-lhe:” Pronto,
já me sinto legal”.
Ainda hoje se interroga sobre o que ele quis
dizer, sabendo de antemão todas as reticências que ele tinha em relação ao
casamento religioso, a festas sociais. Ostentação dizia.
Porém naquele dia foi gloriosamente simpático.
Disseram dele: Uma jóia de rapaz!
Um prenúncio de outros dias.
Como o tempo se foi!
Assinar:
Postagens (Atom)