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Eram quase oito da noite quando o filho
nasceu. Sentiu alívio. Moveu a cabeça para o lado e viu-o no berço. Viu-o de
olhos oblíquos e papudos, cabelos quase alaranjados, de punhos cerrados e tão
pequenino. Destapou-o e olhou-o como se visse tudo pela primeira vez. E era a
primeira vez. Tocou levemente nas perninhas, no corpo. Percorreu o polegar pela
linha dos rostinho num toque infinito. Sentiu-lhe a macieza da carne e uma
força que a fez parar. Ora, impressão sua. Retomou o toque e parou nas
mãozinhas que teimavam em permanecer bem cerradas. Abriu-as e meticulosamente
estendeu-lhe os dedinhos. Perfeitos. As unhas arranhavam. E naquela intimidade
sem sons ele suspirou. Era seu. Viera dela. A sua criação. Tapou-o. Pensou.
Pensou na incerteza. Pensou em tudo. Sentiu-se dorida mas feliz. Levantou-se e
sorriu. A vida estava mesmo ali ao lado a desafiá-la. E ela aceitou o desafio.
Chamou-lhe Manuel, Manuel Maria, como o pai e
como ela.
O tempo voou. Ele cresceu, ela amadureceu.
Ele ficou homem, ela mais velha. Ele foi pai, ela avó.
O tempo sem tranca que varre a vida.
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Recorda os tempos de juventude. Enormes,
quentes e cheios de promessas. Eram felizes na crença do amor, da ilusão, dos
grandes cultos, dos enormes altruísmos, dos derrubar dos dogmas sociais, na
construção dos ideais. A sua geração fora assim. Ela fizera parte, tivera as
suas lutas, quebrara alguns tabus, sabe-se lá à custa de muita lágrima, zanga e
tantos outros dramazinhos familiares. A peça da sua geração chamava-se “Flower Power” e o seu mote era make love not war. Porém fora noutro
continente que a realidade do conceito se fizera, por aqui na velha Europa, e
sobretudo no Portugal dos anos setenta, nada fora tão simples ou melhor tão
radical. Um banho-maria como tantas outras mudanças. Um país sempre aquecido
entre dois tachos. As mentes ainda estavam alojadas no preconceito geracional. Os
que ousavam quebrar as convenções eram muito poucos, e pertencentes a um grupo
social de desafogo económico. Os chamados meninos do papá. Estes podiam
divergir, fugir, e ludibriar o sistema que o status quo cobria-os, tal como hoje ainda. À chamada
classe média, muito média, eram exigidos comportamentos padronizados e
sobretudo decoro, dito moral. Pobre daquele que ousasse quebrar a norma Hoje,
ao olhar para esses dias, um sorriso irónico tem que forçosamente mascarar os
lábios. Tão ridículo! No entanto na altura geraram-se conflitos familiares,
zangas e humilhações. Depois veio o vinte e cinco e ,rapidamente os costumes
mudaram. Tomou-se como natural o que até então era proibido. As massas ululam
ao sabor do vento, melhor as mentes mudam tal como o vento sopra. E se sopra
com força então a mente parece um cata-vento. Neste caso, bendito cata-vento,
diga-se. Houve muita mudança. Os cenários foram-se transmutando à medida que a
peça se plasmava aos costumes. Neste entretém teatral, as caras adquiriram
rugas, o espírito aquietou-se e alguns bolsos aviltaram-se. O idealismo virou
capitalismo, o amor comprou-se, vendeu-se e emporcalhou-se. E a geração dos
ideais metamorfoseou-se em peralvilhos de sebosas contas bancárias aqui, ali,
em idílicas offshores. Os charros passaram praticamente a ser um quase apanágio
de uma pseudo-elite intelectual que os usa diz, como fonte de inspiração. Uma
geração que sonhava sempre que respirava. Respira ,hoje, entrecortadamente a
ambição dos cifrões e do bem colocado. Não somos senão pavões eternamente
voltados para um jardim que já não existe.. As penas já são tão toscas que até
faz dó, pese o brilho da projecção.
Houve um desbragar de convenções, o caos,
diziam os mais velhos, então. E nós riamos, riamos porque o sentir era impune,
porque éramos jovens e heróis Havia o cheiro tremendo de sexo, mas também o
cheiro da vida. Era diferente. Era a libertação, a nudez da carne e da alma. O
despir total, o arrebatamento de comungar o corpo, vento e a terra. Os
primeiros ecologistas não assépticos. Sofia sorri abertamente. Tem orgulho de
pertencer ao grupo das cotas. É tão maravilhoso ser-se cota quando se tem um
mundo de cristais nas traves do espírito. Pertencer a uma geração de
descoberta, de aquisições, de luta.
Hoje torna-se doloroso verificar que os Senhores
do Mundo são, os que, então, foram seus parceiros de aventura naqueles anos
dourados. Como o poder corrói. Tudo é bem pior que o ácido, porque é mais lento
e persistente.
Levanta-se, alisa a saia, puxa a o cós do
Jersey, ajeita o cabelo e sente-se de novo jovem e atraente Uma hippie repleta
de alquimia do tempo.
Caminha mais segura. Não olha nem para a
esquerda nem para a direita. As memórias povoam-lhe o ecrã da mente.
A noite pisca-lhe matreira por entre uma meia-lua
sentada por cima da janela do comboio.
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