O Colar
Azeviche brilhante. As centelhas desprendem-se na medida exacta da respiração. Desce do pescoço alvo. Sorri ao decote generoso. Ali no lugar preciso da despedida onde o colo se alarga. Requebra-se na carne na medida exacta do movimento. A cada passo uma pérola brilha. É o colar de pérolas negras.
Olha o mundo com altivez. Sabe-se belo. Conhece-se magnificente. Deleita-se no seu poder.
Tem uma estória. Tudo na vida tem uma estória.
Francisco lembrava-se de o ver no pescoço de sua avó. Lembrava-se. Aquela rodada de bolas negras que descia da garganta macia da avó Carlota. Como gostava de se sentar no seu regaço, colocar as mãos papudas em redor do pescoço e sentir o frio das bolas negras. Quase jurava que tinham cheiro, quase Lembrava-se adolescente de vê-lo sonolento em redor do pescoço da mãe. Havia algo que não sabia definir, mas que na sua mãe o tornava meio adormecido. Talvez o negro dos cabelos adormecesse as pérolas. Talvez. Talvez o moreno da pele roubasse o brilho às contas negras. Depois, alguns anos mais tarde, na coluna esguia de Alice. O colar, que ela só às vezes usava por o achar demasiado chique, ficava-lhe mesmo a matar. Dera-lho sua mãe quando o seu filho mais velho nascera. O colar passeara-se morno por entre as mulheres. A umas dava-se, a outras emprestava-se, apenas.
O colar adormeceu no estojo durante muitos anos. Alice, a sua mulher, nunca gostou das pérolas negras. Achava-as muito frias, tristes. Não faziam nada o seu género. Ficavam-lhe bem, muito mesmo, todavia no seu estilo de vida e de ser, o colar negro não cabia. Esporadicamente usava-o. Em ocasiões muito especiais e sobretudo quando ele estava envolvido, isto é sempre que Francisco e a família surgiam. O colar da família.
As pérolas tornaram-se mais negras, Repousaram no estojo de veludo branco. Sempre que a tampa se levantava, uma pequena centelha desprendia-se e perdia-se algures por entre o sorriso de um colo nu. Um dia, anos depois, já no novo milénio Vicente, o filho mais velho de Francisco casou-se. O primeiro entre três rapazes. O colar saiu da cama de veludo branco e vestiu o pescoço de Alice. Foi a última vez. Logo num ato de amizade e sobretudo de liberdade deu-o a Marta, a sua nora. Marta adorou-o e colar negro deu-se a Marta. Deste casamento nasceu uma elegância simples e, no entanto assaz requintada.
Francisco pensou que o colar achara finalmente a dona perfeita. E assim foi durante todos aqueles anos maduros que recorda. Quando os olhos de Francisco se tornaram contas de vidro lacrimejantes e a mão esquerda sem se saber porquê achou por bem tremer desatinada, Simão, o bisneto casou. Um belo rapaz com o traço da família. A mulher uma jovem pequena e meio descarnada cujos atributos ele não visualizou, talvez pelo lacrimejar dos seus o lhos, mas que ouvi contar, a pequena como lhe chamava, ao receber o colar de pérolas olhou-o meio trocista e disse logo:” Ora, não me estou a ver com tal objecto. Mas obrigada.”
E uma vez mais o colar voltou a dormir na sua cama de veludo já meio amarelada e puída. Coisas do tempo.
O nome da pequena se não lhe falhava a memória seria Cristina. Era isso. Pensando bem já não a via há muito tempo. Por onde andariam Simão e Cristina? Talvez naquele corre-corre de não se sabe bem de quê, nem muito menos para quê. Os dias, neste tempo sumiam-se sem horas engolidos no espaço cinzento dos passos trocados. Ora lá estava ele a divagar. Acontecia-lhe cada vez mais. Abanando a cabeça na medida exata que os pensamentos eram espargidos, Francisco poisa de novo o olhar naquela morena ondulante que a cada passo faz que o colar negro dance no brilho da carne. Quem será, pergunta-se, quem? Como tem o colar negro e tão rápido quanto os seus oitenta e sete anos permitem, pensa: Será que é outro colar? Será que o foi vendido? Será que foi roubado?
Trémulo e sem pensar aproxima-se da morena risonha. Olha-a e suspira. Não se sabe bem se de pena de estar velho se pela graça dela. Olha-a breve mas intensamente, e sem atinar no gesto, poisa a mão no colar negro ,que lhe sorri.
A jovem sorridente, cobre-lhe o gesto com os seus dedos esguios, olhando muda mas docemente interroga-o. Francisco reage e balbuciando lá articula numa voz presa: “-Desculpe-me, minha senhora. Desculpe a minha ousadia…o colar… o colar…”
Imperturbável de sorriso nos lábios vermelhos numa voz suave responde-lhe:”- Sim? O senhor é?”
Olha-a atordoado pela beleza dos traços, pelo sorriso doce, pela voz fresca e tataramela Fran…Francisco de Almeida, minha senhora.”
-Oh, que coincidência…o apelido de meu marido.
-Perdoe, mas… o seu marido é?
-Simão de Almeida e o senhor deve…então é o bisavô! Oh, que amor! Oh. Como eu o queria conhecer. Casamos apenas há quinze dias, como vê ainda não conheço a família toda.
Francisco sente que algo lhe foge sob os pés. O mundo revolteou-se. Simão é casado com Cristina, e agora, e agora…
-Simão.Mas… perdão, minha querida, o seu nome é?
- Carlota.
Meu Deus, isto é uma peça, pensa Francisco .Carlota, Carlota como a sua avó. E o cheiro das pérolas no pescoço da avó chega a até ele de mãos dadas com tantas memórias. Vacila. Carlota ampara-o docemente. Num misto de ternura. Já não são as suas mãos papudas em redor do pescoço alvo, são umas mãos esguias mas tão doces nas dele. As memórias e o pingar do tempo da ternura...
Naquela noite quando se deitou, Francisco visualizou os dias da sua vida. Um carrossel de marionetas subindo e descendo ao som do acorde destrambelhado dos tempos. Em cada paragem havia novas figuras que entravam ou saíam, um girar, um correr. O som estridente a latejar o mover dos dias, o carrossel a subir, a descer, o rodar sem tino. Nova paragem, nova rodada e as marionetas diferentes que saiam e entravam sentando-se nas figuras de pau coloridas e estáticas Cá fora os Homens passavam entretidos nos pensamentos enrolados dos dias da vida em passos marcados, em olhares cruzados, em gestos por nascer, em risos perdidos soprados, em beijos esboçados de sentires.
Naquele vai e vem de figuras, uma sobrepõe-se: A da mulher do colar de pérolas negras...
Cruza as mãos sobre o peito e, descansa então.
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