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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

05 novembro, 2010

Vitória

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Vitória.

Está sentada no chão. As pernas escorrem ao longo do soalho. Esticadas, hirtas. O tronco dobra-se, quebrado, ao ritmo da dor. As mãos, ah as mãos, retorcem-se num arranhar de unhas e repuxar de dedos. Os solavancos do peito movimentam-na. A garganta asperge roucos. O ranho mistura-se húmido e pegajoso nas faces gastas. Os cabelos húmidos de suor e desespero alinhavam-se tortos. Os olhos vagueiam entre as paredes e a mente. Não reflectem nada, somente o vazio de que estão vestidos. E de novo o corpo a torcer-se numa convulsão desenhada no estômago que a percorre à medida que as palavras a fustigam. Chora seca convulsa, amarga e dorida.

Chora o tempo perdido, chora a raiva, chora o engano, chora a confiança, chora o sentir, chora os anos. Sente-se patética, demais. Sente-se inútil, sente-se coisa. E as mãos que se baralham num redondo desatinado. As pernas que se dobram para logo se esticarem. E o corpo queJá não dói anestesiado pela amargura que a percorre.

Crava as mãos na borda da cama, as unhas vergam-se ao peso do corpo. A dor alivia-lhe a amargura. Deita as mãos ao rosto e pergunta: Porquê? Porquê? Olha-se desalinhada, suja, grotesca ao espelho e sorri, sorri ao que vê e, mais ainda ao que a agonia. A imagem provoca-lhe o vómito. É ali mesmo que escancara a boca e vomita, mesmo em cima dos pés. Olha para baixo. As unhas vermelhas dos pés riem por entre a porcaria. Uma linha de vida.

Arrasta-se

Está alucinada. O mundo quebrou. Ela partiu-se.

Tão rápido.

Apenas seis palavras. Apenas uma confirmação.

Treme a cada movimento do corpo. Que lhe reflecte o sentir. Um sentir amargo, um sentir repudiado, um sentir devolvido qual carta sem número de porta. O engano ali mesmo ao lado na porta com número, a aventura vestida de engano, a voracidade do desejo, as horas trocadas, a espera calçada de mentira e o tempo a despir-se de sentir.

Foi assim que Vitória se recriou. O antes e o depois. Foi quando ela se apercebeu que a traição não era mais do que a cobardia do sentir. ,o medo da partilha, o temor à verdade, o irracional do homem. Vitória compôs-se. Rabiscou a máscara. Aperfeiçoou-a. Colou-se a ela. Viveu com ela. Tornou-a sua. Não mais uivou de dor nem desespero. Na sua mente recusou o hoje, analisou o ontem e partiu para o amanhã.

O depois estará algures, com ele ou sem ele, não importa assim tanto. O que realmente importa é ela saber que em cada dia ela é a sua Vitória.

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09 outubro, 2010

A Chave

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A Chave

Trac-trac-trac- Três voltas. Três gestos. Três segundos. Três tempos. Um suspiro.

A mãe desce lenta, o corpo afasta-se da porta. Um passo atrás. Um engolir de saliva. Um soluço. Um gemido. Um gesto. Uma decisão.

Recua ao mesmo tempo que soluça. As costas da mão servem de lenço ao ranho que cai. Os olhos colam-se. Esfrega-os. Tinta preta. O indicador direito percorre a face. Tinge-se de negro. Negro e ranho. E lágrimas.

A chave olha-a. Um passo em frente, outro e mais outro. A mão detém-se num gesto contido. Não, não vai abrir. Grita, soluçando. Depois escancara a boca e grita mais e mais. A chave treme. Ela treme. O silêncio treme.

Sobe as escadas, entra no quarto, olha a cama e pega nas almofadas atirando-as pelo ar. Com força, com raiva. Depois joga-se no cadeirão. Dobra-se sobre si e soluça mais e mais. Até ficar sem ar. Deixa-se estar naquele desventrar de si. O dia partiu. Está escuro. Escuro lá fora e negro cá dentro, sem luz.

Levanta-se. Ajeita o cabelo. Riscos negros e secos desenham-lhe a amargura. Lava o rosto abundantemente. A água gelada mitiga-lhe a dor, porque a faz tremer. Olha-se ao espelho. Sente-se profundamente infeliz. Injustiçada. Maltratada. Odeia. Odeia-o e odeia-se. Um ódio que sobe das entranhas sem forma. Um pedaço de sentir feito de algodão amargo. Esvai-se ao toque. Logo que respira a saliva da sua tristeza.

Pensa. Pensa como é infeliz. Sente. Sente-se injustiçada. Sente-se mal amada. Ela. Ela…que se preteriu…que se preteriu…que lhe deu tudo… tudo…e agora…isto…

Soluça. Soluça porque só assim se sabe ouvir.

Do outro lado da porta, onde a chave não rodou, ele abana a cabeça. Mais uma cena. Mais uma. Mais uma de entre tantas. Difícil viver com ela. Difícil. Ele não é ela e, ela não é ele. São dois. Não são um. Tanto drama, tanta fúria.

Gosta dela. Ama-a porque é hábito. A vida é um hábito que se deixa escorrer pelo corpo. Ele tem hábitos que ela não gosta. Ele tem desejos que ela não sente, ele tem espaços que ela não preenche. Ela vive mesmo ao lado dos interstícios dele. Não se encontram mas vivem juntos, às vezes. Coisas da vida. Quando se cruzam, ocasinalmente, são felizes. Mas só às vezes. Mas não é amor, é hábito.

Olha a porta do lado de fora. Encolhe o pescoço no movimento redondo dos ombros e desce os degraus da escada. Está sereno, sem estar apaziguado.

Abre a porta do carro. A perna esquerda ainda entra. Pára. Olha em redor. Passa as mãos pelo cabelo num gesto maquinal. . Decide-se. Tira a perna e fecha a porta. Joga as chaves dentro do bolso do casaco. Levanta-lhe a gola e decide-se. Vai caminhar.

É noite. Noite húmida. Daquelas sem luar. Escura. Cá fora está escuro. Sente-se bem. Gosta do negro. Espicaça-lhe os sentidos. O instinto de sobrevivência, o alerta animal. É o Homem.

Caminha, não estiola tempo em análises e muito menos em mortificações. Tudo vai passar, como das outras vezes. Ele sabe. Tem que ser paciente. É assim.

Não vai pedir desculpa. Aconteceu.

Caminha. A noite acompanha-o. Murmura:

-Ainda é cedo!

A chave rodou na fechadura. Trac-trac-trac-. Em sentido contrário. Num gesto breve e leve. Uns passos rápidos e um afastar quase em bicos de pés. Um breve restolhar escadas acima. Um a mirada no relógio. São duas da manhã. O lençol abre-se ávido de calor numa cama de dois.

Ela deita-se e enrola-se nos cobertores. Murmura:

-Já é de madrugada!


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30 setembro, 2010

Mozart's Requiem-Confutatis (lyrics+translation)



..Este Requiem é a banda sonora( elegante) do momento político e financeiro... o que acham?

24 setembro, 2010

Setembro em Bagos

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Setembro em Bagos

Na manhã vestida com saia de neblina, o corpete azul do céu pesponta enviesado na janela do amanhecer. Setembro. Novelo de tons, fios de alma, chama bruxuleante dos dias em despedida.

Logo, logo, o sol empurra a saia húmida de neblina e, beija a árvore humilde. Pinta-a de luz e sombra. Com verde negro onde mora a teia tecida nas lágrimas do orvalho, com verde doce onde pesponta a folha tenra, depois Senhor, envolve o fruto de cachos maduros pintalgando-os de ouro. Deixa-se escorrer neles em gozo perfeito, em arco de e luz e tons.

Nos lábios da criança, que corre entre os bardos, uma ponta de saliva aloja-se no canto. Escorrega o sorriso, enquanto as mãos se estendem abertas para o cacho mudo, que descansa entre as folhas matizadas de rosas, roxos e castanhos-ouro. Já se enrolam na despedida.

A mulher dobra-se em gesto calado. A mão, concha aberta, recolhe feliz o cacho de bagos roxos. Toca-o no seu fulgor de perfeição, depois joga-o no interior do cesto, onde outros já gotejam a doçura em líquido doce.

Lá em baixo o rio remansa plácido, quente, vivo e dono. Recurva-se nos cantos em toque breve na terra, mulher. O jogo eterno dos amantes. Um desejo cumprido mas não saciado. Retoma o seu curso e adormece cansado no leito.

E Setembro desce nas encostas, enrolando a terra, vestindo -a de matizes. Tela viva de ocres e mostos. A cor do cheiro que mastiga a brisa.

Setembro das neblinas, dos cheiros, da partida. Setembro prenhe de cor e mel. Setembro ébrio de mosto, de cantigas enroladas em gargantas por abrir. Setembro de mãos entrelaçadas, de coxas quentes em toque de movimento, de olhares fulvos de alma, de bagos que se abrem grávidos de seiva, de gente em procissão carregando nos ombros os andores de cachos maduros.

Setembro fruto, Setembro mosto, Setembro Homem, Setembro Terra. Setembro despiu-se. Setembro partiu.


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12 setembro, 2010

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Sorte é aquilo que acontece quando a preparação encontra a oportunidade.

(Elmer Letterman)
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09 setembro, 2010


Um querido amigo de longa data enviou-me este poema de Fernando Pessoa,não resisti em partilhar convosco a verdade do tempo e da vida na mestria das suas palavras .

Fernando António Nogueira Pessoa

Fernando António Nogueira Pessoa


"Um dia a maioria de nós irá separar-se.
Sentiremos saudades de todas as conversas atiradas fora,
das descobertas que fizemos, dos sonhos que tivemos,
dos tantos risos e momentos que partilhámos.


Saudades até dos momentos de lágrimas, da angústia, das
vésperas dos fins-de-semana, dos finais de ano, enfim...
do companheirismo vivido.

Sempre pensei que as amizades continuassem para sempre.


Hoje já não tenho tanta certeza disso.

Em breve cada um vai para seu lado, seja
pelo destino ou por algum
desentendimento, segue a sua vida.


Talvez continuemos a encontrar-nos, quem sabe... nas cartas
que trocaremos.

Podemos falar ao telefone e dizer algumas tolices...
Aí, os dias vão passar, meses... anos... até este contacto
se tornar cada vez mais raro.


Vamo-nos perder no tempo...

Um dia os nossos filhos verão as nossas fotografias e
perguntarão:
Quem são aquelas pessoas?

Diremos... que eram nossos amigos e... isso vai doer tanto!


- Foram meus amigos, foi com eles que vivi tantos bons
anos da minha vida!

A saudade vai apertar bem dentro do peito.
Vai dar vontade de ligar, ouvir aquelas vozes novamente...

Quando o nosso grupo estiver incompleto...
reunir-nos-emos para um último adeus a um amigo.

E, entre lágrimas, abraçar-nos-emos.
Então, faremos promessas de nos encontrarmos mais vezes
daquele dia em diante.


Por fim, cada um vai para o seu lado para continuar a viver a
sua vida isolada do passado.

E perder-nos-emos no tempo...


Por isso, fica aqui um pedido deste humilde amigo: não
deixes que a vida
passe em branco, e que pequenas adversidades sejam a causa de
grandes tempestades...

Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem
morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem
todos os meus amigos!"


fernando pessoa

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02 setembro, 2010

ADEUS VERÃO

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Adeus Verão


Um bocejo. Um olhar.

É o tempo da luz que se recolhe.É o Verão que se encolhe.

Cabelos longos, soltos, emaranhados na brisa da tarde, pele doirada do sol e do mar, lábios rubros de adolescente, mãos doces de menina e olhar perdido de mulher. Isabel.

Sob o toldo branco que teima ainda em filtrar a luz macia de Agosto, olha em redor. Uma centelha. Um palpitar. Nada. O olhar desce de novo para a mesa redonda onde os dedos tamborilam o tampo verde de metal. Puxa a cadeira um pouco para trás. Cruza as pernas morenas, despidas. Uns calções curtos vestem-lhe as coxas. Assim leve. Assim solta. À espera.

Sacode a massa castanha que desce pelas costas. Naquele trejeito derrama o olhar em redor. Nada. Vê o pulso. Cinco horas. Atrasado.

Suspira.

Amanhã já é Setembro. Amanhã acaba o tempo. Amanhã é dia de adeus. Amanhã o tempo vai mudar.

E a luz a inundar a praça. A luz que a faz piscar. A luz que lhe rouba o tempo.

O pé direito baloiça nervoso no sincopar dos minutos. Dança na sandália despida. Move-se ao ritmo do palpitar do corpo. Eis que se solta e cai. O pé desliza e busca-a no chão. Enfia-se nela tal como na espera. Voluntariamente.

Chega. Desengonçado. Alto e magro. Com calças a mais e camisa de menos. Sorridente. Lança-lhe um beijo nos dedos que poisa nos lábios. Um trejeito.

Isabel sorri. Feliz. A luz do verão espalha-se nas faces e aninha-se nos olhos de veludo. Sorriem um no outro.

Isabel e João.

Sorriem e estreitam as mãos. Afagam-se no olhar. O tempo está ali. Parou. Amanhã já não é Setembro.

Levantam-se. Entrelaçam os dedos. Partem

O pôr-do-sol desceu na praça.

Fechou-se o último toldo.



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