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"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
19 agosto, 2010
04 agosto, 2010
O combóio
O combóio
Com as mãos trémulas e engelhadas abre o jornal. Na página três. Metodicamente percorre as linhas das colunas. O rosto vai-se contraindo, à medida, que mastiga o conteúdo. O olhar salta para a imagem. Lá estão eles sentados no semi-círculo do Teatro Português. As deixas, essas pobres nem rir fazem., são farrapos de ideias com tempo cronometrado. Não são espontâneas. A Infernal Comédia dos Dias. Suspira. Folheia a página seguinte. Nada de novo. A ladainha das palavras repete-se. Cruza a perna magra que se ajusta perfeita no contorno dos ossos. O tecido das calças baloiça na largura. São castanhas da cor do Outono. Olha de soslaio o relógio da estação. Falta ainda quase meia hora. Veio cedo. Fernando chega sempre cedo e parte a tempo. Gosta de sentir as horas a escorrerem.
O casaco de quadrados afaga-o. O vento resolveu soprar. As páginas do jornal agitam-se, mais do que as notícias. Os ponteiros continuam a deslizar de mansinho na manhã de neblina. Ouve o apito do combóio. É o das dez.
O combóio pára. Descem dois passageiros e ninguém sobe. O combóio chega. O combóio parte.
Aquele ranger de ferros, o restolhar do silvo, o chiar e o silêncio. Ajeita o nó da gravata. É verde. Verde. Ele gosta de verde, sempre gostou. Combina com a cor dos campos, da bandeira, e vá lá uma pontinha de vaidade, com a cor dos seus olhos. Estão gastos mas ainda têm um pouco de brilho das folhas macias. É a cor da esperança. Idiota. A esperança não tem cor. Tem luz. Isso, só luz.
Fernando fecha o jornal. Dobra-o cuidadosamente. Alinhado. Baloiça o pé direito calçado no sapato inglês. Castanho. Castanho e verde, as cores da sua idade. A idade, pensa Fernando tem cores. É branca quando nasce, rosada quando cresce, cobre-se de azulão, vermelho e laranja na juventude, aperalta-se de todas as cores quando madura, na descida adoça-se de ocres e verdes, e no fim tapa-se de cinzentos gélidos e brancos tristes.
Fernando olha, uma vez mais, o relógio. Ainda faltam dez minutos. Tem tempo de ir à casa de banho. Na sua idade tudo tem que ser acautelado. Sorri. Recorda outros dias quando de um salto apanhava o combóio. Numa mão o saco, na outra, o movimento do corpo, o gesto dos anos. As horas esperavam-no e, ele trocava-lhes os minutos. Hoje, ele espera as horas, e os minutos fogem-lhe. Levanta-se. Lentamente dirige-se à casa de banho. O cheiro dos urinóis invade-lhe as narinas. Sempre há coisas que não mudam.
Está de pé defronte do pequeno jardim de buxos verdes. Sabe que a carruagem número dois vai parar ali. Já conhece tudo. Já não precisa de saltar. O combóio surge na esquina ao fundo. Ajeita o casaco, coloca o jornal sob o braço direito, apalpa rapidamente o bolso onde está a carteira e espera. O combóio entra na estação suavemente. Sem grande alarde, pára mesmo diante de si. Um só passo e ei-lo que sobe os dois degraus. Empurra a porta e rápido, tanto quanto as suas velhas pernas lhe permitem, senta-se junto à janela. Olha para o exterior e ,só depois para o interior. Já conhece os rostos tal como as suas memórias. Catálogos de imagens
Soa o apito, o combóio mexe-se. Lenta e timidamente. Depois, já longe da estação e, dos múltiplos carris, sózinho, desperta e ei-lo a correr agilmente.
Fernando respira fundo. A viagem de combóio traz-lhe sossego. Gosta daquele correr de paisagem. Lembra-lhe a sua vida. O tal catálogo de rostos. Gosta de os ver assim a correr, a misturarem-se numa amálgama de traços e cores. Folhas da vida que se debulham rápidas e soltas. Passam num arrepio de tempo. O rosto da mãe está junto do canto da janela, sorri-lhe, o do pai cujo dedo em riste o faz suster a respiração, não se lembra já do que fizera. Ele deitado, saciado, no areal morno. Um rosto sorridente divide o sentir. Luísa. Recorda-a. Sorri abertamente. Agora são crianças, crianças que o olham temerosas. Rostos pálidos. Camas. O hospital. Fogem também, ficam para trás. Uma bata branca, murmúrios, luzes, rostos e mais rostos, Silêncio. Uma mesa, adornada de gente com olhos a rir, enche ao vidro da janela. Ele está lá. Mariana de olhos profundos ri, ri e junta as mãos naquele jeito de criança. Mariana a sua mulher. Outra imagem que rebola no vidro e foge rápida. Mariana, fria, a doença levou-a. Não corre, demora-se a visão. Abraços apertados, lágrimas que não saíram. Solidão. Vê-se sentado, as mãos escondem o rosto. As crianças a seu lado seis. Cabeças em movimento, rostinhos de amanhã, olhares doces. Agora em slow-motion uma estrada, solitária, franjada de belos plátanos cujas folhas caem em dança de outono, uma casa ao fundo, bem lá no fundo. Outra imagem, um recanto de flores .Maduras. Serenas. As imagens diluem-se Embrulham-se nos seus traços de carvão. O livro fecha-se.
Cerra os olhos e olha o vidro. Vazio. Lá fora, os campos estremecem com o passar do combóio mas logo serenam. As recordações são humanas, somente humanas, muito humanas. São pedaços de vida gravados na carne da memória.
O combóio respira ruidoso na curva que antecede a estação. Em seguida desliza tranquilo. Pára num suspiro de vida. Fernando desce. É ali o seu destino. Olha em redor, traga a neblina, aperta o jornal, estuga o passo e recomeça o seu caminho. O silêncio empurra-o.
No fim está ainda o presente e, amanhã o combóio também virá.
18 julho, 2010
Words
| Words are deeds. The words we hear |
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04 julho, 2010
Alice
Alice
Alice crua de sonhos vagueia na rua dos sentidos. Percorre-a sem olhar. Sente. Sente apenas. Sente o enrolar das tripas. Sente o fardo das pernas. Sente o suor gotejante. Sente o bafo quente da tarde a enrolar-lhe os sentidos. E o suor que a empapa e, o trago amargo da fome a vomitar-lhe a boca. E a tarde a secar.
A rua, a casa. Traves e tijolos, pó e calçada. Tudo gira. Uma neblina tolda-lhe os olhos. Esfrega-os. O suor teima em cair. As costas das mãos estão molhadas. Passa-as pelos lábios. Sabem a sal. Tem sede.
A língua, a ponta humedece os lábios secos tal como a boca. Só o corpo está húmido. Húmido e melado. Respira com força. Mais um passo aqui, ali, em frente, em frente. O caminho de sempre.
O ar escoa-se por entre as varandas vestidas de roupa. Há sons que se diluem no vento morno. São vagos. Cheiram a dor. Sabem a amargo. Os sons desnudaram-se. A tristeza vestiu-se.
O tempo parou na calçada crua. Alice caminha. Detém-se na porta semi-aberta. Empurra-a. A escuridão de bafo quente envolve-a. Uma voz perdida pergunta:
-Quem é?
-Sou eu, a Alice.
-Estava à tua espera.
-Eu sei, eu vim. Sem nada, mas vim.
-Ah! Para quê, então?
-Trouxe-lhe uma côdea do ontem.
-Ah!
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