"A pintura nunca é prosa. É poesia que se escreve com versos de rima plástica."
"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
03 janeiro, 2010
01 janeiro, 2010
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
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Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,
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Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,
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Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen.
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30 dezembro, 2009
14 dezembro, 2009
Um Conto de Natal
Um Conto de Natal
A laje fria do degrau acolhe-o, deita-se na cama de cartão que restolha o calor dos jornais sempre que se move. São os acordes na noite fria e solitária. Agostinho cofia a barba emaranhada com uma mão trémula, e com a outra, puxa de mansinho o cobertor desbotado mas ainda quente. Oito anos. Oito anos já lá vão. Suspira e humedece os lábios. Enrola-se nos velhos cobertores. Calor de lã em alma nua. A noite vai fria. Dezembro, o mês de todos os meses. Não ri o azul, nem pirilampam as luzes. Dezembro é o último entre todos. Traz escondido nas entranhas o mito da servidão. Ele conhece bem Dezembro. O dos dias apressados. Que se vestem de cor para fingir. Dias encenados chamam-lhes de festa. E já agora, pensa Agostinho, por onde andará a festa? Há oito anos que a espera.
Oito anos.
O tempo é mesmo água. Foge entre as conchas da mão. Só molha, logo escoa. Mancha húmida de vida. Pulsar breve. É isso mesmo, o tempo é água. Suspira. Depois cruza as mãos encarquilhadas de ilusão sob o cobertor de ramagens grenás. Volta-se de lado e cerra as pálpebras.
Uma sirene uiva apressada. E a gente respira no uivo da noite em compasso. Vergastam-se nos passos ao mesmo tempo que respiram entrecortados. O rumo dilui-se no prumo da rotina. São as marionetas do mundo. Alguém sabe lá quem, manipula cordéis dançantes. Dizem chamar-se Deus. Bah, quem será? Desconhece o Sujeito. Agora a gente, essa, ele conhece. São os moldes. Em gesso liso ou pregueado. O molde é a sua realidade. De Deus dizem a sua percepção. Mas os sentidos sentem-se nauseados. É assim que os vê, é assim que os mede. Observa e divaga, os seus companheiros, chamam-lhe Agostinho, o Filósofo.
Por vezes sente-se ufano do título, uma mão cheia de comiseração feliz. Uma ironia! Dirão os mortais comuns, mas ele não é comum é Agostinho Sem-Abrigo- Filósofo. Um pobre rico. Por isso gosta daquele canto, escuro. Ali entre a lã do cobertor e o papelão deitado em folhas de jornal, viaja no carrossel das suas próprias andanças, os altos e baixos da sua mortalidade. Olha para a feira do mundo, sorri condescendente aos seus moldes. E eles sobem, e descem por entre os cavalos, e duendes na viagem da procura. E giram, giram no carrossel. Agostinho vê, Agostinho pensa, Agostinho recolhe-se.
Oito anos.
A cidade dorme a seu lado, a cidade acorda a seus pés. Poder num homem sem glória.
O sono encavalitou-se nos pensamentos e não quer descer. Humedece os lábios secos. Cobre o rosto com o cobertor de ramagens grenás. Escuta o roncar indignado da barriga e sorri. Depois naquela beatitude que o sono provoca embala-se. Mergulha num mundo azul. Sente-se pairar algures entre o céu e a terra. Um silêncio feito de sons vazios. Senta-se displicentemente no outro lado do mundo, expectante, contemplando castelos de algodão estrelados. São belos. Tão belos que os olhos choram. O fardo dos anos e a condição humana despiram-se. Sente-se leve, leve.
Mergulha naquele embalar de vazio. Ali não há tempo nem memórias. Somente o fluir do espaço entre duas mãos de sentidos. Agostinho está leve mas pleno.
A sonolência torna-se a sua realidade. Olha em redor uma vez mais. A imensidão, o espaço fá-lo tremular. Mas quase a seu lado uma figura move-se. Não existem quaisquer espasmos naqueles movimentos. Uma certeza precisa, um controle absoluto. A imponência envolve-a. A figura abre-se e encapa o nosso homem. Agostinho sente o calor que perdera algures numa esquina do tempo. Procura o rosto da figura. Não encontra. Há matéria sem carne. Há vida sem sangue. Há forma plena de vazio. Treme-lhe o corpo, agitam-se-lhe os sentidos. Vê-se na sua posição fetal. Enrolado, temente. A expectativa do esforço invade-o. Tenta esticar os membros, porém uma força impede-o. Retorna à posição primeira. A fetal. A do mundo. A mente flui rebolando-se por entre as escarpas do antes, salta veloz para o presente. Pára antes da porta do futuro. A luz sorri ao momento.
Um amplexo de calor onde os braços se pressentem sem se sentirem. Uma chama, uma onda, um vibrar surpreendente transborda-o. Acorda-o, alenta-o. Sacode a cabeça num movimento forte que rompe tudo Um feixe, um halo e o seu corpo macerado de anos e humilhações desnuda-se. As labaredas vivas ferem-no suavemente. A sua nudez é a sua roupa. A luz perpassou a matéria.
Restolha a alma. Brilham os olhos. Sente o coração. Sente-o crescer. Crescer, redondo, vermelho, forte e belo. Tão belo, tão forte que o cativa. O coração é ele, ou ele é o coração.
Cá em baixo ,o carrossel de luzes continua a rodar. Mais uma volta e outra, e outra ainda. A próxima paragem é já ali na esquina e chama-se Natal.
Então o coração desliza do amplexo e pulsando no seu vermelho sangue, quente e vibrante cai misturando-se entre os homens.
No degrau frio um cobertor de ramagens grenás repousa sentado. Alguém passa, alguém o olha, alguém o colhe.
Amanhã é Natal!
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade!
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09 dezembro, 2009
08 dezembro, 2009
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
Vinicius de Moraes
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