(Samuel Butler)
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"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
O Filme
Sebastião.
O sol pesponta na janela varrendo as sombras de um quarto minimalista. Debruçada numa jarra de vidro, uma túlipa vermelha cumprimenta o dia. Laivos de cor. Branco e vermelho. No estrado negro, a figura mexe-se, afastando a luz que lhe magoa os olhos. Pestaneja entreabrindo o olhar liquefeito de azul turvo, que imediatamente se volta a cerrar. Uma mão ergue-se exaltada, tentando tapar a claridade metediça.
Que ironia ser Sebastião em manhãs sem nevoeiro. A contrição de todos os dias.
Levanta-se.
A barba por fazer risca-lhe as faces, tingindo-as de um preto hirsuto. Coça-a com os dedos meio enrolados. Um gesto encaracolado de meiguice. Um quase afago. O rosto é móvel, crispado. O olhar quente e uns lábios enclavinhados dão-lhe um ar iracundo. Sebastião engole a raiva de todos os dias. O líquido verde da negação. O seu mel de vida. Por ora o mundo é um palco vagabundo, onde os actores não chegam a vestir a pele dos seus personagens. Aviltados caem no proscénio a um passo da sua redenção.
Rebola a bela cabeça num jogo de roda lento.O travo da ira veste-o. Um fato cinzentão de fazenda fina e corte irrepreensível.
Está pronto. Cá fora respira a manhã turva. Desce a ladeira num gingar descompassado. As pernas tortas e magras desfilam em passos na calçada polida. Sebastião desliza mais do que caminha. Há algo de nervoso no bambalear do corpo. Um certo afã de chegar ou será de partir?
Entra algures. Rostos que se levantam e rumorejam à sua passagem. Logo, se baixam presos ao ecrã. Os planos de um filme. A acção sentida dos gestos, dos olhares.
A projecção já começou. Os figurantes, os actores do seu mundo, plasmam-se em sombras. Intrépido, aquele grupo, o dos afectos perdidos, sobressai. As sépias não têm lugar. O preto e branco acutilantes recordam-lhe a cronologia. A sua e a deles.
Os movimentos repetem-se no quotidiano. O slow motion. Um gesto perpetuado no espaço. Lento, deliberado e translúcido. A película em três dimensões. Um mão que baixa, arredondando-se num gesto de afago. Um olhar amargo que chora. Pupilas rutilantes de água. Corpo lascivo de dor. Passos cadenciados. Barulho. Estrídulo. Premente.
A bobine encravou.
A porta abre-se. A mulher entra direita, objectiva. Senta-se, cruza as pernas, descalça os sapatos negros. Um sobre o outro na carpete vermelha. Espalha os papéis. Fala. Gesticula, argumenta. Recolhe-se. Calça-se e levanta-se. Sai.
Silêncio.
A bobine dispara. A tela revive. As sombras desvanecem-se. A acção desembrulha-as. Gente, gente que pulsa, gente que anda, gente que ama.
Um casaco vermelho, um chapéu negro, um rosto vivo, um olhar enviesado. Uma boca gulosa. Uns braços envolventes. Um corpo arquejado. Sentidos. Allegro.
A banda sonora eclode. Sebastião abandona-se.
Ele, ali em primeiro plano. Rindo, dobrado sobre si. Rosto escancarado, dentes em concha. Gargalhar em dó. Feliz.
Segundo plano: Ele, no umbral de uma porta escancarada. Perfil fechado. Braços cruzados. O escuro da noite em contraponto com a sua camisa branca, adejada de vazio. Adagio
Terceiro plano: A rua. O movimento. O buzinar batido de luzes. O nevoeiro a dançar nos ramos despidos de Inverno. O luar amarrotado. O gelo a flutuar no líquido dourado. O copo abandonado na mesa de uma sala em negro e branco. A escala cromática de doze tons. O piano que sussurra baixinho.
Quarto plano: O canto de luz crua a inundar a sombra dos sentidos. Sebastião em pé, olhando a noite de todos os anos. O amarelo da lâmpada rasgar-lhe a percepção das coisas. Os sentidos que se derramam por ele abaixo qual urina incontida. O calor que se segue permite-lhe um breve aconchego.
Na rua as gentes apressam-se num vai e vem de horas gastas. E o luar pingado esboça um aceno breve de despedida. A objectiva foca-se na mulher que passa. Banal, sem laivos de efabulação. Nua de pré-conceitos de personagem. Aperta o casacão. O som dos passos breves revela o rumo da sua pauta. Andante.
Quinto plano: Junto à margem, sob o lençol de nevoeiro, desliza o rio. A seu lado, um vulto de contornos esbatidos caminha apressado. Afasta-se. Sebastião sorri finalmente. As pernas ágeis sulcam o tempo. Andante Agitato
Sexto plano: Soa a campainha. Toca o telemóvel. Respinga o relógio. A túlipa vermelha sorri à manhã. A luz inunda o estrado negro. Uma mão agarra o sol e diáfana abre-se. No quarto despido três sombras abocanham-se: O fel, o mel e o sal.
Sebastião ainda mora aqui. Allegro Cantabile.
FIM
Redonda, desgrenhada, Maria espreita na soleira da porta. Na anca, dez réis de gente olham por entre as melenas sujas. No rostinho, os regos das lágrimas, semeiam as manchas de porcaria. O ranho seco espalha-se entre o lábio e o narizito. Os olhos, esses, redondos e negros possuem a flor do mundo.
Maria Mãe.
Do lado de fora, Toninhe senta-se no tijolo de cimento, que lhe serve de cadeira. Coça a cabeça de cabelos pardos eriçados. A comichão desatina-o. Todo o santo dia, aquela coceira de cima para baixo a apertar-lhe as ideias. Espreita por entre as coxas magras. Fecha um olho. As formigas fazem carreiro. Sortudas arrastam as migalhas. Ele a vê-las, e a barriga a roncar o vazio. Molha os lábios. Coça a cabeça.
Pega no graveto caído na terra e atiça -as no carreiro. Elas zonzas desalinham-se. Logo, porém, retomam o percurso e, direitinhas seguem na fila indiana. Formigas rabigas.
Engole a saliva que lhe inunda a boca. Fome molhada. Maldição!
Puta de vida.
Ai, que o dia ainda vai a meio! O melhor é mesmo deixar as formigas e ir até ao quintal do outro lado. Os figos já pingam, os cachos estão maduros, e as maçãs pesam nas árvores. Tem que comer. Aquele rugido das tripas está a deixá-lo enjoado.
Levanta-se ágil.
O corpo é magro de um moreno mate, bordado de porcaria, está vestido de calções largos, sem cor, presos na cintura por um botão partido, mais de uma t-shirt feita de rasgões encaracolados. Os pés dançam descalços na terra cinzenta. As pernas morenas e baças tremelicam de fome. Está calor.
Uns dedos magros emaranham-se na nuvem crespa de cabelos baços. Coça e coça. Suspira. Danada a coceira, que já lhe pica o pescoço.
Deita o olhar para cima.
Aquele olhar fundo de mundo e aguado de miséria. Olhos que viram mais do que viveram. Olhar de adulto com olhos de menino.
Um olhar, um passo, um assobio, um trejeito. Um ronco.
Maldita fome!
Na soleira da porta, a mãe e a menina esfregam o calor do dia nos corpos balofos. Luz-lhe a pele de esticada. Rebola que roda a anca da mãe, quando muda a menina para o outro lado. Uma onda de carne vazia. A mãe, redonda, de olhos tristes e boca desdentada. A mãe que geme à noite quando o homem vem, e, que chora de manhã quando acorda. A mãe, que ergue os punhos no ar, escancara a boca e grita para dentro. A mãe que o sova e logo o aperta ao peito. A mãe que fala mal e cospe dor. A mãe, a sua.
Não sabe bem se ama, se a odeia. Não sabe, não.
Sabe que a miséria não mora ao lado, vive ali mesmo dentro deles.
Tem a forma de homem quando resfolga na cama da mãe, tem o jeito de fome quando as tripas gritam, tem a dor da diferença. Tem a cor da desgraça e a luz do ontem. A miséria é mesmo assim, um nada de tudo ou todo de nada.
Abre a mão. Vazia.
A menina chora e a mãe embala-a. Mas a fome não tem movimento. A mãe senta-se no tijolo. Tira a mama, aperta-a. Espreme. O leite é pouco. Apenas um breve esguicho. O mamilo na boca da menina enche-a. Só isso.
Logo o choro rebenta. Sentido.
A fome toma-a mais o engano.
Toninhe encontra o olhar da mãe. Súplica. Dor. Raiva. Ódio. Baixa os seus.
Sente aquele tremor por dentro. Sente a sua solidão de criança. Sente as algemas da miséria.
Num impulso desata a correr. Corre, corre, e corre. Não pensa, não sente. As pernas levam-no mais além, sempre ágeis, sem prisão, sem dor. Toninhe é livre!
Fugaz sentir.
O coração explode no peito. Cresceu mais do que a fome. O coração aquece-lhe o corpo. Amacia-lhe o sentir.
Toninhe tem a boca seca. Toninhe não respira. Toninhe tem o mundo nos olhos.
Chegou a casa.
A fome, a raiva, a diferença perderam-se na estrada.
Aqui a alma veste-se de Amor.