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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

07 outubro, 2009

Dona Ivone.

Dona Ivone.

Dona Ivone afasta a mosca que teima em rodar-lhe o carrapito branco. A maldita zumbe-lhe mesmo na boca dos ouvidos, deixando-a irritada. A agulha desliza na laçada de um aberto. O crochet tremelica agastado sob os dedos ossudos. Sentada no seu banquinho ali mesmo junto à soleira da porta da cozinha, a que dá para o quintal, onde as couves e os tomates resfolgam sob o calor da tarde, Dona Ivone entope-se de irritação.

-Raios partam à mosca, murmura enxotoando-a.

Sacode o crochet, renda de rosas abertas e fechadas, estica o pano branco que lhe adoça o regaço, e de novo o girar sincopado do pulso direito. Um, dois, três e uma laçada. Um, dois, três e um aberto. E as flores vão tomando lugar no imaginário da colcha. Rosas. É assim o escorregar das horas na soleira morna da porta da cozinha.

De novo a maldita zumbindo, zumbindo.

-Diacho, se te apanho…

À ameaça, a mosca inverte o círculo, e vai zumbir para outra banda.

Recomposta, Dona Ivone ajeita os fios de prata soltos, alisa com as mãos semi-murchas a bata florida de lilás e de novo aplica-se na sua renda. O fio branco desliza suave enquanto as flores de abertos e fechados vão nascendo em gesto ancestral.

Melopeias sem som.

Na casa térrea de pedra, onde as janelas meio vesgas mal deixavam entrar a luz, onde as portas roncavam a idade, e onde a tristeza se pendurava nas paredes, viviam doze almas. A mãe gasta de tanta criançada mais da pobreza. O pai, coitado, joeirava a terra e depois a mãe. Só que a terra era mais estéril do que o ventre da mulher. Uma jeira de dez bocas.

Ivone nascera entre o terceiro e a quinta, era a quarta. Não tinha lugar, nem jeito especial a não ser o de carregar os penicos dos mais pequenos, esfregar o soalho e andar calada atrás das irmãs mais velhas. Nunca tivera atenção, a não ser quando fizera a primeira comunhão. Aí a mãe comprara um metro e meio de algodão branco e fizera-lhe um vestidinho. Fora o seu momento de importância.

Cresceu. Aliás espigou. Não ficou bonita, ficou diferente. Demasiado alta e magra, branca e ruiva. Os seus predicados tinham-se perdido entre as paredes da escola. Mal soube ler e fazer contas, a mãe de mansinho reconduziu-a ao à rotina dos penicos. Em vão a professora protestou. Em vão. A mãe não atinava com certas sabichices, como ela dizia. Tanta letra, não servia para criar almas. Era a sua sina já desenhada antes de ser linha.

A sua não.

Aos treze sufocava. Aos catorze murchava. Aos quinze extasiou-se.

Fé e Senhor. Um Só. A igreja, o cheiro a velas e cera. Silêncio, oração, espaço. Começou aí a martelar a ideia do convento.

Pensou. Pensou e decidiu.

Maculou-se de um fervor ardente. Um ar ausente e místico, uma beatice pungente, em tudo um jeito, o seu, o de ser diferente.

A mãe, mulher quase analfabeta mas perspicaz, mergulhou os olhinhos pequenos nos dela. Quis ler mas as letras eram demasiado trabalhadas. Ivone impávida suportou-lhe o bisbilhotar. Suspirou e continuou na sua placidez de noviça sem o ser.

A sua força.

Ladeada entre a mãe e o Sr. Padre que cabeceavam o sono das horas, sentia o resfolgar do comboio, o cheiro do tempo e o som de um mundo que se despedia.

Sem saudade.

A fragrância das maçãs verdes perseguiu-a toda manhã. Um cheiro capeado de sabor que lhe enchia a boca. O sumo ácido a cair-lhe no estômago. Aquele ardor a queimá-la. As faces a tingirem-se de calor, um suor frio a empapá-la.

E o comboio a resfolgar.

Foi um dia frio e cinzento. Um beijo e uma bênção. Acabou.

Uma laçada, um fechado.

Uma porta cerrada.

Três anos de orações, ceras, velas e compostura. Postulou.

Não seria noviça. Sentiu-o. Gostava daquela casa de correntes de ar, do cheiro a sabão, dos risos da rotina, das campainhas, dos incensos, contudo havia um vazio. Queria mais. Não sabia o quê. Não era pardal de gaiola. Teve a certeza disso.

Falou com a madre superiora. Mulher clarividente. Não a prendeu mas também não a largou. Colocou-a numa obra religiosa.

Três laçadas e um aberto.

Ivone nascida entre o terceiro e a quinta, de uma jeira de ventre e, vazadora de penicos, noviça sem o ser, era finalmente independente.

Conheceu o seu homem Juntaram-se noivando em abertos e fechados de um casamento por ser. O tempo juntou-os e o tempo separou-os. Os fios do novelo partidos.

Uma laçada rasa.

Ivone chegou. Chegou à vida. Não se sentou, nem ficou de pé. Caminhou em passos seguros. Tragou o pó da escolha, bebeu o vinho da luta. Houve um dia qualquer, sem data nem atavio que a recebeu. A partir de então Ivone deixou de ser a quarta, a vazadora de penicos, e passou a chamar-se Senhora. Assim foi pelos anos fora, até ao dia, em que tomou de novo o combóio e sentou-se na soleira da porta do casebre de janelas vesgas, fazendo as rosas da sua última vontade em abertos de crochet.



05 outubro, 2009

I Dreamed a dream


[Fantine is left alone, unemployed and destitute]

[FANTINE]
There was a time when men were kind
When their voices were soft
And their words inviting
There was a time when love was blind
And the world was a song
And the song was exciting
There was a time
Then it all went wrong

I dreamed a dream in time gone by
When hope was high
And life worth living
I dreamed that love would never die
I dreamed that God would be forgiving
Then I was young and unafraid
And dreams were made and used and wasted
There was no ransom to be paid
No song unsung, no wine untasted

But the tigers come at night
With their voices soft as thunder
As they tear your hope apart
And they turn your dream to shame

He slept a summer by my side
He filled my days with endless wonder
He took my childhood in his stride
But he was gone when autumn came

And still I dream he'll come to me
That we will live the years together
But there are dreams that cannot be
And there are storms we cannot weather

I had a dream my life would be
So different from this hell I'm living
So different now from what it seemed
Now life has killed the dream I dreamed.


02 outubro, 2009

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O problema com o mundo é que os estúpidos são excessivamente confiantes, e os inteligentes são cheios de dúvidas.
(Bertrand Russell)
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24 setembro, 2009

Miséria

ciganos 3 por #rjc.

Miséria

Redonda, desgrenhada, Maria espreita na soleira da porta. Na anca, dez réis de gente olham por entre as melenas sujas. No rostinho, os regos das lágrimas, semeiam as manchas de porcaria. O ranho seco espalha-se entre o lábio e o narizito. Os olhos, esses, redondos e negros possuem a flor do mundo.

Maria Mãe.

Do lado de fora, Toninhe senta-se no tijolo de cimento, que lhe serve de cadeira. Coça a cabeça de cabelos pardos eriçados. A comichão desatina-o. Todo o santo dia, aquela coceira de cima para baixo a apertar-lhe as ideias. Espreita por entre as coxas magras. Fecha um olho. As formigas fazem carreiro. Sortudas arrastam as migalhas. Ele a vê-las, e a barriga a roncar o vazio. Molha os lábios. Coça a cabeça.

Pega no graveto caído na terra e atiça -as no carreiro. Elas zonzas desalinham-se. Logo, porém, retomam o percurso e, direitinhas seguem na fila indiana. Formigas rabigas.

Engole a saliva que lhe inunda a boca. Fome molhada. Maldição!

Puta de vida.

Ai, que o dia ainda vai a meio! O melhor é mesmo deixar as formigas e ir até ao quintal do outro lado. Os figos já pingam, os cachos estão maduros, e as maçãs pesam nas árvores. Tem que comer. Aquele rugido das tripas está a deixá-lo enjoado.

Levanta-se ágil.

O corpo é magro de um moreno mate, bordado de porcaria, está vestido de calções largos, sem cor, presos na cintura por um botão partido, mais de uma t-shirt feita de rasgões encaracolados. Os pés dançam descalços na terra cinzenta. As pernas morenas e baças tremelicam de fome. Está calor.

Uns dedos magros emaranham-se na nuvem crespa de cabelos baços. Coça e coça. Suspira. Danada a coceira, que já lhe pica o pescoço.

Deita o olhar para cima.

Aquele olhar fundo de mundo e aguado de miséria. Olhos que viram mais do que viveram. Olhar de adulto com olhos de menino.

Um olhar, um passo, um assobio, um trejeito. Um ronco.

Maldita fome!

Na soleira da porta, a mãe e a menina esfregam o calor do dia nos corpos balofos. Luz-lhe a pele de esticada. Rebola que roda a anca da mãe, quando muda a menina para o outro lado. Uma onda de carne vazia. A mãe, redonda, de olhos tristes e boca desdentada. A mãe que geme à noite quando o homem vem, e, que chora de manhã quando acorda. A mãe, que ergue os punhos no ar, escancara a boca e grita para dentro. A mãe que o sova e logo o aperta ao peito. A mãe que fala mal e cospe dor. A mãe, a sua.

Não sabe bem se ama, se a odeia. Não sabe, não.

Sabe que a miséria não mora ao lado, vive ali mesmo dentro deles.

Tem a forma de homem quando resfolga na cama da mãe, tem o jeito de fome quando as tripas gritam, tem a dor da diferença. Tem a cor da desgraça e a luz do ontem. A miséria é mesmo assim, um nada de tudo ou todo de nada.

Abre a mão. Vazia.

A menina chora e a mãe embala-a. Mas a fome não tem movimento. A mãe senta-se no tijolo. Tira a mama, aperta-a. Espreme. O leite é pouco. Apenas um breve esguicho. O mamilo na boca da menina enche-a. Só isso.

Logo o choro rebenta. Sentido.

A fome toma-a mais o engano.

Toninhe encontra o olhar da mãe. Súplica. Dor. Raiva. Ódio. Baixa os seus.

Sente aquele tremor por dentro. Sente a sua solidão de criança. Sente as algemas da miséria.

Num impulso desata a correr. Corre, corre, e corre. Não pensa, não sente. As pernas levam-no mais além, sempre ágeis, sem prisão, sem dor. Toninhe é livre!

Fugaz sentir.

O coração explode no peito. Cresceu mais do que a fome. O coração aquece-lhe o corpo. Amacia-lhe o sentir.

Toninhe tem a boca seca. Toninhe não respira. Toninhe tem o mundo nos olhos.

Chegou a casa.

A fome, a raiva, a diferença perderam-se na estrada.

Aqui a alma veste-se de Amor.


Vocalise by Rachmaninov - Rachmaninov


22 setembro, 2009

Much Ado About Nothing

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Ponto de Orvalho

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Ponto de Orvalho

Nem se chega a saber como
um inusitado sorriso,
um volver de olhos doentes,
um caminhar indeciso
e cego por entre as gentes,
chamam a si, aglutinam,
essa dor que anda suspensa
(e é dor de toda a maneira)
como o vapor se condensa
sobre núcleos de poeira.
É essa angústia latente
boiando no ar parado
como um trovão iminente,
que em muda voz se pressente
num simples olhar trocado.
Essa angústia universal,
esse humano desespero,
revela-se num sinal,
numa ferida natural
que rói com lento exagero.
Não deita sangue nem pus,
não se mede nem se pesa,
não diz, não chora, não reza,
não se explica nem traduz.
A gente chega, respira,
olha, sorri, cumprimenta,
fala do frio que apoquenta
ou do suor que transpira,
e pronto, sem saber como,
inútil, seco, vazio,
cai na penumbra do rio,
emerge, bóia, soçobra,
fácil e desinteressado
como um papel que se dobra
por onde já foi dobrado.

António Gedeão
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12 setembro, 2009

Em Setembro

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Em Setembro.

Vinham não se sabe de onde. Vinham trazidas pelo vento, novelos de algodão mal embrulhados que, se sentavam no ar, olhando de cima para baixo, à espera não se sabe bem de quê.

Saber, sabia-se, mas esperava-se. Esperava-se então pelos sinais.

Sinais de Setembro.

Entretanto a neblina avolumava-se nas manhãs por acordar, porém displicente esvaía-se logo que o Rei se punha a circular. O vento, esse, porque era traiçoeiro bufava de vez enquando, de mansinho, mas lá ia despindo uma folha aqui, outra ali, ou pior, simplesmente sugando-lhes o resto de seiva. E a terra cobria-se de amarelo de despedida.

Depois, a varinha mágica estremecia e as cores rebentavam de ser. Um esplendor. Uma paleta. Nas árvores, pelos montes ou nos bardos, o vermelho e o rosa velho, amarelo e o laranja, o grená casado com o ouro velho e o verde amarfanhado. Que panóplia! O olhar guloso bebia-as compulsivamente, tal como o bêbado sorve o líquido. Os sentidos acalmavam, por instantes. Em frente no monte que vestia a cidade, a urze tomara tom. Ao longe parecia açafrão. Aquele amarelo bebido de sol da tarde aquecia os olhos. Um aboboral maduro, assim era os amarelos espargidos na terra amornada de luz.

Liquefeitos os sons do vento evocavam a dádiva do tempo, o presente. O espírito jazia ali mesmo na dobra, entre o antes e o depois, soltando-se na despedida e acenando à chegada.

Verão e Outono.

Sol e neblina.

Riso e sorriso.

Respirava-se o ar e bebiam-se os primeiros pingos de chuva. Refrescava-se. Exauridos os cravos-da-índia, amarelos, vermelhos e castanhos cujo odor forte se desprendia no canto do jardim, acordavam da letargia que os tomara e multiplicavam-se numa rapidez apressada. E no dia seguinte já sorriam alegremente. Nas árvores, os figos maduros e leitosos piscavam matreiros o olho às mãos, que os procuravam.

Oferenda mélica entreaberta em gomos amarelos rosados.

Feneciam as folhas. A despedida.

Letargia. Segredo.

Em Setembro.



Aranjuez Mon Amour - Gheorghe Zamfir
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