Sapatos Vermelhos
Olha de um lado para o outro. Não vê, porém olha. O hábito.
Na estrada de asfalto ruço os carros passam, apitam, contorcem-se e deslizam. Chamam-lhe trânsito.
Ela olha. De um lado para outro. Pára mesmo junto á orla do passeio. Na quebra entre a estrada pintada de riscas brancas e a pedra polida. A biqueira dos sapatos vermelhos oscila no ar. O salto prende-se na fenda entre os cubos de basalto, mesmo na ponta da estrela que, azouga o passeio.
Puxa. E puxa de novo. Solta-se, porém a capa ficou. O salto fino ficou despido.
Olha o semáforo. Está verde. Atravessa. O passeio de calcário em ondas de basalto estende-se à sua frente. Percorre-o apressada.
As buzinas mais o bruaá dos carros retumbam memo ao seu lado. A cantiga da cidade. O Retorno. Setembro.
Estuga o passo, porque o tempo urge. Tem que andar mais um bom par de metros.
Sob o cotovelo despido, aperta uma pasta azul. A tiracolo a mala que subtilmente lhe vai dando pancadinhas no côncavo da cintura. A bolsa é vermelha como os sapatos. Os sapatos que começa a arrastar. Os pés estão moídos, apertados e suados.
O dia ainda vai a meio.
Decidida pisa com força. Mais um passo e um carro que passa. O correr escanzelado de vidas.
E ela que tem que caminhar, e o sol quente a apertar. Os sapatos a moerem-lhe os dedos, os calcanhares, a vontade.
Ai a cidade!
Mais uma rua, uma passadeira e um parquezinho, daqueles escondidos, mas tão verdes e sossegados. Ali mesmo, do outro lado da avenida, onde os carros correm em linha recta no asfalto pegajoso do calor. Mas ali sob a sombra do choupo, um banco vazio descansa sereno. Fecha os olhos. Mentalmente vê-se sentada soltando os pés dos calabouços vermelhos.
E se fosse? Ninguém saberia.
Olha por cima do ombro num trejeito inconsciente. Ninguém a olha e todos a vêm. É assim na cidade. Olha-se sem se ver. Desvia-se.
Na pequena alameda os canteiros triangulares espreitam meio assustados os sapatos vermelhos. E as canas da índia vestidas de vermelho ou açafrão espremem-se todas para os ver. Uma novidade.
No banco vermelho senta-se. Tira os pés morenos dos sapatos, remexe os dedos libertando-os e graciosamente traça a perna. Um sapato tomba, o outro direito e alinhado arrecada a ponta do pé que se senta no seu calcanhar.
O alívio é grande. De novo olha em redor. Sossego. Para onde foi o barulho, o sol, o fumo?
Bah, que importa. Que bem se está ali! Espreguiça-se de forma lenta e deliberada. Sorri.
Uma brisa e um abanar de folhas fá-la acordar para o tempo. Olha o pulso e pensa. “Tenho que ir. Já tenho os pés mais aliviados”
Calça os sapatos. Levanta-se. Pega na pasta. Coloca a mala ao ombro. Olha em frente por entre o arvoredo.
Os sapatos vermelhos calcam a alameda. Há de novo um murmúrio nos canteiros. A balada antes do sono. Visão quente dos últimos dias de luz. Suspiram os canteiros que se arrecadam em slow motion.
A cidade surge crua e amarela aos seus olhos. A luz violenta da tarde ofusca-lhe o olhar. Nem os óculos a protegem. A canícula envolve-a numa onda. Gotas perlam-lhe o pescoço empapando os cabelos negros.
-Maldita cidade! Que calor! Pensa.
Desce o olhar. Tem que atravessar. De novo junto ao semáforo os sapatos vermelhos equilibram-se nos seus saltos agulhados. A biqueira já não oscila, calca pesadamente o traço primeiro da passadeira. Quase se arredondou. A transpiração e o palmilhar afearam-na.
Sapatos vermelhos.
Entra no edifício. Sobe no elevador. Abre a porta. Atira-se para a cadeira. Joga no ar os sapatos.
Depois, poisa a pasta, a mala. Despe a saia e a blusa. Veste a bata. Pega na esfregona e no balde vermelho.
No chão a água vestida de espuma refresca-lhe os pés. Murmura:
-Livre!
Do outro lado, abocanhados no chão os sapatos vermelhos gotejam o peso da caminhada
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