Carlota
O dia tinha fechado a janela. Na cozinha o tacho fervilhava sobre o lume espevitado. A tampa dançava sob a quentura da água vestida de arroz, espirrando espuma branca. O vapor de água pintava de gotículas o vidro da janela. No intervalo da cortina, Carlota via o azul meio escuro borrar a tela por de cima. Pegou na colher de pau, levantou a tampa e mexeu a água, sentiu os bagos inchados e moles. Estavam já cozidos. Colocou a tampa de esguelha para que o líquido não subisse mais, baixou o lume, e abriu a porta da cozinha para o jardim.
Sentou-se no banquinho de madeira esbatido de verniz e de tom. Olhou em redor aspirando o aroma das rosas que se abriam. Era o seu tempo preferido. Aquele interlúdio do dia quando as cores se adensam e os sons se esbatem. Podia ouvir-se, ouvindo tudo em redor. Mentalmente fazia o epitáfio das horas.
Um rodar de pneus mais uma buzinadela, um abrir de portão, eis que, a vida a clamava de volta. Carlota olhou, esboçou aquele seu sorriso meigo, levantou-se, e calmamente dirigiu-se para a cozinha. Estava na hora de retomar outras lides. Era tempo de família.
Todos os dias a cena repetia-se. O marido e os filhos chegavam a casa depois dela. Ele apanhava-os. Ela já chegara, e tinha o jantar quase pronto. Breve segmento do dia em que o barulho sobrepunha o conteúdo. Os garotos corriam direitos para os seus interesses: Pedro para a saleta onde rápido ligava a televisão, Inês direita que nem uma flecha para o quarto, vá lá saber fazer o quê. Claro que sabia, mas preferia fazer que não.
Francisco, o marido entrava na cozinha, dizia aquele olá franco, colocava o braço sobre o ombro, dava-lhe aquele beijo trivial e dizia: “-Novidades? O dia como foi?”
Invariavelmente a resposta ouvia-se: “-”Foi. Estou cansada. Tudo igual, sempre.
Ele retorquia: “-Ainda falta tanto para as férias”. Depois seguia-se: “- O que é o jantar?”
Dada a resposta girava sobre si acrescentando: “-Vou ver os miúdos. E dar-lhe uma mãozinha nos trabalhos.”
Pronto. Estava de novo sozinha. Andava rápida no seu vai e vem. Tacho aqui, panela ali, escorre daqui, mexe acolá. E o cheiro borbulhava pelas paredes da cozinha amornando o ambiente. Carlota continuou mexendo, remexendo, verificando até que os tachos descansaram, o lume dormitou e o avental voou para trás a porta.
Era a hora de jantar.
Chamou pelos filhos. Respondeu o marido.
Em tropel naquele empurra que empurra, “está quieto”, “ó mãe é sempre assim”,” estou farta deste miúdo”, “calados meninos,” a mesa sentou-se de rostos. O silêncio caiu mal as bocas se entreabriram. Os dentes eclodiram ao compasso do movimento E na toalha verde de raminhos vermelhos e amarelos, os pratos mais os talheres dançaram o jantar.
Carlota suspirou.
Mais um dia. A rotina inundou-a.
Fechou o rosto. Suspirou-lhe a alma.
Subiu as escadas, entrou no quarto. Olhou para a cama mexida de lençóis enrolados. Francisco dormia, melhor ressonava naquele andamento de fanfarra entupida. Olhou-o, antes de se olhar. Não sorriu. Olhou somente.
Depois entrou na casa de banho, despiu-se, meteu-se na banheira e distendeu-se. Avaliou-se aí. Também não sorriu.
Limpa de cansaço e fresca de amanhã entrou na cama. Não se encostou. Espraiou-se, esticou as pernas bem até ao fundo, cruzou os braços no ventre liso, fechou os olhos e deixou-se tomar pela sonolência.
Amava de sobremaneira esta neblina que a envolvia. Era por essa altura que os sonhos se dilatavam de tal forma que quase se tornavam reais. O seu tempo de ócio, vazio de solicitações e cheio de languidez de fêmea. Naquele meio-tom, o sonho cavalgou-a de tal forma que deu por si enroscada na perna musculada de alguém cujo bafo a acalentava em sincopadas estrofes de amor. Deixou-se cavalgar, deixou-se voar. Rodou-se-lhe a cabeça, mais o corpo e o pensamento. Uma roda sem vintém de sentido batendo os acordes dos segundos. Ouvia ao longe um badalar, qual som brônzeo de uma moral que teimava em querer despertá-la. Grávida de sensações deixou-se tomar cada vez mais e mais. Um fio, pérola aguada de sal molhou-lhe o rosto, pingou no seio esquerdo escorrendo lenta para o ventre, e daí para a foz do corpo.
Carlota sorria. Sorriso saciado.
No lado da cama a fanfarra entupiu. Parou. Rumorejou, voltou-se. Abriu os olhos.
Esticou o braço. Ali, mesmo ao jeito da mão palpitou uma coxa morna e túrgida.
Acordou de vez.
Enovelou-se devagarinho, assim a modo de pedido e premência. Em feição de quem tem sem ter, mas tem na certeza, a vitória do ter.
Carlota moveu o pescoço. Carlota não quis acordar.
A perna teimosa sussurrava, roçava, premia. A perna encalhou. Carlota acordou.
Estremunhada.
Voltou-se na almofada que não no corpo. A premência mais o sonho sacudiam-lhe o torpor Encostou-se e bebeu o calor morno, mais o gesto, mais a vontade, mais o gosto.
Acabou.
Está desperta. Acordada. Sem sonho.
Volta-se e mentalmente pensa no dia seguinte.
Cerra as pálpebras, estende a mão por cima do corpo, ensaia uma carícia breve no dorso de Francisco. Recolhe-se
O sentir sentou-se no vão da madrugada da ilusão. Treme, não sabe se de solidão, se de tempo. Treme na madrugada do dia que veio depois.
Memory - Pan Flute